sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVI

Aguardámos o amainar do tempo abrigados no arco que separava a gruta do exterior. Depois das suas palavras eu dediquei-me apenas a observá-lo, perto, despreocupado e seguro das minhas avaliações. Não era curiosidade que nutria pela sua figura possante e mente luminosa, era apenas… eu não sabia o que lhe chamar. Os olhos límpidos dardejavam os meus até aos confins do meu ser, e era nisso que eu me detinha abalada no seu abraço despropositado. A profunda rendição a algo que completava aquilo que trazia em falta. Os meus sentimentos pelos seus.

- Sentes? – Interrompeu o meu magnetismo como quem apaga a luz no breu.

- Não sei o que sinto. – Expus com sinceridade, atordoada pela forma como interrompia a paz nos meus pensamentos. – O que queres que sinta?

- Aquilo que te dou. – Sussurrou junto á minha fonte, beijando-a de seguida como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Era isso que eu sentia agora. Os lábios frios num adormecimento profundo daquilo que me afligia, como se fosse necessário escudar-me de tudo o que ocupava espaço além de nós. – Sentes?

Sentia. De facto, naquele momento, era a coisa mais preciosa daquele estranho, a única certeza que chegava até mim ao vislumbrar o caminho que me separava da minha aventura.

- O meu mundo é teu.

As palavras apesar de não fazerem sentido, ditas de forma tão absoluta instalaram-se nas minhas certezas. Aquelas poucas certezas que alguém como eu transporta pela vida e se sustém inabalável do seu significado.


A chuva parou. Não percebi em que momento, entre o pousar da minha cabeça no seu ombro e o som blindado da sua respiração dentro de um peito metálico, a tempestade deu lugar ao silêncio. Gotículas brindadas pela luz do sol brilhavam no aço a que me agarrava tão ausente. Ele moveu-se e com ele, o meu corpo enrijecido pelo frio e pela imobilidade.

- É tarde. – Sentenciava a voz bela como que trazida pelo vento. – Vamos caminhar aos poucos e hoje ficamos aqui por perto. Estás a perder a vitalidade e eu não te quero colocar em perigo.

- Eu estou bem. – Menti ao atingir o despertar do tom de despedida nos seus lábios. Passei as mãos pelo cabelo escorrido e humedecido pela chuva que chegara até nós e apertei a capa em meu redor. – Eu aguento mais. Eu consigo acompanhar-te.

- Não tenhas pressa de entrar ali. O tempo não perdoa aqueles que se julgam mais fortes que aquilo a que estão destinados. – Sorriu sabendo que eu entendia perfeitamente ao que se estava a referir. – A tua fragilidade nunca foi uma dúvida. É um facto que deves ter em conta. Não podes alterar aquilo que és de um momento para o outro. A tua sobrevivência aqui não depende da tua vontade mas sim do quanto irás alcançar se souberes usar isso a teu favor.

- “Ninguém disse que ser frágil era mau”. – Repeti as suas palavras sentindo como estas se encaixavam depois de eu as compreender. - Entendo.

- Vais entender muitas coisas com ele longe de ti. – Cuspiu para o ar sem o cuidado de não me relembrar que essa presença, agora ausente do meu caminho, ainda se debatia na minha memória. - Aquele imbecil de orelhas em bico que não tem onde cair morto.

- Orelhas em bico?

Ele olhou-me de lado como se não entendesse onde estava a estranheza da sua declaração. As narinas dilatadas e os olhos fixos numa imagem extenuante de ódio e impaciência que deram lugar a um esgar de repugnância.

- Não lhe vês as orelhas bicudas e os olhos negros como um demónio? - Rugia de mão segura no punho do machado – O que viste naquele miserável?

Muito longe, perdida dentro de mim, morava a memória de um estranho de olhos escuros. Uma figura alta e vibrante, de sorrisos difíceis mas arrebatadores. Se me concentrasse um pouco nessa memória, reconhecia nessa imagem fugidia a irreverência da juventude numa voz pontuada de um ironismo infalível. Lembrava também a indolência dos seus passos na minha rua, o quebranto da pele amena e agora a sua ausência. O estranho de olhos escuros regressava até mim com a demora do tempo, como se houvera passado anos, uma memória de uma memória. A mochila inglória era a única coisa que preenchia o espaço em branco. A minha couraça, as sandálias… uma voz na minha cabeça? O “outro”?

- Não sei do que estás a falar. – Devolvi ainda debruçada naquilo que com dificuldade conseguia extrair de mim própria. Eu falara dele pouco antes, conhecia-o, ele estivera presente algures. – Não me lembro. Já foi há quanto tempo?

Ele sorriu. Como um tutor paciente que sabe esperar o fruto do esforço, acariciou-me o rosto com ternura e abandonou a irritação. Abraçou-me um momento e depois de me beijar a testa tornou a inundar os meus olhos de luz.

- Desculpa. Não é importante. – Disse num sussurro – Já foi há muito tempo.

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