- E tu tens um sentido de oportunidade indecente. – Acusei-o num sussurro sibilante vendo-o recuar até à base pedregosa que emoldurava a entrada da gruta sem se delongar em dar mais enfase à sua chegada imprevista.
Segui-o sem hesitações. Já era óbvio que, independentemente, de não confiar em nenhum deles, este era o único que eu seguiria sem me questionar acerca das suas intenções. Não era uma questão de confiança, com ele, era uma questão de instinto.
- Sabes o que está daquele lado? – Perguntei-lhe observando-o estático e de olhar fixo nas sombras.
- Sei.
Escusava perguntar de novo. As suas respostas eram sempre frustrantes e tortuosas, sabia que não diria nada se não fosse já sua intenção fazê-lo. Como permaneceu em silêncio, limitei-me a ficar quieta ao seu lado. O tempo passava e com ele aumentava a minha ansiedade deixando pouco espaço para a paciência. Ouvia a sua respiração cadenciada e sentia, mais do que via, a forma como se mantinha hirto, encostado à parede rochosa como se fizesse parte da mesma.
Esperei… esperei… e fartei-me de esperar, ganhando a minha incapacidade de ficar quieta uma dimensão quase insustentável.
- Vamos ficar aqui muito tempo? – Quebrei o silêncio, adivinhando o esgar que me dirigiu por ter falado naquele momento. – Porque é que temos de estar aqui escondidos?
- Shhh!!!
Apeteceu-me pontapear o mundo inteiro. Sentei-me no chão e cruzei os braços com o rol de ofensas a dardejar na minha mente. Por mim podiam estar ali fora cem novos estranhos! De que adiantava ficar ali escondida se mais tarde ou mais cedo eles descobririam o que guardava a gruta ou me encontrariam sozinha numa das minhas investidas para o seu mundo? Mais por rebeldia que por inconsciência agarrei numa pedra e atirei-a o mais longe que consegui na direção da floresta. Segundos depois tinha uma mão cerrada no meu pulso numa repreensão em surdina.
- Estás a magoar-me!!! – Rugi baixinho tentando em vão afrouxar-lhe os dedos que fincava na minha pele como um louco.
Antes que existisse qualquer tipo de resposta da sua parte, chegou-nos o som que rasgou o ar vindo da floresta. Uma gargalhada cristalina, como se sinos tinissem ao nosso redor e fustigassem cada recanto daquela clareira. O som mais belo e no entanto mais aterrador que alguma vez ouvira. Quedamo-nos os dois num impasse emudecido pelo medo e pela expectativa.
Não muito longe do sitio onde nos encontrávamos escondidos, eu de unhas fincadas na sua mão e ele insensível no seu aperto doloroso no meu pulso, surgiu envolta numa aura luminosa a imagem de uma mulher. Não era bem uma mulher, nela existiam pormenores que ultrapassavam a simples descrição de uma figura feminina. Era parcialmente humana, contudo nada nela exibia os contornos pelos quais definimos algo como sendo comum entre nós. Era maravilhosa. Uma estatura engrandecida pela luz que a sua pele irradiava, num tom azulado e brilhante, era como se nela reflectisse a luz da lua, e a voz, aquela sinfonia que despertava em nós a vontade de nos libertarmos, de corrermos na sua direcção e abraçarmos a sua beleza até sentirmos que de alguma forma fazíamos parte dela. O rosto afunilado e de expressões delicadas era dominado pela claridade dos seus olhos rasgados que nos preenchiam com uma estranha sensação de segurança. O cabelo longo e sedoso, repleto de inúmeros vestígios da sua passagem pela floresta, caía como um manto negro nas suas formas esguias e beijava-lhe a cintura despida que, como o resto do seu corpo, exibia por entre pequenos trajes luminosos incrustados de milhares de pequenas joias que transpareciam na sua luz como pequeninas gotículas de água. Os passos ligeiros com que beijava o chão não produziam qualquer som e os movimentos fluidos pareciam traduções maravilhosas de um ser agraciado pela ausência de gravidade. Permaneceu assim, desinteressadamente parada na nossa presença, ignorando a forma ridícula como ambos nos mantínhamos estáticos apesar de ser óbvio que sabia perfeitamente onde estávamos.
- Podemos fingir que este encontro nunca aconteceu… - Dirigiu na nossa direcção sem olhar para o local onde estávamos escondidos como se fizesse questão de nos deixar pouco à vontade com a nossa própria predisposição em não revelarmos as nossas presenças. – Até quando a vais manter aqui escondida? Outros virão… outros com menos tolerância para essa tua insistência em quereres guardá-la só para ti.
Olhei para ele no escuro. Os meus olhos vislumbravam nas sombras a sua expressão tenaz e o aperto no meu pulso afrouxou quando ele se erigiu em toda a sua altura e avançou seguro pela clareira. Não fui capaz de o seguir. Eu sabia que aquele diálogo não me incluía e que a minha presença era, uma vez mais, um motor para que se enredassem em assuntos que eu não conseguia alcançar.
Observei-os do sítio onde ficara, emudecida, sem saber o que esperar. Aquela nova presença tão perto da gruta era tanto uma ameaça como um novo mistério, e eu sabia que indiscutivelmente era a minha existência ou a da minha rua que continuava a trazê-los até ali. A mulher, ou ser, elfo ou não, era sobretudo ininteligível. Quando o estranho se aproximou o suficiente para que ele próprio ficasse imerso da sua luz cintilante cerrei os punhos e sustive a respiração. Havia algo que eu percebera, ainda antes daquele encontro, que estava em desacordo com as minhas estranhas percepções. Não conseguia deslindar nenhuma particularidade que revelasse identidade ou presença nela, era como se nem sequer ali estivesse. Nenhum cheiro, nenhum som, nenhuma revelação física que a colocasse naquele espaço antes de se ter revelado a nós. E era claro que eu a tinha visto do outro lado apenas porque era esse o seu desejo enquanto tinha caminhado sozinha na orla das grandes árvores. Isso era desconcertante, agora que eu me tornara dependente daquilo que os meus sentidos me devolviam do exterior, não ser capaz de os utilizar a meu favor colocava-me de novo no papel da figura frágil que eu tentava abandonar a todo o custo. Havia porém outra coisa, algo mais definitivo do que um cheiro ou um som, eu tinha a certeza, absoluta, de que ela não era assim tão maravilhosa quanto se apresentava ali. Sabia que o estranho corria perigo e que eu não seria capaz de o escudar ou salvar de nada que viesse dela.
- Entrega-a e segue o teu caminho. – Disse-lhe num lamento frio e implacável. – Tenho tido contigo mais brandura do que é compreensível tendo em conta a tua posição. Não esperas que te deixemos caminhar pelo nosso território e ignorar a tua presença quando também a dela está em causa.
- E se eu não partir sem ela? – Contrapôs naquele seu tom irónico que eu já conhecia e deixava sempre margem para duvidar se estava realmente a levar a sério o que dizia.
Outra gargalhada surgiu no quebranto que nos rodeava. Desta vez não existia nada de belo naquele som. Era mais uma chicotada gelada que despertava o medo por não saber o que a fazia rir daquela forma.
- Julgas que não sei o que ela é? Que não sei o que guarda para além daquela gruta? – Vociferou de expressão alterada pela cólera e tudo nela perdeu a candura tornando-a de repente temível e arrojada. – Sabes quem eu sou?!!
- Sei.
- Eu também sei quem és e acho que isso basta para que repenses aquilo que estás a fazer aqui e quais vão ser as consequências para ambos.
Silêncio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário