quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXII

Outra vez. Três… Quatro com o felino negro. Em quantos dias?

Ele olhava para mim através da fenda que lhe descobria os olhos com suspeita curiosidade. Sentia-me novamente exposta, observada até ao ínfimo pormenor. Ao contrário do comportamento hesitante e ansioso aquando das aproximações dos estranhos anteriores, este revelava uma calma cuidadosa, como se contivesse nos seus movimentos velados a ausência de qualquer género de sentimento, controlando-os e sufocando a sua existência num escudo impenetrável.

- Eu… desculpa. – Atrapalhei-me, evitando focar a minha visão na sua figura disforme que me enchia de nervosismo e desconfiança. – Acho que não é necessário. Quer dizer, a tua ajuda, eu já tenho quem me vá ensinar.

Ele não se mexeu um milímetro, continuando a olhar-me letargicamente com o manto de pontas desfiadas a bailar-lhe junto aos tornozelos. Eu não acreditava que as minhas palavras o afastassem, ou que ele simplesmente acreditasse que havia quem tivesse chegado antes dele para me ajudar, mas, talvez isto se repetisse constantemente e ele não viesse a ser o ultimo estranho a abordar-me quando me aproximava da fronteira daquele mundo. Talvez eu viesse a compreender porque era importante lidar com todas estas presenças em meu redor.

- Quem és tu? – Perguntei-lhe num ímpeto cauteloso apertando os punhos atrás das costas – Porque estás aqui?

- Faço um favor.

Outro estranho cheio de mistérios. Desarmei a minha postura, de ombros descaídos em concordância com a minha dificuldade em retirar respostas acerca das coisas que me pareciam ser simples. Eu não escondia quem era, na verdade nunca tinha tido essa escolha, uma vez que desconhecia por completo todas aquelas possíveis presenças, mundos ou interesses. Eu apenas conhecia a minha rua. A rua que deixara de ser minha para passar a ser apenas uma passagem para algo maior e complexo, o género de coisa que eu gostava de manter ausente das minhas habituais visitas introspectivas.

- Estou farta disto sabes? – Dirigi-lhe, falando a meio tom com ambos, ele, e os meus pensamentos. – Farta das vossas respostas absurdas. Das vossas artimanhas e inconveniências que eu não quero realmente compreender. Só preciso que me digam para onde devo ir. – Pontapeei um aglomerado raquítico de galhos secos que ainda se mantinham presos ao solo acinzentado. - Não deves saber porque estou aqui, mas eu explico-te. A minha presença aqui é uma coincidência infeliz, que se prende com o facto de eu ter uma rua… - Esta parte era mais complicada e demasiado intimista para partilhar de animo leve com um estranho que acabara de surgir na minha frente – Desapareceram-me “coisas” que quero recuperar. E estão por aí. – Apontei por cima do seu ombro estático. – O problema é que ninguém é capaz de me dizer onde estou!!! E porque andam todos preocupados com a minha chegada e com a forma como chego a essas “coisas”!!!... E depois são essas vossas… - Gesticulei os dedos bailando junto aos seus olhos sem encontrar um termo – Eu nem sei de onde vocês vêm!!!

- Nandëondo.

- Desculpa? – Refreei a sequência do meu discurso inflamado, suspensa entre a apoteose do meu infortúnio com a palavra que ele murmurara. – O que disseste?

- Nandëondo. É de onde eu venho. – Tornou a repetir ligeiramente mais alto, a voz pendente na neutralidade. Aquela podia ser a voz de qualquer pessoa. Uma voz sem identidade.

- Ah… - Emudeci depois de ele ter acabado de me dar uma resposta.

- Tu estás em Talansilma. – Abarcou a floresta e a cordilheira com um gesto amplo ao nosso redor. - Uma zona despovoada a sudoeste do continente Ardaisil.

- Estamos num continente? – Aproximei-me, assoberbando o meu peito de entusiasmo pelas primeiras respostas que via respondidas. – De que tamanho? Esta zona… Como se divide todo o território?

- Calma. – Pediu apertando o manto ao seu redor como se tivesse receio de se ver descoberto á luz do dia. – Eu respondo-te a todas as tuas perguntas. Uma de cada vez, por favor.

- Desculpa… mas é a primeira vez que me respondem. – Abracei-me a mim própria, entalando as mãos com os braços e obrigando-as a manterem-se paradas com tanta emoção. – É complicado. Ultimamente não sei em quem confiar e ninguém me dá respostas acerca de nada.

- Então temos de descobrir quais são as perguntas que deves fazer. – Aproximou-se com passos seguros até mim e colocou a mão enluvada no meu ombro, sem peso, cheiro ou movimento, quase imperceptível. – Primeiro vamos regressar à tua rua. Não tenhas medo. – Interceptou o meu receio por aquela proposta com serenidade. – Eu não te quero mal.

- Como te chamas? – Arrisquei sem pensar. Aquela era uma pergunta importante para mim. Algo a que eu pudesse referir-me com certezas. Um nome no escuro.

- Eu tenho muitos nomes. – Respondeu num sussurro que lhe escapou pelos lábios amordaçados no tecido negro. - Alguns já me esqueci… Para ti sou Ollem.

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