quarta-feira, 25 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXIX

As sombras nos meus olhos eram reproduções amortalhadas da realidade. Os braços vincados em redor do meu corpo findo de vitalidade compunham sobre mim uma sensação de segurança cauta mas eficaz ao me transportar através da gruta com passos firmes, descompassados de tudo o que nos rodeava mas que atravessavam sem demora o espaço disforme que captava à nossa passagem.

- Vi serpentes que voavam. – Murmurei junto ao rosto cerrado do estranho de olhos escuros. Olhos que naquele momento se afligiam de preocupação com o sopro que eram as minhas palavras. – Azuis… e atacaram-me.

- Eu sei…

- E depois… não vais acreditar em mim. – Interrompi-me recuperando fôlego e coragem para lhe contar o que sucedera. – Vi um bicho.

- As serpentes não eram bichos? – Indagou com o sarcasmo habitual, que foi indisciplinadamente contrariado pelo pequeno trejeito da sua boca num sorriso.

- Este era diferente.

- Tiveste medo? – Apertou-me mais junto ao peito, cobriu o meu rosto com uma mão grande abrigando-me da corrente de água que atravessamos em dois passos robustos e estacou do outro lado a escorrer água como se tivéssemos acabado de emergir de um mergulho que separava duas realidades. Estávamos de volta ao interior da cascata.

O medo era naquele momento um sentimento demasiado definitivo para aquilo que realmente se instalara dentro de mim. Sim, sentia medo. Tanto que nunca me veria capaz de o assumir sem que temesse voltar a recordar os momentos de agonia da minha tentativa de controlo sobre algo que desconhecia completamente. A dor era a única sintonia que figurava naquilo que conseguia recordar, as imagens eram focos enevoados e repletos de pormenores que figuravam a situação de perigo e de impotência na minha memória confusa e desfragmentada. O abandono era o compasso que ditara o pânico e por fim a chegada metafórica da besta negra que me salvara pouco antes da chegada do estranho de olhos escuros. Esforcei-me por deslindar o que em segundos me assolara com a sua chegada inesperada e explosiva.

- Como era o bicho? – Perguntou pousando-me no chão húmido junto à abobada da câmara com cuidado. Ele afastou-se sem encontrar os meus olhos postos nos dele com súbita curiosidade. – Esse que era diferente.

- Era grande…

- Hum.

- E era negro e brilhante como uma azeitona madura. – Descrevia observando-o sentar-se, não demasiado perto, junto a mim. A expressão que encobria o interesse pela minha descrição, explicita de preocupação pelo que eu afigurava naquele momento. – Parecia um gato, ou uma espécie de felino. Ele era enorme.

- Um gato?!! – Resmungou como se acabasse de frustrar as suas expectativas quanto ao bicho que eu tentava descrever.

- Ele salvou-me. – Rematei num soluço que antecedia a descompressão num choro que começara a galopar na minha garganta. – Ele apareceu do nada quando eu fiquei sozinha. Eu não sei porquê… entendes?

- Porque ficaste sozinha ou porque o gato apareceu para te salvar?

A voz saíra-lhe gelada. Existia na sua pergunta tanto uma denúncia de escárnio quanto um refolgo pela minha compreensão de que eu havia sido ingénua e imprudente em ter-me colocado naquela situação.

- As duas coisas. – Engoli o orgulho sem dificuldade. Estava demasiado exausta para me dedicar a negar que ele teria razão, mesmo antes de ele a reclamar. – Hoje, quando cheguei aqui, estava o estranho de olhos azuis na minha rua. Estava à minha espera.

- Sabes… Eu não quero que me contes o que se passou. – Afirmou no seu tom frio e desinteressado. Os braços cruzados sobre o peito oscilavam sobre a cadência acelerada da respiração, agora alterada pela minha referência ao “outro”. – Eu não altero nada acerca das tuas escolhas, adulteradas ou não. É claro que a minha presença aqui já deixou de ser casual, não te vou mentir.

- Então porque voltas aqui? – Inclinei o rosto na sua direcção, despreocupado e ausente nos seus próprios pensamentos, sentado à distância de um braço com as roupas completamente encharcadas. O cabelo escuro e solto sobre os ombros repleto de pequenos vestígios pela sua passagem pelo desconhecido até ali.

- Porque achas que o bicho te salvou?

- Não me respondes com outra pergunta. – Devolvi com angústia. Aquelas suas perguntas comprimiam o meu desejo por confiar nele, esse desejo que lutava por se expandir dentro do meu peito oscilava nos nossos diálogos sinuosos e cheios de desconfiança. – Eu não sei o porquê de muitas coisas.

Sem grande ênfase vi-o afastar-se da rocha e acocorar-se aos meus pés. A mochila sebenta e desgastada caiu abafada pelo som da água sem revelar o que guardava no seu interior. Com gestos hábeis abriu-a e procurou por algo dentro da mesma sem demoras.

- Podes começar por compreender uma coisa. – Aguardou fitando-me por alguns segundos. Estava demasiado sério. Então retirou a única coisa que eu deixara para trás na clareira, a adaga bela e reluzente, estava agora partida em duas. Estendi as minhas mãos e ele posou entre elas a lâmina quebrada e o punho portentoso da minha arma. Nunca chegara a dar-lhe uso. Muito antes de poder tentar, ela abandonara a minha mão na queda. Coloquei-a sobre as minhas pernas, o peso desmedido do metal continuava a ser um fardo excessivo para aquilo que conseguia suportar.

– Isto nunca te poderia salvar.

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