Chorei. Chorei de medo e de angústia, de pena, por mim e pela minha rua. Libertei do meu peito o peso da culpa e da ingenuidade. Eu não era forte, nunca fora. A minha visão distorcida pela torrente de lágrimas vislumbrava um corpo magoado, a roupa esfarrapada e a quantidade de hematomas e escoriações que o meu erro causara. Nunca deveria ter abandonado a segurança da minha rua. Assim como nunca deveria ter seguido um estranho. A dor física de todos os golpes que sofrera não era, de todo, aquilo que mais me magoava. A verdadeira dor provinha do orgulho e da sensação de engano, a traição que contradizia todas as palavras que não conseguia recordar, mas que no entanto me haviam colocado naquela situação. Aquela sensação de abandono que justificava a queda em falso na consciência e que não me reconfortava na infalibilidade de me admitir corrompida.
- Shh… - Aproximou-se cheio de cuidados. De novo os braços quentes e seguros que abarcavam não só o meu corpo mas também um pedaço da minha alma. Não o afastei, pelo contrário, aninhei-me de encontro ao peito do estranho como uma criança, e de rosto afundado nas vestes rudes que o cobriam, chorei até saciar a réstia das minhas forças.
- Ele mentiu-me. – Segredei no embalo letárgico que me sustinha debruçada sobre ele. Já não haviam lágrimas para chorar e a dor partia agora lentamente do meu corpo.
Silencio.
- Nós escolhemos aquilo em que acreditamos. – Disse-me algum tempo depois numa voz serena que escutava emergir-lhe através do peito. – Podemos é levar tempo a admitir que se trata de uma mentira. Existe sempre um momento em que nos questionamos acerca de algo que não conhecemos, ou que não conseguimos compreender, então optamos por… – Interrompeu-se bruscamente. – Esquece.
Senti o seu corpo enrijecer como uma pedra e perder qualquer vestígio de calor.
- Continua. – Pedi-lhe. Não tinha coragem para me mexer e perder a oportunidade de escutar o que ele reservara de forma tão repentina. O sentido daquelas palavras eram-me tão imprescindíveis quanto a necessidade de continuar a respirar.
- Existem pessoas que seguem aquilo que a razão lhes dita. Aquilo que as move trata apenas do desejo por concluir certo objectivo, e isso não está errado. – Continuou de novo com algum vigor – Aquilo que somos também se define pela forma como pensamos. Ou não. Podemos apenas fazer aquilo que pensamos estar certo e não concordar inteiramente com isso. – Pausou tanto tempo que acreditei serem essas as últimas palavras daquela sua manifestação de critérios. Respirou fundo e antes de continuar senti-o estreitar o abraço em mim. – Depois existem pessoas, que apesar de acreditarem na razão das coisas ou das situações, se contrariam pelo que lhes dita o coração. E isso está quase sempre errado. A intuição e o instinto são conceitos muito abstractos daquilo que pode mover uma pessoa em certo momento. Acredito que existem consequências demasiado dolorosas para quem se permite seguir algo que não é definível.
- São escolhas.
- Sim. São as nossas escolhas, que por instinto ou seguindo a razão, nos levam a seguir por caminhos, ou a tomar posições que nem sempre nos permitem voltar atrás e corrigir o engano de termos investido numa mentira, nem sequer remediar as acções que no fim nos deixam sem qualquer resposta.
- Eu acho que em ambas corremos riscos.
Afastei-me do seu abraço, subitamente envergonhada por me perceber tão próxima, dele, mas também daquelas palavras. O meu corpo sustinha uma dormência invulgar enquanto via desaparecer os meus ferimentos. Os hematomas eram agora extensões amareladas que já não exibiam os cortes nem me afligiam de dor. Como que por magia, tudo em mim regressava ao normal sem que conseguisse perceber como.
- Estás melhor? – Perguntou observando-me sem grande ênfase pela impossibilidade daquilo acontecer em tão pouco tempo. Pegou num pequeno cantil que trazia preso na cintura e estendeu-mo num gesto de incentivo. – Bebe. Não faças essa cara, é só água.
Peguei no pequeno recipiente, também este acouraçado e da mesma cor de tudo o que o cobria. Removi a rolha com o orgulho reservado no aperto das minhas maxilas com o esforço e levei-o aos lábios. Tinha muita sede. Percebi isso depois de começar a beber sofregamente a água fresca e senti-la estimular cada recanto do meu corpo como uma corrente de energia arrebatadora. Não conseguia parar.
- Obrigado. – Agradeci e devolvi-lhe o cantil sabendo que acabara por beber a totalidade do seu suplemento. – Sinto-me muito melhor.
- Devias sair daqui agora. Acho que por hoje já foi suficiente. Não te devias esforçar tanto por lidar com tudo isto. – Sugeriu levantando-se do chão para me oferecer ajuda, de mão esticada na minha frente com prontidão.
- Estás cá amanhã? – Perguntei-lhe tentando ignorar o formigueiro estranho que me percorria ao supor que o voltaria a encontrar de novo.
Ele olhou para mim de semblante cerrado, mirou a cascata por um momento e tornou a incidir os olhos negros nos meus com uma intensidade aterradora.
- Não saias da rua se eu não estiver aqui. – Era um pedido. - Eu não confio que tu sejas capaz de lidar com aquilo que aquele estranho representa.
Acedi com a cabeça sem ter de encontrar mais palavras para expressar as inúmeras perguntas que se afundavam em mim. Teria de confiar nele. Eu tinha de confiar em alguém, mesmo quando não conseguia confiar em mim mesma.
- Eu não te respondi. – Relembrei-o percebendo que se preparava para atravessar a cascata e partir. Ele devolveu-me um sorriso que, mais do que a água ou as suas estranhas poções, me fez disparar o coração no peito. – O gato… Acho que ele também não sabe porque me salvou.
- O nome dele é Miller.
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