sábado, 9 de junho de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXVII

- Não lhe vais dar oportunidade de escolha? – Perguntou o estranho agora remetido para um tom sombrio. – Ela é assim tão importante que queiras tomar por ela uma decisão que nos afecta a todos?

- Olha à tua volta demónio. – Rugiu-lhe esbracejando em seu redor – Ela está em Talansilma. O único que está aqui a tomar decisões erradas és tu.

Por um momento vi-o descair os ombros, como se a fatalidade daquilo que lhe tinha dito fosse tão óbvia que nada do que ele pudesse dizer ou fazer fosse suficiente para o contestar. Olhou para trás na minha direcção, os olhos negros afunados numa expressão avaliadora que me encheu de dúvidas e receios que não conseguia justificar.

- Eu acho que não é nela que estão interessados, nenhum de vocês. – Retornou à sua opositora cruzando os braços num reafirmar de posição. – É a criação dela que vos está a deixar curiosos. Vou ser sincero, a mim também.

A mulher ergueu a sua cabeça esbelta num ímpeto ultrajado e semicerrou os olhos aquosos para a gruta antes de voltar a encara-lo.

- Seja como dizes, estamos interessados na criação. Qual é o teu interesse nela? – Inquiriu como se fosse realmente estranho o seu interesse em mim e não conseguisse abdicar da vontade por lá chegar antes que fossem óbvias as razões e as decisões irreversíveis. – Queres a fonte da criação para quê? Ela é dispensável. Não controla absolutamente nada.

- Eu não tenho de justificar os meus interesses. – Fez questão de realçar tomando-se de uma postura provocadora sem que isso o tornasse menos inflexível. – Estou disposto a fazer uma troca. A fonte pela criação.

Agora a gargalhada gelava-me o sangue nas veias. A figura esbelta da mulher moveu-se em redor do estranho como se o enlaçasse a cada volta num feitiço perverso que me deixava bastante desconfortável, por não ter coragem de a impedir e evitar que aquela conversa continuasse sem que eu tivesse nada a dizer, e eu não tinha de facto, mas sobretudo porque a ideia de estarem a ser discutidos assuntos que me envolviam e não ser capaz de fazer valer o que pensava acerca deles me estava a sufocar.

- Tu vais voltar para a escória pútrida de onde vieste, - Pronunciou-se languidamente de olhos imersos de malvadez. – e abandonar Ardaisil sem que ela tenha de presenciar o que nós fazemos a elfos ensanguentados, como tu, quando conspurcam as nossas terras com as vossas presenças repugnantes.

- Para quem se apresenta como um elfo, és deveras preconceituosa. – Devolveu de forma depreciativa mirando-a da cabeça aos pés. - És, como os teus, a herança inglória de uma corja de traidores. Não interessa a forma como te mostras, sei quem és e o que representas.

- Terá Ardacarnë descido tão baixo que envie até aqui alguém como tu? – Rodeou-lhe o rosto com um dedo de unha afiada como uma garra e que parou ameaçadora na sua garganta. – Diz-me porque devo deixar-te partir sem que leves marcada em ti mais uma morte?

- Porque também tu sabes quem eu sou. – Sorriu-lhe ignorando o perigo que eu via envolve-lo e o deixava ameaçadoramente exposto. – Não abandonavas Talansilma sem que te devorasse.

Agora era o choque das suas palavras que me preenchiam de pavor. De que estavam eles a falar? Elfos ensanguentados, traidores, mortes e o que queria ele dizer com aquela ameaça de a devorar? Onde me tinha eu enfiado? Quem era realmente aquele estranho e o que queriam todos eles de mim e da minha rua?

- Entregas a criação em troca da fonte… o que ganhas com isso? – Retornou ao que antes havia sido o ponto fulcral daquela conversa sinuosa retirando a garra da sua garganta com alguma relutância.

- Como disseste, ela não controla absolutamente nada. Não existe nenhum interesse especial nela como fonte, e a criação, eu não sou ingénuo, está no vosso território. – Agora dirigiam ambos um olhar fixo na minha direcção que me fez deslizar, desejar enterrar-me no chão e desaparecer. – Ela é neste momento dispensável, mas também não vou sair daqui de mãos a abanar. Fui eu quem descobriu o portal. Se regressar sem ela vão ser postas em causa as minhas intenções por estar no vosso território, ter esbarrado com uma fonte e não a apresentar em Delduwath.

Eu era dispensável. Aquela conversa acerca da criação e da fonte era finalmente elucidadora, era a minha rua que eles desejavam, todos eles. O resto fazia parte de uma história da qual eu não fazia parte, nem desejava fazer. Teriam de fazer melhor que aquilo se queriam tomar de mim aquilo que criara, aquilo que fazia parte de mim e da minha própria história. 


- Olha para ela… - Apontou para mim, encolhida junto ao chão – É patético que a queiras levar até Delduwath, separá-la do ponto de encontro e fingir que não tens nenhum interesse nisto.

Ele estava a perder a paciência. Via-o de sobrolho erguido e expressão cerrada, os punhos fechados com força e os ombros hirtos como um fuso.

- O meu interesse nela é pessoal. – Referiu num sussurro virando as costas e impedindo-me de lhe ver o rosto. – Nenhum de nós tem qualquer tipo de vantagem em ficar com ela.

Observei o sorriso depravado que inundou o rosto esbelto da mulher com verdadeiro pavor. O semblante harmonioso da sua expressão tornou-se perverso antes mesmo que as suas palavras o tornassem ofensivo.

- Vais esvaziar-lhe a mente? – Inclinou o rosto a dois palmos de distância do dele gracejando com as palavras como se retirasse delas um prazer pérfido – Sugar o que resta e deixá-la a apodrecer como uma pedinte nas valetas de Ardacarnë?

A mão que cerrou no pescoço esguio e a fez sufocar não era um aviso. Havia nele a intensão de a calar e nos olhos escuros refulgiam as chamas de um inferno que falava de morte. Ela cambaleou de mãos descaídas junto ao corpo sem se debater. O sorriso depravado nos lábios era demasiado cruel para que sentisse urgência em interferir e evitar o que julgava estar a acontecer. Então a luz surgiu vinda das sombras das árvores, um clarão em movimento que sulcava a terra com garras afiadas e um corpo possante. Um felino de dimensões gigantescas, branco como a neve e dentes expostos como verdadeiros punhais, rompeu na clareira com um rugido que me estilhaçou de terror e se abateu sobre eles como um manto. 

Submersos num nevoeiro de luz e fumo, deixei de os distinguir, parte dos movimentos era engolido naquela bruma espessa que tinha surgido sem saber de onde e explosões sucessivas de rugidos e vozes estridentes que pronunciavam palavras que não entendia faziam daquilo uma experiência pavorosa a que assistia impotente. Sabia que o estranho estava em desvantagem e que também não seria eu a salvá-lo. Podia fugir, entrar pela gruta e regressar incólume à rua mas algo me obrigava a ficar quieta, aparte, num testemunho apavorado, sabendo que tudo aquilo se devia a mim. Na minha frente a massa disforme de corpos bestiais e formas desconexas ribombava num combate efusivo. Distinguia a mulher como uma sombra, surgindo e desaparecendo como um fantasma de garras encrespadas que se mantinha na margem sussurrando de rosto hipnótico como uma bruxa que lançava encantamentos em surdina.

“Corre… foge para a rua… rápido”

A voz invadiu-me a mente como uma bofetada. Era a voz do estranho. O som das suas palavras sacudido pelo esforço em pronuncia-las enquanto duelava, e eu não o via apesar de saber que estava ali na minha frente, com aquela besta enorme de mandibulas ferozes que, era obvio, obedecia à mulher como se lhe pertencesse.

“VAI!!!”

Eu não me conseguia mexer. O corpo simplesmente não me obedecia como se me mantivesse paralisada de terror. Os meus olhos ardiam com o esforço por os manter abertos, atentos a cada movimento, a tudo o que se estava a passar na minha frente. E os sons, esses bombardeavam a minha mente com rajadas estrondosas que acentuavam o terror de passar a ser dirigido a mim aquele ataque diabólico.

“ Não me consigo mexer” - Tentei responder sem saber se ele me ouvia.

“ Concentra-te.” – Respondeu. A voz agora agonizando na minha cabeça numa súplica. – “Respira… Fecha os olhos.”

Assim fiz. Enchi o meu peito de ar, uma, duas vezes, até o sentir pleno e expelir tudo de uma vez. Uma pontada aguda insistia em dificultar a minha tentativa de concentração como se também o meu corpo zombasse da situação. Fechei os olhos e tentei de novo. Concentra-te. Lentamente, sabendo que na minha frente tudo se desmoronava com aquela luta, preenchi o meu peito de ar. O calor que concentrava com este esforço espalhou-se rapidamente pelos meus membros entorpecidos e acentuou de novo a percepção dos meus sentidos. Ergui-me junto à rocha ainda de olhos fechados. A entrada da gruta não estava longe, uns cinco passos e poderia alcançá-la. Oculta pela escuridão avancei, um passo de cada vez, caminhando lateralmente encostada à rocha como um lagarto assustado. Quando senti a minha mão vaguear no vão da entrada, abri os olhos e corri como uma louca para o seu interior. Os pés escorregavam na lama e aos tropeções me fui obrigando a erguer e continuar como se fugisse pela própria vida. Rompi pela cascata ensandecida pelo terror e cai do outro lado ofegando por ar como se também este fugisse na minha frente. Levantei-me, cai, rastejei e passei o portal para a rua. Vagueava ali uma escuridão sombria que devolvia até mim sopros gelados como se tudo estivesse suspenso e o eco da minha respiração despertasse algo muito maior que o meu medo.

“ Procura… o objecto da tua rua.”- Era um murmúrio. A voz que tocava a minha mente já não vibrava, era como se a escutasse muito longe, perdida numa memória do que antes tinha sido vibrante e cheio de vida.

Olhei em meu redor num desvario. O objecto da minha rua? A rua despida e gélida que não sustinha absolutamente nada do que antes tinha criado ali? Já não era a minha rua. Ao longe a porta cerrada que me mantinha presa a este mundo era uma imagem ténue e longínqua, uma impossibilidade na qual depositava toda a minha esperança. Tinha de a alcançar. Fugir dali e esquecer que alguma vez, tudo aquilo, tinha existido. O sonho, a rua, eu.  

“Espera.”- Um pedido desfeito de uma voz que quase já não chegava até mim. – “Não podes partir.”

Ignorei-o e obriguei-me a caminhar. Um passo de cada vez e chegaria à porta.

“Ele vai-te buscar. Procura o objecto…”

A voz abandonou a minha mente como um véu. Como se as palavras cálidas que haviam tocado os meus pensamentos os depusessem e restasse apenas o vazio do meu medo e das minhas duvidas. Ele já não existia. Nada daquilo iria existir do outro lado daquela porta. Olhei para os arcos funestos enquanto corria, a ausência da aurora numa memória dolorosa e o chão lustroso espraiando na minha frente uma despedida cruel. Havia tanto que se perdera, e no entanto as sobras eram ainda tão importantes para mim. Alcancei a porta com um sobressalto provocado pela pressa, levei a mão ao peito avolumando já a saudade na minha partida e enfiei a chave na fechadura com dificuldade. Um rugido rompeu pela rua atrás de mim como um trovão apressando os meus movimentos. Eles já estavam ali. Rodei a chave uma, duas…

“Fecha a porta.” – A voz regressou com todo o vigor à minha mente. O estranho voltara.

Ignora-o, exclamei de mãos a tremer no derradeiro movimento que me libertaria dali. Olhei para trás e escutei o avançar galopante de garras acelerando até mim pela rua. Dei a última volta com a chave antes de ouvir o próximo rugido. Estava atrás de mim, demasiado perto, terrivelmente perto. Lentamente, obriguei-me a encará-lo. Agachado a dois passos de distância estava um felino enorme, negro como uma azeitona madura e de expressão bestial inundada de expectativa.

“Confia.”  

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXVI

- E tu tens um sentido de oportunidade indecente. – Acusei-o num sussurro sibilante vendo-o recuar até à base pedregosa que emoldurava a entrada da gruta sem se delongar em dar mais enfase à sua chegada imprevista.

Segui-o sem hesitações. Já era óbvio que, independentemente, de não confiar em nenhum deles, este era o único que eu seguiria sem me questionar acerca das suas intenções. Não era uma questão de confiança, com ele, era uma questão de instinto.

- Sabes o que está daquele lado? – Perguntei-lhe observando-o estático e de olhar fixo nas sombras.

- Sei.

Escusava perguntar de novo. As suas respostas eram sempre frustrantes e tortuosas, sabia que não diria nada se não fosse já sua intenção fazê-lo. Como permaneceu em silêncio, limitei-me a ficar quieta ao seu lado. O tempo passava e com ele aumentava a minha ansiedade deixando pouco espaço para a paciência. Ouvia a sua respiração cadenciada e sentia, mais do que via, a forma como se mantinha hirto, encostado à parede rochosa como se fizesse parte da mesma. Esperei… esperei… e fartei-me de esperar, ganhando a minha incapacidade de ficar quieta uma dimensão quase insustentável.

- Vamos ficar aqui muito tempo? – Quebrei o silêncio, adivinhando o esgar que me dirigiu por ter falado naquele momento. – Porque é que temos de estar aqui escondidos?

- Shhh!!!

Apeteceu-me pontapear o mundo inteiro. Sentei-me no chão e cruzei os braços com o rol de ofensas a dardejar na minha mente. Por mim podiam estar ali fora cem novos estranhos! De que adiantava ficar ali escondida se mais tarde ou mais cedo eles descobririam o que guardava a gruta ou me encontrariam sozinha numa das minhas investidas para o seu mundo? Mais por rebeldia que por inconsciência agarrei numa pedra e atirei-a o mais longe que consegui na direção da floresta. Segundos depois tinha uma mão cerrada no meu pulso numa repreensão em surdina.

- Estás a magoar-me!!! – Rugi baixinho tentando em vão afrouxar-lhe os dedos que fincava na minha pele como um louco.

Antes que existisse qualquer tipo de resposta da sua parte, chegou-nos o som que rasgou o ar vindo da floresta. Uma gargalhada cristalina, como se sinos tinissem ao nosso redor e fustigassem cada recanto daquela clareira. O som mais belo e no entanto mais aterrador que alguma vez ouvira. Quedamo-nos os dois num impasse emudecido pelo medo e pela expectativa. Não muito longe do sitio onde nos encontrávamos escondidos, eu de unhas fincadas na sua mão e ele insensível no seu aperto doloroso no meu pulso, surgiu envolta numa aura luminosa a imagem de uma mulher. Não era bem uma mulher, nela existiam pormenores que ultrapassavam a simples descrição de uma figura feminina. Era parcialmente humana, contudo nada nela exibia os contornos pelos quais definimos algo como sendo comum entre nós. Era maravilhosa. Uma estatura engrandecida pela luz que a sua pele irradiava, num tom azulado e brilhante, era como se nela reflectisse a luz da lua, e a voz, aquela sinfonia que despertava em nós a vontade de nos libertarmos, de corrermos na sua direcção e abraçarmos a sua beleza até sentirmos que de alguma forma fazíamos parte dela. O rosto afunilado e de expressões delicadas era dominado pela claridade dos seus olhos rasgados que nos preenchiam com uma estranha sensação de segurança. O cabelo longo e sedoso, repleto de inúmeros vestígios da sua passagem pela floresta, caía como um manto negro nas suas formas esguias e beijava-lhe a cintura despida que, como o resto do seu corpo, exibia por entre pequenos trajes luminosos incrustados de milhares de pequenas joias que transpareciam na sua luz como pequeninas gotículas de água. Os passos ligeiros com que beijava o chão não produziam qualquer som e os movimentos fluidos pareciam traduções maravilhosas de um ser agraciado pela ausência de gravidade. Permaneceu assim, desinteressadamente parada na nossa presença, ignorando a forma ridícula como ambos nos mantínhamos estáticos apesar de ser óbvio que sabia perfeitamente onde estávamos.

- Podemos fingir que este encontro nunca aconteceu… - Dirigiu na nossa direcção sem olhar para o local onde estávamos escondidos como se fizesse questão de nos deixar pouco à vontade com a nossa própria predisposição em não revelarmos as nossas presenças. – Até quando a vais manter aqui escondida? Outros virão… outros com menos tolerância para essa tua insistência em quereres guardá-la só para ti.

Olhei para ele no escuro. Os meus olhos vislumbravam nas sombras a sua expressão tenaz e o aperto no meu pulso afrouxou quando ele se erigiu em toda a sua altura e avançou seguro pela clareira. Não fui capaz de o seguir. Eu sabia que aquele diálogo não me incluía e que a minha presença era, uma vez mais, um motor para que se enredassem em assuntos que eu não conseguia alcançar.

Observei-os do sítio onde ficara, emudecida, sem saber o que esperar. Aquela nova presença tão perto da gruta era tanto uma ameaça como um novo mistério, e eu sabia que indiscutivelmente era a minha existência ou a da minha rua que continuava a trazê-los até ali. A mulher, ou ser, elfo ou não, era sobretudo ininteligível. Quando o estranho se aproximou o suficiente para que ele próprio ficasse imerso da sua luz cintilante cerrei os punhos e sustive a respiração. Havia algo que eu percebera, ainda antes daquele encontro, que estava em desacordo com as minhas estranhas percepções. Não conseguia deslindar nenhuma particularidade que revelasse identidade ou presença nela, era como se nem sequer ali estivesse. Nenhum cheiro, nenhum som, nenhuma revelação física que a colocasse naquele espaço antes de se ter revelado a nós. E era claro que eu a tinha visto do outro lado apenas porque era esse o seu desejo enquanto tinha caminhado sozinha na orla das grandes árvores. Isso era desconcertante, agora que eu me tornara dependente daquilo que os meus sentidos me devolviam do exterior, não ser capaz de os utilizar a meu favor colocava-me de novo no papel da figura frágil que eu tentava abandonar a todo o custo. Havia porém outra coisa, algo mais definitivo do que um cheiro ou um som, eu tinha a certeza, absoluta, de que ela não era assim tão maravilhosa quanto se apresentava ali. Sabia que o estranho corria perigo e que eu não seria capaz de o escudar ou salvar de nada que viesse dela.

- Entrega-a e segue o teu caminho. – Disse-lhe num lamento frio e implacável. – Tenho tido contigo mais brandura do que é compreensível tendo em conta a tua posição. Não esperas que te deixemos caminhar pelo nosso território e ignorar a tua presença quando também a dela está em causa.

- E se eu não partir sem ela? – Contrapôs naquele seu tom irónico que eu já conhecia e deixava sempre margem para duvidar se estava realmente a levar a sério o que dizia.

Outra gargalhada surgiu no quebranto que nos rodeava. Desta vez não existia nada de belo naquele som. Era mais uma chicotada gelada que despertava o medo por não saber o que a fazia rir daquela forma.

- Julgas que não sei o que ela é? Que não sei o que guarda para além daquela gruta? – Vociferou de expressão alterada pela cólera e tudo nela perdeu a candura tornando-a de repente temível e arrojada. – Sabes quem eu sou?!!

- Sei.

- Eu também sei quem és e acho que isso basta para que repenses aquilo que estás a fazer aqui e quais vão ser as consequências para ambos.

Silêncio.


domingo, 18 de março de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXV

O reclamar da rua chegava-me durante a madrugada como um lamento. No meu peito vibravam ventos, sopros de mundos que eu não conhecia e de sonhos que eu ainda não tivera. Abeiravam-se da minha consciência vozes e imagens desconexas como fios de pensamentos perdidos. Agora existia um “antes” e um “depois”, uma espécie de conflito abismava a minha vontade de regressar. A quietude pairava na orla da velha porta como um fantasma, quase um aviso, de que não saberia o que iria encontrar do outro lado. Era cruel que me soubesse vulnerável ao fazê-lo, sabendo que não detinha qualquer poder sobre os acontecimentos dessa minha visita e que nada voltaria a ser igual depois disso.

A noite tinha caído há muito quando rodei a chave na fechadura perra e ruidosa, empurrei a porta sustendo a respiração e expeli o ar dos meus pulmões com antecipação ao tranca-la à minha chegada. Como sempre, o silêncio recebeu-me com aquele estranho peso no estômago e a sensação de que não estaria sozinha. Agora era inevitável que encarasse a mochila aos meus pés, a prova de que não sonhara com a sua existência, que não era a minha rua que me precedia mas sim um porto seguro que fazia parte de um universo criado por muitas outras pessoas. Pessoas que me assustavam com os seus próprios pensamentos e intenções, e apesar das minhas perguntas começarem a ter respostas, nenhuma delas parecia ser suficiente para sagar a minha curiosidade… e o meu medo.

Vesti-me como se aquela roupa fosse o que me sobrava da sensação de segurança que havia existido ali um dia. O calor que expandia através de mim para dar vida ao meu pequeno mundo já não abarcava além dos passos que me levavam até ao portão de âmbar, e o som destes viajava pelos cantos emudecidos da rua e retornava oco como o estalar de um galho seco. A aurora dormia na escuridão fazendo com que os arcos se agigantassem nas sombras e me cobrissem com tristeza, despidos das trepadeiras em flor. Era frio o caminho, como se tudo ali estivesse congelado, suspenso, e eu era a única coisa que se movia.

Recordava pelo caminho a chegada dos três estranhos. Trazia em mim todas as memórias, como se tivessem permanecido comigo, a visão, o cheiro, o som das suas vozes. Sabia que nunca sentira isso porque nada existira além de mim dentro da rua, porém era algo mais. Sentia-os vivos. Como se se tivesse criado uma extensão dos meus pensamentos que os conseguia de facto tocar, um elo que me ligava a cada um deles e que era minha escolha fazer-me notar e alcançá-los, ou permanecer em silêncio e evitar que sentissem a minha presença. Havia também a dúvida se, ao tentar contactar apenas um deles, os outros fossem interpelados da mesma forma. Isso era algo que eu evitaria determinantemente.

Teria de arranjar uma forma de iluminar o caminho se fosse continuar a aventurar-me daquela maneira e caminhar por sítios desconhecidos durante a noite. Sabia-me segura enquanto estivesse perto do portão, mas nada me inspirava segurança além da gruta que dava para a floresta. Atravessei o portão de âmbar e tentei refrear o acelerar da respiração ao ouvir a queda de água da cascata interior preencher o ar de forma ensurdecedora. Não gostava nada da ideia de ficar encharcada até aos ossos, a meio da noite e sozinha numa floresta gelada. Isto era outra coisa que teria de ter solução. Meti a mochila por cima da cabeça, saltei para o outro lado e aterrei na lama peganhenta. Arrastei-me até à extremidade rochosa com uma destreza vagarosa e movimentos que lembravam um ritual aborígene, sentei-me numa das pedras na margem daquele pequeno lago pantanoso e tentei secar o cabelo antes de o amarrar. A minha roupa protegeu-me da água gelada, o couro da vestimenta era impermeável e as botas, apesar de terem ficado lastimáveis com a travessia pela lama mantinham os meus pés quentes e secos no seu interior. Senti-me grata mais uma vez por aquele estranho presente, era naquele momento tudo o que eu tinha para me proteger do que me aguardava lá fora. Depois havia a promessa do terceiro estranho. “Amanhã vou estar aqui à tua espera”, dissera naquele tom vazio mas que dissipava qualquer dúvida. Não estava ali ninguém. Talvez se tivesse cansado de esperar e eu já tivesse regressado tarde.

Via a luz da lua pairar lá fora através da entrada da gruta banhando tudo com a sua luz prateada e tornando cada relevância um foco esbatido à distância. Eu não tinha pressa em caminhar até lá, era a curiosidade que me obrigava a dar cada passo apesar do terror que isso me provocava. Um presságio inundava a minha mente, assim que me visse lá fora, algo iria mudar e ficaria exposta. Algo estranho se passava comigo desde o dia em que a rua deixara de existir, como se eu própria tivesse deixado de existir da forma como sempre tinha sido. O meu corpo era por vezes um outro elemento, algo que eu avaliava e me retornava com enchentes de informação que com dificuldade tentava compreender. Os sons eram cada vez mais nítidos, estridentes e dolorosos. Os cheiros inundavam-me com tamanha brutalidade que me sentia nauseada sempre que inspirava as correntes do ar que me rodeava. A minha pele era sensível, um sensor apurado que me mantinha sempre alerta e obrigava tudo o resto a reagir às constantes tomadas de consciência como se necessitasse de permissão para me mexer. Era assustador e cada vez mais óbvio.

Vi a lua enorme quando alcancei as primeiras ramadas raquíticas que se espraiavam na minha frente ao chegar ao exterior. As árvores que se retorciam e inclinavam sobre as outras de forma incomum, pareciam-me ainda mais assombrosas àquela luz com as copas pouco enfolhadas e os galhos esticados para o céu como se o tentassem alcançar com o seu desalento. A ideia de me embrenhar ali era sufocante. Se ao menos pudesse confiar em alguém. O estranho de olhos claros era, dos três, aquele que eu afastava dos meus pensamentos com verdadeira agonia. Não havia em momento algum, algo que eu encontrasse daquilo que me recordava das suas aparições, que me inspirasse confiança. Ele era perigoso e eu não era de todo estúpida. Apesar do último estranho ser, provavelmente, a escolha acertada se tivesse de denominar alguém daquele mundo em que podia confiar, o estranho dos olhos escuros surgia sempre como um fôlego no meu já instalado desespero. Era instintivo, eu não sabia avaliar o quanto do que sentia era físico na sua presença, aquela sensação de segurança, o impulso de me manter demasiado perto, eram embaraçosas e para absurdo bastava que o escutasse como um tenor na minha cabeça sempre que me colocava em apuros ou o medo tomava conta dos meus pensamentos.

Era uma questão de coragem, avançar sem olhar para trás e fingir que correria tudo bem, sozinha no escuro, com as milhentas sinfonias daquela pestilenta floresta a ecoar-me aos ouvidos e nada nas mãos com que me defender se, e era provável, encontrasse pelo caminho algo que me atacasse e mostrasse o quão ridícula a minha presença era naquele mundo.

Ou uma questão de confiança, abrir a minha mente e expandir de uma vez a inegável vontade de pedir por ajuda e receber uma resposta, mesmo que sarcástica ou demasiado moralista. Eu sabia que tinha feito a minha escolha dias atrás, no momento em que o abismo me retribuíra uma centelha de esperança.

“Estás aí?”

Nada. Uma coruja rasava o chão com o piar estridente de um ataque calculado na escuridão e desaparecia de novo como se nunca tivesse passado ali. Estava sozinha.
Comecei por caminhar junto à orla das árvores, mantinha uma certa distância dos primeiros troncos fétidos e espreitava entre eles tentando encontrar algo parecido com um caminho, qualquer coisa que fosse definida o suficiente, para que se fosse necessário, pudesse voltar para trás sem me perder. Andei cautelosamente uns cem metros sem encontrar absolutamente nada, tempo suficiente para que se revelasse óbvio que tudo o que existia para lá daquele matagal moribundo era indecifrável. Voltei para trás com receio de deixar de ver a entrada da gruta e decidida a percorrer a mesma distância na outra direcção, ajustei a mochila nos ombros e foi quando ouvi, quase imperceptível, o som ritmado que me acompanhava do outro lado. Continuei a caminhar sem me deter com o medo, controlei a respiração e permiti que o instinto que indagara a meu respeito me guiasse. Eram quatro passadas por cada duas que eu dava em direcção à entrada da gruta. Cautelosas e sem hesitações como um compasso dos meus movimentos. Inspirei o ar demasiado saturado pelas folhas apodrecidas que cobriam o chão dentro da floresta e vislumbrei pelo canto do olho o pouco que o luar me devolvia do outro lado. O movimento lânguido e mutável era uma mancha esbranquiçada que surgia camuflada pelo nevoeiro rasteiro que a terra emanava e seguia atento em mim, desaparecendo e tornando a aparecer por entre os troncos robustos que nos separavam. Não conseguia parar de andar, sabia que isso iria desmascarar a minha tentativa de parecer ignorar a presença daquilo que me seguia. Era grande, disso não tinha duvidas. Uma forma esguia mas encorpada com um indiscutível odor a felino, mas também qualquer coisa que reconhecia como híbrida, um cheiro que se fundia noutro e que eu não conseguia separar. Continuamos a caminhar juntos, eu com uma aparente calma que obrigava ao esforço por controlar todos os meus sentidos, e o outro na sua vigia camuflada dos meus movimentos. Não me parecia que se demorasse muito mais naquela espécie de transição até ao momento em que me assaltasse do escuro… até que o deixei de ouvir. Assim como o conseguira identificar, percebendo o momento em que tinha aparecido, a sua presença tinha sido interrompida pela total percepção do vazio. Já não estava ali nada.

A prudência exigia que não cedesse totalmente a essa tomada de consciência. Eu não conhecia aquele mundo, muito menos os seres que nele habitavam, as suas capacidades ou as intenções com que surgiam no meu caminho. Retornei à entrada da gruta com a sensação que nunca me conseguiria encaixar ali. Era tudo assustadoramente complexo. Os medos e as frustrações eram uma pequena parte daquilo que a minha mente era capaz de produzir, isto sem ter de encarar qualquer estranho ou criatura nocturna, bastava-me a incapacidade de admitir a falta de controlo que detinha sobre os meus sentimentos.

- Ela anda aí a observar há algum tempo.

Olhei para trás com um baque que me parou o coração no peito e esbarrei na sua figura imóvel sobre a lateral pedregosa que escalava pelo monte que se elevava acima da gruta. Nas sombras como um espectro que não filtrava a luz da lua, devolvia-me o olhar negro com a respectiva expressão mordaz. Peguei na primeira pedra que encontrei junto aos meus pés e atirei-a com um rugir de fúria. Estava ali desde que eu tinha chegado ou teria dado pela sua presença ao se aproximar. Peguei noutra pedra e voltei a fazer dele o objecto da minha ira, acertei-lhe em cheio no peito e preparei-me para repetir o feito sem pensar duas vezes.

- Vamos ter de resolver esse teu problema. – Saltou para o chão protegendo a cara com o braço ao se aproximar a passos largos para me tirar a pedra da mão com um esticão impaciente. – Tens uma pontaria miserável.