domingo, 18 de março de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXV

O reclamar da rua chegava-me durante a madrugada como um lamento. No meu peito vibravam ventos, sopros de mundos que eu não conhecia e de sonhos que eu ainda não tivera. Abeiravam-se da minha consciência vozes e imagens desconexas como fios de pensamentos perdidos. Agora existia um “antes” e um “depois”, uma espécie de conflito abismava a minha vontade de regressar. A quietude pairava na orla da velha porta como um fantasma, quase um aviso, de que não saberia o que iria encontrar do outro lado. Era cruel que me soubesse vulnerável ao fazê-lo, sabendo que não detinha qualquer poder sobre os acontecimentos dessa minha visita e que nada voltaria a ser igual depois disso.

A noite tinha caído há muito quando rodei a chave na fechadura perra e ruidosa, empurrei a porta sustendo a respiração e expeli o ar dos meus pulmões com antecipação ao tranca-la à minha chegada. Como sempre, o silêncio recebeu-me com aquele estranho peso no estômago e a sensação de que não estaria sozinha. Agora era inevitável que encarasse a mochila aos meus pés, a prova de que não sonhara com a sua existência, que não era a minha rua que me precedia mas sim um porto seguro que fazia parte de um universo criado por muitas outras pessoas. Pessoas que me assustavam com os seus próprios pensamentos e intenções, e apesar das minhas perguntas começarem a ter respostas, nenhuma delas parecia ser suficiente para sagar a minha curiosidade… e o meu medo.

Vesti-me como se aquela roupa fosse o que me sobrava da sensação de segurança que havia existido ali um dia. O calor que expandia através de mim para dar vida ao meu pequeno mundo já não abarcava além dos passos que me levavam até ao portão de âmbar, e o som destes viajava pelos cantos emudecidos da rua e retornava oco como o estalar de um galho seco. A aurora dormia na escuridão fazendo com que os arcos se agigantassem nas sombras e me cobrissem com tristeza, despidos das trepadeiras em flor. Era frio o caminho, como se tudo ali estivesse congelado, suspenso, e eu era a única coisa que se movia.

Recordava pelo caminho a chegada dos três estranhos. Trazia em mim todas as memórias, como se tivessem permanecido comigo, a visão, o cheiro, o som das suas vozes. Sabia que nunca sentira isso porque nada existira além de mim dentro da rua, porém era algo mais. Sentia-os vivos. Como se se tivesse criado uma extensão dos meus pensamentos que os conseguia de facto tocar, um elo que me ligava a cada um deles e que era minha escolha fazer-me notar e alcançá-los, ou permanecer em silêncio e evitar que sentissem a minha presença. Havia também a dúvida se, ao tentar contactar apenas um deles, os outros fossem interpelados da mesma forma. Isso era algo que eu evitaria determinantemente.

Teria de arranjar uma forma de iluminar o caminho se fosse continuar a aventurar-me daquela maneira e caminhar por sítios desconhecidos durante a noite. Sabia-me segura enquanto estivesse perto do portão, mas nada me inspirava segurança além da gruta que dava para a floresta. Atravessei o portão de âmbar e tentei refrear o acelerar da respiração ao ouvir a queda de água da cascata interior preencher o ar de forma ensurdecedora. Não gostava nada da ideia de ficar encharcada até aos ossos, a meio da noite e sozinha numa floresta gelada. Isto era outra coisa que teria de ter solução. Meti a mochila por cima da cabeça, saltei para o outro lado e aterrei na lama peganhenta. Arrastei-me até à extremidade rochosa com uma destreza vagarosa e movimentos que lembravam um ritual aborígene, sentei-me numa das pedras na margem daquele pequeno lago pantanoso e tentei secar o cabelo antes de o amarrar. A minha roupa protegeu-me da água gelada, o couro da vestimenta era impermeável e as botas, apesar de terem ficado lastimáveis com a travessia pela lama mantinham os meus pés quentes e secos no seu interior. Senti-me grata mais uma vez por aquele estranho presente, era naquele momento tudo o que eu tinha para me proteger do que me aguardava lá fora. Depois havia a promessa do terceiro estranho. “Amanhã vou estar aqui à tua espera”, dissera naquele tom vazio mas que dissipava qualquer dúvida. Não estava ali ninguém. Talvez se tivesse cansado de esperar e eu já tivesse regressado tarde.

Via a luz da lua pairar lá fora através da entrada da gruta banhando tudo com a sua luz prateada e tornando cada relevância um foco esbatido à distância. Eu não tinha pressa em caminhar até lá, era a curiosidade que me obrigava a dar cada passo apesar do terror que isso me provocava. Um presságio inundava a minha mente, assim que me visse lá fora, algo iria mudar e ficaria exposta. Algo estranho se passava comigo desde o dia em que a rua deixara de existir, como se eu própria tivesse deixado de existir da forma como sempre tinha sido. O meu corpo era por vezes um outro elemento, algo que eu avaliava e me retornava com enchentes de informação que com dificuldade tentava compreender. Os sons eram cada vez mais nítidos, estridentes e dolorosos. Os cheiros inundavam-me com tamanha brutalidade que me sentia nauseada sempre que inspirava as correntes do ar que me rodeava. A minha pele era sensível, um sensor apurado que me mantinha sempre alerta e obrigava tudo o resto a reagir às constantes tomadas de consciência como se necessitasse de permissão para me mexer. Era assustador e cada vez mais óbvio.

Vi a lua enorme quando alcancei as primeiras ramadas raquíticas que se espraiavam na minha frente ao chegar ao exterior. As árvores que se retorciam e inclinavam sobre as outras de forma incomum, pareciam-me ainda mais assombrosas àquela luz com as copas pouco enfolhadas e os galhos esticados para o céu como se o tentassem alcançar com o seu desalento. A ideia de me embrenhar ali era sufocante. Se ao menos pudesse confiar em alguém. O estranho de olhos claros era, dos três, aquele que eu afastava dos meus pensamentos com verdadeira agonia. Não havia em momento algum, algo que eu encontrasse daquilo que me recordava das suas aparições, que me inspirasse confiança. Ele era perigoso e eu não era de todo estúpida. Apesar do último estranho ser, provavelmente, a escolha acertada se tivesse de denominar alguém daquele mundo em que podia confiar, o estranho dos olhos escuros surgia sempre como um fôlego no meu já instalado desespero. Era instintivo, eu não sabia avaliar o quanto do que sentia era físico na sua presença, aquela sensação de segurança, o impulso de me manter demasiado perto, eram embaraçosas e para absurdo bastava que o escutasse como um tenor na minha cabeça sempre que me colocava em apuros ou o medo tomava conta dos meus pensamentos.

Era uma questão de coragem, avançar sem olhar para trás e fingir que correria tudo bem, sozinha no escuro, com as milhentas sinfonias daquela pestilenta floresta a ecoar-me aos ouvidos e nada nas mãos com que me defender se, e era provável, encontrasse pelo caminho algo que me atacasse e mostrasse o quão ridícula a minha presença era naquele mundo.

Ou uma questão de confiança, abrir a minha mente e expandir de uma vez a inegável vontade de pedir por ajuda e receber uma resposta, mesmo que sarcástica ou demasiado moralista. Eu sabia que tinha feito a minha escolha dias atrás, no momento em que o abismo me retribuíra uma centelha de esperança.

“Estás aí?”

Nada. Uma coruja rasava o chão com o piar estridente de um ataque calculado na escuridão e desaparecia de novo como se nunca tivesse passado ali. Estava sozinha.
Comecei por caminhar junto à orla das árvores, mantinha uma certa distância dos primeiros troncos fétidos e espreitava entre eles tentando encontrar algo parecido com um caminho, qualquer coisa que fosse definida o suficiente, para que se fosse necessário, pudesse voltar para trás sem me perder. Andei cautelosamente uns cem metros sem encontrar absolutamente nada, tempo suficiente para que se revelasse óbvio que tudo o que existia para lá daquele matagal moribundo era indecifrável. Voltei para trás com receio de deixar de ver a entrada da gruta e decidida a percorrer a mesma distância na outra direcção, ajustei a mochila nos ombros e foi quando ouvi, quase imperceptível, o som ritmado que me acompanhava do outro lado. Continuei a caminhar sem me deter com o medo, controlei a respiração e permiti que o instinto que indagara a meu respeito me guiasse. Eram quatro passadas por cada duas que eu dava em direcção à entrada da gruta. Cautelosas e sem hesitações como um compasso dos meus movimentos. Inspirei o ar demasiado saturado pelas folhas apodrecidas que cobriam o chão dentro da floresta e vislumbrei pelo canto do olho o pouco que o luar me devolvia do outro lado. O movimento lânguido e mutável era uma mancha esbranquiçada que surgia camuflada pelo nevoeiro rasteiro que a terra emanava e seguia atento em mim, desaparecendo e tornando a aparecer por entre os troncos robustos que nos separavam. Não conseguia parar de andar, sabia que isso iria desmascarar a minha tentativa de parecer ignorar a presença daquilo que me seguia. Era grande, disso não tinha duvidas. Uma forma esguia mas encorpada com um indiscutível odor a felino, mas também qualquer coisa que reconhecia como híbrida, um cheiro que se fundia noutro e que eu não conseguia separar. Continuamos a caminhar juntos, eu com uma aparente calma que obrigava ao esforço por controlar todos os meus sentidos, e o outro na sua vigia camuflada dos meus movimentos. Não me parecia que se demorasse muito mais naquela espécie de transição até ao momento em que me assaltasse do escuro… até que o deixei de ouvir. Assim como o conseguira identificar, percebendo o momento em que tinha aparecido, a sua presença tinha sido interrompida pela total percepção do vazio. Já não estava ali nada.

A prudência exigia que não cedesse totalmente a essa tomada de consciência. Eu não conhecia aquele mundo, muito menos os seres que nele habitavam, as suas capacidades ou as intenções com que surgiam no meu caminho. Retornei à entrada da gruta com a sensação que nunca me conseguiria encaixar ali. Era tudo assustadoramente complexo. Os medos e as frustrações eram uma pequena parte daquilo que a minha mente era capaz de produzir, isto sem ter de encarar qualquer estranho ou criatura nocturna, bastava-me a incapacidade de admitir a falta de controlo que detinha sobre os meus sentimentos.

- Ela anda aí a observar há algum tempo.

Olhei para trás com um baque que me parou o coração no peito e esbarrei na sua figura imóvel sobre a lateral pedregosa que escalava pelo monte que se elevava acima da gruta. Nas sombras como um espectro que não filtrava a luz da lua, devolvia-me o olhar negro com a respectiva expressão mordaz. Peguei na primeira pedra que encontrei junto aos meus pés e atirei-a com um rugir de fúria. Estava ali desde que eu tinha chegado ou teria dado pela sua presença ao se aproximar. Peguei noutra pedra e voltei a fazer dele o objecto da minha ira, acertei-lhe em cheio no peito e preparei-me para repetir o feito sem pensar duas vezes.

- Vamos ter de resolver esse teu problema. – Saltou para o chão protegendo a cara com o braço ao se aproximar a passos largos para me tirar a pedra da mão com um esticão impaciente. – Tens uma pontaria miserável.