domingo, 21 de agosto de 2011

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXIV

Ponderei as minhas próximas palavras com cuidado. Não sabia, de todo, do que estava ele a falar. A minha fragilidade era contígua a ambas as realidades, a diferença era a ausência de todos os escudos que, fora da rua, reunia ao meu redor. A minha quase arrogância era eficiente, a minha óbvia alienação também me mantinha à tona do que exteriormente me sufocava. Sabia que isso era uma ilusão, mas mais ninguém teria de o saber além de mim. Naquele momento, sentia que os meus escudos eram menos que fumo, um átomo de inconsciência num mundo completamente despido de tais subtilezas. Se eu tinha alguma primazia em mim era o excesso de argumentos com que me criticava constantemente e a tendência para o negativismo relacionado às minhas capacidades. Agora tinha uma sombra, uma figura de homem que se afirmava um assassino, apontando os meus pontos fracos como um engodo, um disfarce que a minha natureza dispunha sem que eu a controlasse.

- A que distância me sentiste quando cheguei? – Interrompeu roubando a minha atenção no seu tom neutro e sombrio. – Explica o que sentiste, por favor.

Suspirei alto e a bom som. Estava a ficar esgotada, em breve teria de sair dali e regressar. Posei a mochila atrás de mim, o seu peso abandonou os meus ombros deslizando com um baque até à base da minha coluna. Fechei os olhos e recuei ao momento em que caminhara da gruta para o exterior. A sinfonia de cheiros… aquela estranha invasão nos meus sentidos que alarmava cada recanto do meu corpo como se fosse demasiado pequeno para acumular toda aquela informação. Tentara separá-los, identificar cada um. Tinha procurado neles algo familiar, como se me fosse íntima aquela forma de sensorizar o espaço até limites que eu ainda não conhecia. Não lhe ia dizer o que procurava naquele momento ou a promessa que tinha feito.

- Eu sinto os cheiros de maneira diferente. – Comecei, abrindo os olhos para o encarar, sentado rígido na minha frente. – É como se ganhassem uma dimensão ilimitada de reconhecimento. Eu consigo distinguir vários cheiros e sei que alguns estão a muita distância do sítio onde estou.

- Mais? – Encorajou-me com aquilo que assumi no seu rosto por um sorriso. Os olhos rasgados na sua fenda ganhando uma expressão de entusiasmo com as minhas palavras. – Consegues dar forma a esses cheiros conforme chegam a ti?

- Não sei. Não é uma coisa que eu controle. – Confessei abraçando os joelhos com força e obriguei-me a continuar a relembrar essas percepções. – Quando essa informação chega até mim… ás vezes é demasiada. É como um murro em cada sentido, porque através do cheiro, acho que consigo medir a distancia, a velocidade a que se desloca e…

- E?

- Acho que consigo perceber a intenção daquilo que se aproxima de mim. – Despejei sem reservas à loucura que aquilo podia parecer. – Eu senti isso com o segundo estranho. Não sei se por mim, mas senti perigo por quem estava comigo naquele momento.

- Muito bem!!! – Uniu as palmas com um estalido que ecoou pela rua como uma rajada e me fez dar um salto apertando a mão no peito. Senti-o fitar-me demoradamente, inclinando a cabeça de lado como se tivesse encontrado algo inesperado no meu gesto. – Estás cansada.

- Eu estou bem. – Neguei sem grande ênfase. – Não quero desperdiçar esta oportunidade.

- Entendo.

- Queria perguntar-te uma coisa. – Procurei sentar-me mais confortável na sua frente, cruzei as pernas e apertei as mãos uma na outra. – Porque é que eles se odeiam?

- Essa é uma pergunta que terás de ser tu própria a responder numa outra altura. – Falou-me calmamente como se tivesse esperado aquela minha pergunta desde o início. - Eu podia responder-te através da minha visão das coisas, mas não era justo que formasses opiniões tendo como base a minha versão.

- A diferença entre eles… é assim tão grande?

- A energia que referiste quando os descreveste funciona como dois ímanes. São dois pólos opostos que se repelem. – As mãos brancas de dedos delicados exemplificavam metodicamente o que me descrevia com vigor. – Não sei como explicar isto a alguém que não caminhou entre nós. Existe um equilíbrio a manter entre essas energias e o nosso papel é fundamental para que tudo isto seja concebível.

- Estás a falar de uma guerra entre os dois pólos?

- A luta entre esses dois pólos é a razão para que exista um equilíbrio que proporcione estabilidade neste mundo. Se a balança pender para um dos lados e for a tendência de apenas uma das duas facções a ordenar a existência de Elenorë, tudo está perdido. Então, desde a Era das Sombras, quando nenhum de nós vislumbrava o poder dos sonhos, que Carmacil e Narmohtar se combatem.

Depois de ter suplicado e esperado angustiada por respostas, sentia-me à deriva.

- Devias ir descansar. – Sugeriu começando a cobrir-se com os mantos negros que o enlaçavam e dispersavam a sua imagem em movimentos incolores e desfocados. – Amanhã vou estar aqui à tua espera.

Levantei-me sentindo o entorpecimento nas pernas por estar sentada há muito tempo, peguei na mochila e coloquei-a de novo ao ombro. O estranho já estava de pé, bailando nas sombras que o ocultavam dos raios ténues da aurora preguiçosa que não nos brindara com o seu espectáculo de luz e beijava com recato as zonas mais altaneiras dos arcos de pedra. Ergui a mão em despedida sem saber bem onde ele estava e virei as costas sem olhar para trás.

- Elenorë. – Tentei pronunciar, caminhando para a porta que abandonava a minha rua, deliciando-me com a forma como se expandia através de mim o seu nome. – Parece-me o nome de algo maravilhoso.

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