domingo, 13 de março de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVIII

Não há uma fatalidade exterior. Mas existe uma fatalidade interior: há sempre um minuto em que nos descobrimos vulneráveis; então, os erros atraem-nos como uma vertigem. (Antoine de Saint-Exupéry)


Apertei o punho da adaga na mão, o metal gelado que se elevava à intenção de ceder ao que do meu corpo fluía, fugir sem olhar para trás, para onde nunca tivesse de questionar a ausência de vontade própria, a minha segurança, ou mesmo as estranhas ocorrências que surgiam na vulgaríssima existência que tivera até chegar ali. Sem armaduras e com a certeza de que aquela minha estapafúrdia sessão de heroísmo iria ser uma tragédia, avancei.

O ar aguçado invadia-me o corpo com arrepios, feria-me as narinas e os joelhos tombavam a cada passo como se me custasse erguer os pés. Atrás de mim seguia a sequência da respiração expectante do estranho, demasiado alterada pela emoção, entregue a um género de espera cruel. Na minha frente silvos frenéticos que rasgavam o ar e acrescentavam uma aura de sacrifício adjacente a tudo o resto. Parei junto a um amontoado de silvas rasteiras de aspecto decadente, agachei-me um instante, oculta pelos parcos galhos e passei a língua pelos lábios ressequidos pelo medo. Agora… espera. O instinto dizia que não devia avançar, que já estava demasiado perto, a ansiedade pedia uma tomada de decisão urgente e os olhos afunilavam perante o meu alvo, a ampliação do terror exibia escamas pérolas sobre um azul crepuscular. Ergui-me lentamente quando o vi retornar na minha direcção, perdido na sua sequência abstraída de vai e vem tomando cinco metros de território com a pequena extensão do seu corpo esguio. Pela boca entreaberta, exibindo a forma bifurcada da língua, surgiam dentes curtos e serrilhados que ofereciam um carácter agressivo ao olhar opaco das pequenas orbitas esbranquiçadas. A coragem que tentara manter abandonou-me no instante em que a criatura me viu nitidamente na sua presença. Dilacerou o ar com um guincho que me estuprou os ouvidos e vi-me atordoada sem qualquer reacção. Procurei o estranho atrás de mim, a sua figura possante e intocável que refutava todas as minhas inseguranças e no seu lugar encontrei o espaço vazio por entre as arvores escurecidas, ele já não estava lá. A adaga caiu, os meus passos tombaram nas silvas e protegi o rosto com os braços antes do hálito apodrecido se cerrar na minha carne, uma e outra vez, a uma velocidade atroz. A dor que me infligia a cada dentada seguia o pulsar do sangue nas minhas veias, depressa todo o meu corpo doía, tudo em mim rasgava em suplício na vaga de cortes profundos por toda a extensão da pele, e por dentro… por dentro queimava.

“Espera por mim.”… Frágil.

Cerrei os punhos e esbracejei na minha frente, cega por me livrar da criatura enfurecida, por acabar com a aflição de me saber inteiramente entregue e inútil, sem qualquer forma de me proteger. A adaga demasiado longe e a incessante investida sobre mim eram as únicas coisas que rompiam o meu pensamento confuso e descontrolado, fustigado pela pequena memória de uma voz que reconhecia em cada recanto do meu ser como esperança no segundo da desistência. Dentro do meu peito, esta rugia constante pelo tempo que escapava de mim. Aos poucos eu perdia o vigor, os meus braços cediam junto ao corpo e na pele apresentava a proporção da dor nos sulcos ensanguentados dos cortes. Os meus olhos dilatavam nesta sequência de pânico e tudo o que via estava enevoado por sombras. Criaturas oscilantes, muitas em meu redor. Eu era o festim imóvel, enlouquecido e desistente que lhes instigava a fúria com a réstia de ar que escapava apressada pelos meus lábios. Os gritos começaram por se avultar na minha garganta, presos e inúteis na parca tentativa por pedir auxílio, exteriorizar a minha aflição era algo que, embora tudo o resto fosse de uma violência desmedida, me estava a tomar de verdadeiro pavor.

A forma negra que se avolumou nos meus olhos trazia ainda o ardor intenso dos movimentos acelerados por uma chegada inesperada, grande e lustrosa como breu rompia a confusão de figuras disformes e frenéticas com um rugir temeroso e cravado de angústia. Por fim nada me tocava, nada me atingia de dor, nada abalava o meu corpo dilacerado e padeci no silêncio das injúrias sem o mínimo movimento.

Terra…couro…madeira…

O felino que observei junto ao meu rosto era enorme. O focinho afunilado aproximou-se devagar, ofegante, lançando baforadas de vapor pelas narinas fendidas pelo estouro de combate que oferecera ás criaturas despedaçadas ao nosso redor, e por entre a penugem brilhante e sedosa da sua expressão bestial, dois olhos enxameados, rubros de raiva e preocupação. Senti o corpo robusto aninhar-se junto ao meu com cuidado, o calor que emanava do seu pêlo espesso penetrava a minha pele e atenuava a agonia dos golpes como um sopro cálido sobre a frigidez do meu suplício.
Eu estava a alucinar, deduzi ao perceber que retirava estas conclusões de cada vez que me permitia abrir os olhos. Não me conseguia mexer, a pequena tentativa de encher os pulmões de ar reforçavam as pontadas atrozes por cada um dos ferimentos. A única convicção que tinha era a de não resistir muito mais tempo contra a única defesa que me restava. Adormecer, deixar-me velar pela bênção de perder todos os sentidos.

Senti-o erguer-me sem o mínimo esforço, a robustez do seu corpo musculado e ausência de fusão nos passos extraordinariamente ligeiros debaixo do meu corpo inerte. Caminhou devagar até à entrada da gruta, pousou-me no chão e observou com ansiedade, sentado numa postura graciosa, esperando de mim um sinal, algo que se parecesse com a prova de que eu ainda estava ali. Medi a distancia que nos separava e no custo dilacerante do movimento tentei tocar-lhe a patorra que fazia quatro vezes o tamanho da minha mão, a meio caminho o meu braço caiu de novo imóvel.

“Esperaste por mim”…Protegida.

Os olhos aquosos semicerraram bruscamente, o felino ergueu-se e sem hesitação partiu pelo caminho que fizera para me trazer até ali. Esse momento invadiu-me de amargura, eu não queria que ele partisse, sem saber porquê, eu queria-o perto de mim. A sua figura ágil trespassou a orla das árvores e penetrou a escuridão sem sequer olhar para trás.

Gemi de frustração por me saber sozinha…O estranho de olhos claros não estava ali. A promessa que ainda soava na memória fora quebrada pela sua partida no momento em que mais precisara dele. Ele abandonou-me, e com ele, a minha indecifrável dormência. Então neste momento, soube que nada era o que parecia, que este mundo estava pleno de ilusões, pensamentos violados por desejos e estranhos cruéis. A veneração que lhe concedera era porém demasiado recente, reclamava ainda o pulsar de paixão pela sua figura austera e palavras doces, a certeza de que ele era importante para mim. Depois a vergonha chegou, aninhou-se no meu orgulho e despejou sobre as minhas maleitas a vaga do choro.

Passos… controlados e cautelosos vindos do desconhecido. A respiração acelerada que tentava manter estável chegava até mim muito antes de o saber próximo. O cheiro que lhe reconhecia afundou o meu pranto de carência. O corpo esguio e acouraçado debruçou-se sobre o meu com gestos cuidadosos, duas mãos grandes e quentes ergueram-me junto a um peito inquieto.

- Espera por mim. – Murmurou de rosto afundado no meu cabelo.