Como não se moveu, percebi que esperava em troca que lhe confidenciasse o meu nome. Algo dentro de mim desejava ardentemente que lho concedesse, essa parte real da minha existência, uma identidade, tal como ele o fizera. Aparte do seu nome, não havia nada que eu pudesse reconhecer na sua figura, como uma miragem, um sopro, ele era aquele nome e dois olhos verdes como esmeraldas.
- Eu não tenho nome. – Ponderei sem saber como parecer coerente – Quando criei a minha rua não havia necessidade de ter um. A rua sou eu, e ela também não tem nome. Não preciso de afirmar a mim mesma quem sou através de um titulo que trago da realidade. Além disso, os nomes, tal como o aspecto, não são a nossa identidade. Não neste mundo.
- Ainda bem que referiste isso. – Pontuou, encaminhando-me pelos ombros de regresso à gruta – Isso do nome e do aspecto. Tens razão.
- Desculpa por não te retribuir com um nome, tu disseste-me o teu. – Voltei-me para o encarar. A mão nos ombros manteve-me a passo largo na direcção da cascata. – Parece-me injusto depois de teres sido o único a responder a algumas das minhas perguntas.
- Acho que nem todos nós temos respostas para te dar. Não sem respondermos primeiro às nossas próprias questões. – Seguiu na minha frente abrindo caminho junto à queda de água para que eu passasse sem ter de aterrar encharcada ao outro lado. - Isso é outro assunto que podemos discutir mais tarde se quiseres.
Caminhámos algum tempo depois de atravessamos o portão de âmbar em silêncio. Eu, dedicada às inúmeras perguntas que tinha a fervilhar na ponta da língua, e ele, na sua forma transitória e imperceptível sem me deixar margem para perceber ao que dedicava o seu emudecimento.
- Como são aqueles que chegaram antes de mim? – Perguntou sentando-se imóvel num dos primeiros bancos junto aos arcos que ultimavam a calçada até à porta da realidade.
- São diferentes. – Foi a primeira coisa que consegui replicar para os descrever. Tão diferentes como a água do vinho. – Sei pouco sobre eles. O primeiro é…muito estranho. Misterioso, com olhos escuros que afundam num abismo de fogo… - Mirei-o pelo canto do olho. Desconfiava que contando isto a alguém não se acreditassem nas minhas palavras. – e trouxe-me uma mochila com roupa. Sinto-me mais segura quando ele está aqui ou quando o oiço… a voz dele, - Corrigi, tentando a custo reservar aquele pequeno pormenor que invadia a minha mente com a sua voz, só para mim. – acalma-me. E enerva-me também.
- Homem ou elfo? – Perguntou como quem pergunta as horas.
- Elfo? – Embasbaquei meio perdida. – Como os das historias?
Surpreendeu-me com o que me pareceu uma gargalhada, algo abafado e demasiado curto para ficar no ouvido. Depois regressou à pose solene, pousando as mãos nos joelhos enrolados no manto esvoaçante como num casulo.
- Estás a falar a sério. – Concluí observando-o aguardar pela minha resposta. – Não sei. Acho que nunca lhe vi as orelhas. É alto, de cabelo escuro e comprido, e veste umas roupas feitas de uma pele muito leve. Do mesmo material das roupas que me trouxe na mochila. – Tentava reunir todos os pormenores da sua imagem, mas também da sua personalidade, na minha cabeça. – Ele é forte. Faz-me acreditar que também sou.
- Ardacarnë… o reino vermelho. É de lá que vem o teu amigo elfo.
- Ele não é meu amigo. – Apressei-me assim que senti as bochechas afoguear. – É um estranho. Nem sei se é um elfo como dizes.
- Todos somos estranhos, por agora. – Aquiesceu com um gesto sombrio através da mordaça. – Fala-me dos outros.
- O outro é perigoso. Aprendi da pior maneira, acredita. – Sentei-me a dois passos dos seus pés, a meio da calçada. – Ele utiliza a mente, não sei como o faz. Quando está por perto perco a posse dos meus pensamentos, como se a única coisa verdadeiramente importante fosse agradá-lo… - De novo as bochechas. Passei as mãos no rosto fingindo-me cansada e continuei. – Ele é indescritível. Toda aquela luz… e os olhos. É como se nele brilhassem todas as estrelas do céu.
Calei-me envergonhada por ter acabado de dizer aquilo em voz alta e não fui capaz de continuar.
- Não é teu amigo?
- Não!!! – Neguei como se acabasse de ser acusada injustamente de um acto terrível. – Ele brinca com os meus sentimentos, altera a minha forma de agir. Mete-me coisas na cabeça!!!
- Então, tal como o outro, não merece a tua confiança. – Estendeu as duas mãos na minha direcção, sustendo-as no ar como uma balança - Dois estranhos em quem não confias.
- Eu não sei se sou capaz de confiar em alguém. – Apertei as mãos uma na outra com força. – Existe neles uma espécie de energia que interfere com o meu estado de espírito. São opostos.
- Dividem-te. – Comentou com convicção. – Dividida tornas-te mais tendenciosa e cedes à energia que te domina.
Sem ter como avaliar a sua intenção ao dizer aquelas palavras, soube que eu própria teria levado uma eternidade a entender o que aquilo significava e quanto da sua conclusão era, sem sombra para dúvidas, a verdade. A tendência que eu sentia quando estava na presença de ambos os estranhos vacilava sobre padrões que eu não conseguia distinguir, como que esvaziada da minha própria vontade, eu era arremessada consoante a sua dança febril de ódios e vantagens, pensamentos e cedências. Quando apareciam sozinhos e nenhuma oposição oferecia perigo ao acesso ao meu discernimento, eu nunca duvidava que naquele momento, aquela era a voz da razão.
- Para comandares a tua vontade vamos ter de regressar ao início. – Falou por fim, deixando-me espaço para encaixar os meus pensamentos com a calma que até ali me escapara. – Mas antes, quero que saibas o meu papel nisto tudo.
Toda a minha atenção se focou na imagem exotérica do meu companheiro. Aquilo que era visível da sua figura tornou-se cada vez mais nítida até conseguir observa-lo por inteiro. Um homem de porte altivo envergava todos aqueles véus. De olhos esbugalhados, observei-o retira-los um por um sem conseguir emitir um som. O contorno esguio do tronco, os braços compridos e vigorosos, um pedaço de pele clara como neve junto à orla da mordaça, o pescoço direito e altivo da sua postura superior, as pernas longas, as mãos compridas a retirarem o capuz que desvendou um cabelo curto cor de fogo. Porem, a mordaça continuou a cobrir-lhe o rosto.
- Sou um assassino. Um ladrão. – Encolheu os ombros sem muita consideração por se ter classificado daquela forma. – A minha visão deste mundo é feita pelas sombras, sigo através dos espaços por onde ninguém ousa caminhar.
- Porquê? – Murmurei avassalada por aquele momento e pela sua inesperada confissão.
- Há muito tempo que aqui estou e conheço esta forma de vida entre duas realidades. É a minha natureza… - Olhou para mim transparecendo alguma tristeza. - Onde me encaixo aqui.
Acenei afiançando a minha compreensão. Mais uma vez, provava a mim mesma que não tinha jeito nenhum para avaliar as pessoas. Por muito que ele se afirmasse cruel, ou desvendasse a sua pérfida natureza, não existira um momento em que eu me tivesse sentido em risco ou o adivinhasse tentado em invadir-me os pensamentos.
- Todos nós temos características que delineiam a nossa natureza. Aquilo que para nós se demonstra espontaneamente é o símbolo interior que nos indica o caminho por onde seguimos a nossa viagem neste mundo.
- Então não somos nós quem decide?
- Não. – Recusou sem deixar que a minha pergunta se demorasse entre dois. - Isso trazes dentro de ti, e não pode ser corrompido por nada que te afronte deste lado. Poderás ser completamente oposta àquilo que és, naturalmente, para lá daquela porta. – Apontou para a saída da rua tornando a fitar-me com os seus grandes olhos verdes. – Tu por exemplo… não consegues negar em nada a tua natureza.
- Que sou frágil? – Tentei adivinhar com verdadeira anuência pela possível avaliação à minha figura franzina e mente tão facilmente corrompível.
- Faz parte sim. – Acenou com firmeza. – É isso que deixas transparecer. Um engodo penso eu, e que estás longe de controlar, se até tu própria acreditas nisso.
- Não estou a entender o que estás a tentar dizer com isso. – Confessei com a cabeça às voltas.
- Isso é o que faz de ti um óptimo exemplo da primazia dos caçadores.
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