segunda-feira, 30 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXI

“Parto as minhas correntes para me aprisionar a ti” (Ollem)

Quando interrompi a paz da rua, apressada pela porta singular e me detive à sua entrada, o espaço estático que me devolvia o reconhecimento dos meus sentimentos estava vazio. Uma ausência atroz de vida e de movimento no seu interior era o reflexo das minhas dúvidas. Eu não sabia o que sentia, ou o que viria a sentir de cada vez que regressava à rua. Ao meu lado esquerdo, sobre o poial lustroso da pedra negra estava a mochila à minha espera. Eu já não trazia a capa sobre os ombros, o meu refúgio já não fazia sentido quando todos os meus sentimentos haviam partido e se encontravam perdidos no desconhecido. A única protecção segura seria a confiança num dos estranhos. Caminhei até aos arcos e encostei o corpo na sua forma rígida sentindo o frio enregelar-me os ossos. A aurora estava ausente dos meus pensamentos. Nenhuma forma de brilhantismo ou de ideais a trariam de volta ao antigo esplendor. Retirei da mochila a roupa grosseira que havia sido um presente inesperado do estranho de olhos escuros e dentro dela estavam ainda as duas partes de uma adaga partida envolta num pedaço bafiento de linho. Observei-a uma última vez antes de a tornar a envolver e esconde-la debaixo de um dos bancos que dividia os dois primeiros arcos. Vesti a minha couraça com maior destreza da segunda vez, a complexidade dos passos e cruzamentos das fivelas surgiam-me de maneira familiar ao relembrar como o vira faze-lo. As botas contudo eram diferentes, já não eram os dois despojos vergonhosos que me caíam pelas pernas e me faziam arrastar os pés. Senti como isso me fazia recair numa espécie de contentamento, por me saber acarinhada daquela forma, ser minimamente importante para que se preocupasse com o meu bem-estar. Ele era intrigante. Os seus pensamentos medidos e cuidados por detrás da imensidão de um abismo negro, demasiado profundo. Perdia-me sem respostas nas suas palavras, e perdia também a capacidade de ser eloquente sempre que me aventurava a questionar o que ele acharia de mim.

Caminhei sem pressa pela rua. Estava sozinha a cada passo. Os portões escancarados em toda a extensão do meu percurso até chegar ao portão de âmbar. O cheiro e o som inegável da cascata no seu interior em contraponto às batidas ruidosas do coração no meu peito. Acariciei o colibri imóvel no interior da matéria refulgente e procurei dentro de mim o impulso por tornar a atravessar o outro mundo.

Não hesitei ao transpor a cortina de água e aterrei encharcada, porém de pé, no outro lado. Escorri o cabelo e amarrei-o com um nó junto à nuca, a couraça não deixara entrar agua portanto estava parcialmente molhada e não completamente. Apertei as presilhas da mochila junto ao corpo e avancei para o exterior. A brisa fugaz de todos os cheiros do que se escondia além do maciço de árvores cerradas na orla da floresta chegava a mim com a intensidade de um fumo espesso, repleto de estórias… confuso… estranho… mas que eu conseguia identificar. Cada um deles separando-se na sua essência, privando com os meus sentidos ao chegar a mim, a origem, a matéria, a distância…

Chegada ali, imóvel nesse meu reconhecimento invulgar do que me atingia, aguardei. Ele pedira que esperasse por ele e sem o questionar, seria exactamente isso que eu faria. Pensei que estaria ali perto, tinha de ter entrado na rua para me deixar a mochila com a roupa mas, pesando os acontecimentos, era prudente que não me aventurasse à sua procura. Inspirei o ar profundamente, aquele bafo ameno que rompia através dos troncos maciços na procura de algo que apaziguasse a minha espera. Os cheiros que procurava não chegavam até mim, nenhum deles.

Terra…Couro…Madeira…nada.

Então um sopro ténue, um pequeno pontuar de movimento por detrás da rocha escurecida que rompia o chão entre dois carvalhos distantes. Depois mais perto, o ondular da erva rasteira e quebradiça que trazia até mim aquilo que os olhos astutos não conseguiam desvendar. Recuei dois passos lentos mas alerta a cada indício que me roçava a pele e a deixava sensitiva aos estranhos pormenores do que a mim chegava. Sentia um rodopiar à minha volta, um pequeno vórtice que me encurralava num espaço ínfimo à entrada da gruta. Parou de repente e deixei de o sentir.

- Quando foi que me sentiste? – Sibilou num murmúrio quase inaudível.

Rodopiei sobre mim mesma localizando a voz abafada que sussurrava na sombra atrás de mim. O vulto estreito e incolor era uma sobreposição da rocha húmida do interior da gruta, como se fizesse parte da mesma, uma extensão camaleónica do que o abarcava.

- Quem és tu? – Ouvi-me questionar perdendo a noção do que me prendia ainda ao chão e me impedia de fugir dali a sete pés.

Com passos mudos observei-o ganhar vida ao caminhar na minha direcção, as vestes negras como um corvo fundiam-no e metamorfoseavam o espaço que o antecedia com a simplicidade da transparência, um lampejo de substância a cada movimento para depois perder o rumo da sua real localização. Era um ser etéreo mas autêntico. Um homem alto e esguio de rosto coberto por uma mordaça que encabeçava a sua inacreditável vestimenta, revelando apenas os olhos verdes como duas esmeraldas que tudo transpunham, que desnudavam sem entraves tudo quanto fosse seu desejo desvendar.

- Eu… sou quem te vai ensinar.

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