domingo, 16 de janeiro de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVII

Atravessei o espaço entre a gruta e as árvores consciente de que os meus movimentos eram impelidos pela figura luminosa e fluida do meu guia, a sua postura exímia e altiva conduzia-me de passos confiantes para o desconhecido sem olhar para trás. Na sua sombra, eu era apenas um pormenor. Aquela figura descompensada e sem importância que o seguia sem uma palavra, sem hesitar, disputando apenas a oportunidade de poder pisar o chão por onde ele passava. Sentia os meus pés gelados, tudo em mim gelava com a proximidade, porém eu nunca diria que não a essa sensação profunda e evidente de abstracção. Aquela doce dormência que sentia perto dele era quase narcótica dos meus males, dos defeitos que durante anos me condicionavam, dos complexos que me aprisionavam a algo que sempre controlei. Agora chegara o momento de me afastar, do alívio que sentia por me saber entregue a alguém que sabia o que fazer com todos eles. Mesmo que esse alguém fosse um estranho.

Parámos na orla escura e opressiva dos primeiros carvalhos. Os cheiros que me rodeavam eram repletos de impressões e as anormais reacções que produziam faziam-me oscilar, retida em pequenos despertares de consciência conforme as captava ao meu redor. Como a casca rugosa das árvores quando lhes toquei, cobertas de um musgo esverdeado e decomposto que cheirava a profundamente a madeira apodrecida na humidade. Terra… couro… madeira…

- Pega nisto. – Dirigiu-se a mim roubando-me á reflexão – Quero ver o que consegues fazer.

Olhei para ele, emoldurado pelas sombras, no vazio de uma floresta cheia de sussurros errantes, maravilhoso e cheio de luz. Toquei-lhe no rosto frio salvaguardando que ele era real, existiam medos dentro de mim que recusavam abandonar a possibilidade dele não estar ali, de poder deixar de o ter perto o suficiente. Depois olhei para as mãos esguias e brancas, o formato perfeito das suas unhas, o trejeito com que segurava firme no cabo requintado de uma espada curta e de aspecto valiosíssimo.

- É para ti. – Ofereceu-ma com algum cuidado. O movimento com que a colocava na minha mão e a cerrava na dele retirava para bem longe o receio e as indagações sobre o motivo para tal presente – Vais precisar dela agora.

Era demasiado pesada como constatei assim que tive de a suportar desamparada nas minhas mãos. Os meus pulsos vergavam sempre que a tentava endireitar na minha frente, supondo que seria dessa forma que a deveria manusear, seria um tormento ter de a transportar, quanto mais ter de lhe dar qualquer tipo de uso. Os meus olhos procuravam os dele sempre que falhava a tentativa, e nele nada me devolvia inspiração suficiente para que o meu esforço fosse tido como efectivo. Ele limitou-se a observar-me, uma e outra vez, erguer o que para si se tratava de um pequeno cutelo, como se este tivesse o peso do seu machado.

- Isso é para usares só com uma mão. – Resmungou aproximando-se para me mostrar como segurar na arma. – Assim!!!

A mão cerrada sobre a minha num aperto penoso não era suficiente para que, mesmo querendo acima de tudo agrada-lo, conseguir fazer o que me pedia. E eu queria muito ser capaz. Queria um segundo da sua aprovação descartando o que isso significava. O que me esperava só viria após esse momento, e depois disso, já nada era tão importante.

- Isso não vai resultar se não te esforçares um bocadinho mais. – Incitava-me ansioso por me ver segurar a espada como idealizara. O rosto cerrado numa expressão de pura frustração enquanto levantava o meu braço para de seguida me ver perder a força e este tornar a descair. – Estás aqui há muito tempo. Hoje já não vais ser capaz.

- Vou. – Recusei de imediato, percebendo que com isto algo nele desistia de mim. – Eu sou capaz.

Ele inspirou profundamente e observou-me esgotar a réstia de energia que sentia fluir do meu corpo para o trágico movimento que terminou com a lâmina cravada no chão entre os meus pés.

- Se calhar precisas de um incentivo. – Colocou a possibilidade no ar com uma centelha de entusiasmo na voz límpida. – Queres experimentar?

- Faço o que quiseres. – Respondi arrebatada pela proposta que nos faria avançar sem mais demonstrações da minha fraca capacidade para segurar a malfadada espada. Apesar de me saber completamente esgotada, eu iria até onde fosse necessário para que houvesse um momento em que conseguisse provar-lhe que tudo aquilo valeria o esforço. - Desde que não fiquemos aqui especados até ficar sem dedos dos pés.

Ele riu-se, provocando-me um pequeno arrepio que me subiu a coluna e se instalou na nuca como um cubo de gelo que acabara de contrariar a gravidade. Peguei no cabo da adaga e arrastei-a junto a mim até ele.

- É pena que não tenhas nada melhor para vestir. Vai ser mais complicado contigo nesse estado. – Observava-me de cima a baixo com algum desdém. Eu sentia e via no seu rosto esses pequenos momentos de depreciação, e em vez de me sentir minimizada ou ofendida, enchia-me de um enorme sentimento de culpa. Eu seria capaz de ser melhor se me esforçasse. Seria capaz de lhe provar que merecia melhor e que teria o necessário para evoluir mesmo naquelas condições. – Vai ter de chegar por hoje. Depois arranjo-te qualquer coisa.

- Não te preocupes comigo. Eu estou bem. – Menti com receio que julgasse ter algum género de interesse nas suas posses ou na possibilidade evidente de me poder providenciar melhor do que eu trazia vestido da minha rua. A única coisa que morava no meu peito sem se deixar domar pela dormência ainda era algo parecido com o orgulho. – Quando for possível, eu arranjo melhor.

Avançamos um pouco mais para o interior do bosque e abandonamos a visão da entrada da gruta. Para trás deixava a rua e os portões escancarados, aos poucos também deixei de ouvir a cascata e por fim, nada se sobrepunha ao desconhecido. Sentia mais do que via o que estava para lá dos troncos grosseiros e fétidos pelos quais atravessávamos em silêncio. A adaga arrastada a meu lado e a armadura metálica em movimento eram os únicos sons produzidos além da nossa respiração, tudo o resto provinha do espaço assombroso e enegrecido pelas copas cerradas acima de nós.
Os meus olhos cravados nele como se nada para além da sua imagem fosse digna da minha atenção captavam silhuetas luminosas que se deslocavam a grande velocidade, serpenteando pelo ar entre as ramagens mais baixas dos carvalhos e que rasavam a mata rasteira iluminando-a num tom azulado. Julguei tratar-se de fumo, alguma espécie de vapor produzido por aquele ambiente sufocado e apodrecido, estendi a minha mão para a dele e apertei-a sem coragem para tirar dúvidas.

- São serpentes. – Parou de repente, quebrando o silêncio sem incertezas e apontou para um ponto alargado de uma clareira a pouca distância, curvou-se a meu lado até ficar com o rosto ao mesmo nível do meu e certificou-se de que eu via exactamente o que ele estava a referir. – Estás a vê-las?

Eu não queria ter de responder naquele momento. No meu peito inflamara uma miríade de sensações ao vê-las nitidamente na minha frente. Serpentes azuis que esvoaçavam em véus de fumo como peixes de barbatanas translúcidas pelo ar. Os corpos longos e fluidos que se moviam em direcções erráticas para regressarem sempre ao mesmo ponto como se ali guardassem, ou aguardassem, algo. Sentia picadas agudas na ponta dos dedos das mãos e dos pés e voltei a ouvir o meu coração, irregular e descompassado pelo medo e pela confusão, o dele sereno e ritmado a meu lado, depois os silvos da deslocação do ar daqueles seres misteriosos e assustadores e por fim, como uma invasão ensurdecedora a cada canto do meu corpo, todos os sons numa distância impossível de conceber. O cheiro intensificou-se em ondas de deslocação do ar e tornei a enjoar com a amálgama de fragrâncias e odores tão insuportavelmente acentuados. Eram lindas na verdade, mas não existia uma única razão para que, e reagindo o meu corpo daquela forma, eu confiasse numa aproximação segura. Tudo em mim reclamava pela inacção de movimentos, pelo enorme controlo que tinha de ter para conter a vontade desproporcional de correr dali para fora e fugir de regresso à segurança da gruta.

- Existem duas coisas muito importantes acerca delas que deves saber. – Tornou a falar junto ao meu pescoço, o sopro frio das suas palavras como um espicaçar premeditado nos meus instintos – A dentada e a forma de as matar.

- Prefiro matar antes de descobrir o que acontece depois da dentada. – Respondi-lhe, ouvindo a minha voz fugir pela garganta como um jorrar de desespero contido. Recuei um passo e senti as minhas costas de encontro ao seu peito de ferro. – Como se matam?

- A cabeça é a forma mais eficaz. – Rodeou-me até ficar na minha frente e eu deixar de as ver vaguear tão perto de nós. - Normalmente uma pancada forte é suficiente, mas no teu caso… era melhor que conseguisses usar a adaga.

- E se não conseguir das duas formas? – Coloquei a terceira opção como quem faz um pequeno apontamento sem importância. Eu estava aterrorizada. – O que faz a dentada?

- Eu não as deixo morderem-te o suficiente para que seja uma catástrofe. Também não precisas entrar em pânico, eu fico aqui a ver. São só umas serpentes… dói um bocadinho.

Fechei os olhos alguns segundos na tentativa de assimilar aquilo que ele acabava de dizer. Eu ia atacar serpentes, não existiam dúvidas de que era precisamente aquilo que ele queria que eu fizesse. Seres que voavam quando deviam rastejar e que exibiam nos seus movimentos uma incontornável mensagem que apelava à distância e bom senso. Ia fazê-lo sozinha, sem saber muito bem como, e com a ajuda de uma catana que pesava mais que um calhau.

- Promete que a matas se me morder. – Encarei-o entusiasmado na minha frente com a expectativa. Os olhos brilhantes e o sorriso confiante na minha tomada de decisão, como se aguardasse o acontecimento com verdadeira confiança na minha duvidosa vitória.

- Prometo.