- Olha à tua volta demónio. – Rugiu-lhe esbracejando em seu redor – Ela está em Talansilma. O único que está aqui a tomar decisões erradas és tu.
Por um momento vi-o descair os ombros, como se a fatalidade daquilo que lhe tinha dito fosse tão óbvia que nada do que ele pudesse dizer ou fazer fosse suficiente para o contestar. Olhou para trás na minha direcção, os olhos negros afunados numa expressão avaliadora que me encheu de dúvidas e receios que não conseguia justificar.
- Eu acho que não é nela que estão interessados, nenhum de vocês. – Retornou à sua opositora cruzando os braços num reafirmar de posição. – É a criação dela que vos está a deixar curiosos. Vou ser sincero, a mim também.
A mulher ergueu a sua cabeça esbelta num ímpeto ultrajado e semicerrou os olhos aquosos para a gruta antes de voltar a encara-lo.
- Seja como dizes, estamos interessados na criação. Qual é o teu interesse nela? – Inquiriu como se fosse realmente estranho o seu interesse em mim e não conseguisse abdicar da vontade por lá chegar antes que fossem óbvias as razões e as decisões irreversíveis. – Queres a fonte da criação para quê? Ela é dispensável. Não controla absolutamente nada.
- Eu não tenho de justificar os meus interesses. – Fez questão de realçar tomando-se de uma postura provocadora sem que isso o tornasse menos inflexível. – Estou disposto a fazer uma troca. A fonte pela criação.
Agora a gargalhada gelava-me o sangue nas veias. A figura esbelta da mulher moveu-se em redor do estranho como se o enlaçasse a cada volta num feitiço perverso que me deixava bastante desconfortável, por não ter coragem de a impedir e evitar que aquela conversa continuasse sem que eu tivesse nada a dizer, e eu não tinha de facto, mas sobretudo porque a ideia de estarem a ser discutidos assuntos que me envolviam e não ser capaz de fazer valer o que pensava acerca deles me estava a sufocar.
- Tu vais voltar para a escória pútrida de onde vieste, - Pronunciou-se languidamente de olhos imersos de malvadez. – e abandonar Ardaisil sem que ela tenha de presenciar o que nós fazemos a elfos ensanguentados, como tu, quando conspurcam as nossas terras com as vossas presenças repugnantes.
- Para quem se apresenta como um elfo, és deveras preconceituosa. – Devolveu de forma depreciativa mirando-a da cabeça aos pés. - És, como os teus, a herança inglória de uma corja de traidores. Não interessa a forma como te mostras, sei quem és e o que representas.
- Terá Ardacarnë descido tão baixo que envie até aqui alguém como tu? – Rodeou-lhe o rosto com um dedo de unha afiada como uma garra e que parou ameaçadora na sua garganta. – Diz-me porque devo deixar-te partir sem que leves marcada em ti mais uma morte?
- Porque também tu sabes quem eu sou. – Sorriu-lhe ignorando o perigo que eu via envolve-lo e o deixava ameaçadoramente exposto. – Não abandonavas Talansilma sem que te devorasse.
Agora era o choque das suas palavras que me preenchiam de pavor. De que estavam eles a falar? Elfos ensanguentados, traidores, mortes e o que queria ele dizer com aquela ameaça de a devorar? Onde me tinha eu enfiado? Quem era realmente aquele estranho e o que queriam todos eles de mim e da minha rua?
- Entregas a criação em troca da fonte… o que ganhas com isso? – Retornou ao que antes havia sido o ponto fulcral daquela conversa sinuosa retirando a garra da sua garganta com alguma relutância.
- Como disseste, ela não controla absolutamente nada. Não existe nenhum interesse especial nela como fonte, e a criação, eu não sou ingénuo, está no vosso território. – Agora dirigiam ambos um olhar fixo na minha direcção que me fez deslizar, desejar enterrar-me no chão e desaparecer. – Ela é neste momento dispensável, mas também não vou sair daqui de mãos a abanar. Fui eu quem descobriu o portal. Se regressar sem ela vão ser postas em causa as minhas intenções por estar no vosso território, ter esbarrado com uma fonte e não a apresentar em Delduwath.
Eu era dispensável. Aquela conversa acerca da criação e da fonte era finalmente elucidadora, era a minha rua que eles desejavam, todos eles. O resto fazia parte de uma história da qual eu não fazia parte, nem desejava fazer. Teriam de fazer melhor que aquilo se queriam tomar de mim aquilo que criara, aquilo que fazia parte de mim e da minha própria história.
- Olha para ela… - Apontou para mim, encolhida junto ao chão – É patético que a queiras levar até Delduwath, separá-la do ponto de encontro e fingir que não tens nenhum interesse nisto.
Ele estava a perder a paciência. Via-o de sobrolho erguido e expressão cerrada, os punhos fechados com força e os ombros hirtos como um fuso.
- O meu interesse nela é pessoal. – Referiu num sussurro virando as costas e impedindo-me de lhe ver o rosto. – Nenhum de nós tem qualquer tipo de vantagem em ficar com ela.
Observei o sorriso depravado que inundou o rosto esbelto da mulher com verdadeiro pavor. O semblante harmonioso da sua expressão tornou-se perverso antes mesmo que as suas palavras o tornassem ofensivo.
- Vais esvaziar-lhe a mente? – Inclinou o rosto a dois palmos de distância do dele gracejando com as palavras como se retirasse delas um prazer pérfido – Sugar o que resta e deixá-la a apodrecer como uma pedinte nas valetas de Ardacarnë?
A mão que cerrou no pescoço esguio e a fez sufocar não era um aviso. Havia nele a intensão de a calar e nos olhos escuros refulgiam as chamas de um inferno que falava de morte. Ela cambaleou de mãos descaídas junto ao corpo sem se debater. O sorriso depravado nos lábios era demasiado cruel para que sentisse urgência em interferir e evitar o que julgava estar a acontecer. Então a luz surgiu vinda das sombras das árvores, um clarão em movimento que sulcava a terra com garras afiadas e um corpo possante. Um felino de dimensões gigantescas, branco como a neve e dentes expostos como verdadeiros punhais, rompeu na clareira com um rugido que me estilhaçou de terror e se abateu sobre eles como um manto.
Submersos num nevoeiro de luz e fumo, deixei de os distinguir, parte dos movimentos era engolido naquela bruma espessa que tinha surgido sem saber de onde e explosões sucessivas de rugidos e vozes estridentes que pronunciavam palavras que não entendia faziam daquilo uma experiência pavorosa a que assistia impotente. Sabia que o estranho estava em desvantagem e que também não seria eu a salvá-lo. Podia fugir, entrar pela gruta e regressar incólume à rua mas algo me obrigava a ficar quieta, aparte, num testemunho apavorado, sabendo que tudo aquilo se devia a mim. Na minha frente a massa disforme de corpos bestiais e formas desconexas ribombava num combate efusivo. Distinguia a mulher como uma sombra, surgindo e desaparecendo como um fantasma de garras encrespadas que se mantinha na margem sussurrando de rosto hipnótico como uma bruxa que lançava encantamentos em surdina.
“Corre… foge para a rua… rápido”
A voz invadiu-me a mente como uma bofetada. Era a voz do estranho. O som das suas palavras sacudido pelo esforço em pronuncia-las enquanto duelava, e eu não o via apesar de saber que estava ali na minha frente, com aquela besta enorme de mandibulas ferozes que, era obvio, obedecia à mulher como se lhe pertencesse.
“VAI!!!”
Eu não me conseguia mexer. O corpo simplesmente não me obedecia como se me mantivesse paralisada de terror. Os meus olhos ardiam com o esforço por os manter abertos, atentos a cada movimento, a tudo o que se estava a passar na minha frente. E os sons, esses bombardeavam a minha mente com rajadas estrondosas que acentuavam o terror de passar a ser dirigido a mim aquele ataque diabólico.
“ Não me consigo mexer” - Tentei responder sem saber se ele me ouvia.
“ Concentra-te.” – Respondeu. A voz agora agonizando na minha cabeça numa súplica. – “Respira… Fecha os olhos.”
Assim fiz. Enchi o meu peito de ar, uma, duas vezes, até o sentir pleno e expelir tudo de uma vez. Uma pontada aguda insistia em dificultar a minha tentativa de concentração como se também o meu corpo zombasse da situação. Fechei os olhos e tentei de novo. Concentra-te. Lentamente, sabendo que na minha frente tudo se desmoronava com aquela luta, preenchi o meu peito de ar. O calor que concentrava com este esforço espalhou-se rapidamente pelos meus membros entorpecidos e acentuou de novo a percepção dos meus sentidos. Ergui-me junto à rocha ainda de olhos fechados. A entrada da gruta não estava longe, uns cinco passos e poderia alcançá-la. Oculta pela escuridão avancei, um passo de cada vez, caminhando lateralmente encostada à rocha como um lagarto assustado. Quando senti a minha mão vaguear no vão da entrada, abri os olhos e corri como uma louca para o seu interior. Os pés escorregavam na lama e aos tropeções me fui obrigando a erguer e continuar como se fugisse pela própria vida. Rompi pela cascata ensandecida pelo terror e cai do outro lado ofegando por ar como se também este fugisse na minha frente. Levantei-me, cai, rastejei e passei o portal para a rua. Vagueava ali uma escuridão sombria que devolvia até mim sopros gelados como se tudo estivesse suspenso e o eco da minha respiração despertasse algo muito maior que o meu medo.
“ Procura… o objecto da tua rua.”- Era um murmúrio. A voz que tocava a minha mente já não vibrava, era como se a escutasse muito longe, perdida numa memória do que antes tinha sido vibrante e cheio de vida.
Olhei em meu redor num desvario. O objecto da minha rua? A rua despida e gélida que não sustinha absolutamente nada do que antes tinha criado ali? Já não era a minha rua. Ao longe a porta cerrada que me mantinha presa a este mundo era uma imagem ténue e longínqua, uma impossibilidade na qual depositava toda a minha esperança. Tinha de a alcançar. Fugir dali e esquecer que alguma vez, tudo aquilo, tinha existido. O sonho, a rua, eu.
“Espera.”- Um pedido desfeito de uma voz que quase já não chegava até mim. – “Não podes partir.”
Ignorei-o e obriguei-me a caminhar. Um passo de cada vez e chegaria à porta.
“Ele vai-te buscar. Procura o objecto…”
A voz abandonou a minha mente como um véu. Como se as palavras cálidas que haviam tocado os meus pensamentos os depusessem e restasse apenas o vazio do meu medo e das minhas duvidas. Ele já não existia. Nada daquilo iria existir do outro lado daquela porta. Olhei para os arcos funestos enquanto corria, a ausência da aurora numa memória dolorosa e o chão lustroso espraiando na minha frente uma despedida cruel. Havia tanto que se perdera, e no entanto as sobras eram ainda tão importantes para mim. Alcancei a porta com um sobressalto provocado pela pressa, levei a mão ao peito avolumando já a saudade na minha partida e enfiei a chave na fechadura com dificuldade. Um rugido rompeu pela rua atrás de mim como um trovão apressando os meus movimentos. Eles já estavam ali. Rodei a chave uma, duas…
“Fecha a porta.” – A voz regressou com todo o vigor à minha mente. O estranho voltara.
Ignora-o, exclamei de mãos a tremer no derradeiro movimento que me libertaria dali. Olhei para trás e escutei o avançar galopante de garras acelerando até mim pela rua. Dei a última volta com a chave antes de ouvir o próximo rugido. Estava atrás de mim, demasiado perto, terrivelmente perto. Lentamente, obriguei-me a encará-lo. Agachado a dois passos de distância estava um felino enorme, negro como uma azeitona madura e de expressão bestial inundada de expectativa.
“Confia.”
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