quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXV

Sabia que não encontraria espaço para abarcar a razão. Não era o abismo negro e repleto de segredos que contemplava agora tão perto do rosto, antes o infindável espaço vazio para onde esgotava a réstia do meu desespero. As minhas mãos cerradas sob um peito de ferro e a crença de que nada mais havia a perder. Eu dar-lhe-ia o resto, aquilo que sobrava, o fumo que assolava a ausência dos meus sentimentos.

- Não tenho mais nada a perder. – Concluí com a voz reduzida a um murmúrio. O eco das palavras a perder-se no espaço insondável que nos rodeava. Não a reconhecia, aquela deposição de mim própria, no entanto, sabia que não era eu. – Leva-me lá para fora.

Ele aguardou em silêncio. As mãos esguias enfunadas nas minhas ancas com robustez e os olhos claros vaiados de glória.

- Até onde estás disposta a seguir-me? – A voz adocicada soprava o meu rosto numa carícia, a pergunta destituindo-me de medo, de ausências, até mesmo da resposta.

Escutava-o… a voz, a pele, o cheiro… escutava-o.

- Há coisas que não entendes. Eu procurei demasiado para agora correr o risco de te perder.

O ímpeto, a descrença…escutava-o.

- O mundo ali fora é enorme. A tua demanda por… - Interrompeu-se por um termo adequado – os “sentimentos” que te escapam. Eu não te posso prometer o que já perdeste.

Estranho… escutava-o: “não vás…espera por mim”… Frágil.

- Eu não te estou a pedir os meus sentimentos de volta. – Devolvi enquanto me forcei a afasta-lo, desta vez sem cerimonias. – Os sentimentos, esses que desapareceram, são meus. Não estão perdidos. Mostra-me o caminho.

Ignorei a forma como ele reagia aos meus movimentos. O esgar de impotência aquando da brusquidão com que os seus olhos abandonaram os meus e a minha voz regressara vigorosa a garganta ressequida pelo choro que continha a todo o custo. Dei por ele a auscultar cada um dos meus pensamentos, manso, terno e implacável.

- O que me dás em troca? – Escutei-o como um chicote nas minhas costas. Um puxão em rédea curta antes mesmo de dar o primeiro passo. Estaquei a pouca distância e encarei-o de novo.

- O que queres de mim? – Volvi dividida entre a possibilidade de falhar e do custo que isso acarretava. – O que queres quando aqui vens e me enches a cabeça de sonhos?

Quando ele sorriu… eu soube que estava perdida.

- Eu vou cobrar. Quando chegar a hora.

Senti no ar a advertência daquelas palavras. Estavam ditas, não como uma ameaça mas como algo definitivo. Aceitei-as com um aceno, desloquei-me na impotência e com esse gesto engoli o orgulho da minha liberdade. Estendi a minha mão para a dele e ele apressou-se a cerrar o punho em volta dela.


Cheguei ao portão de âmbar seguindo os passos firmes do estranho que seria o meu guia. No peito o coração batia de forma pujante e vigorosa, um alarme que me despertava todos os sentidos para aquilo que teria em breve pela frente. A entrada recôndita do interior da gruta, o ponto de partida, a frecha do meu ponto de encontro.

- A roupa que trazias ontem? – Perguntou de olhos postos naquilo que trazia vestido. As calças esfarrapadas e a blusa metade daquilo que antes me cobrira o torso inteiro. Ao seu lado parecia um pardal junto a um rei de rapina.

- Não sei. – Encolhi os ombros sem ter tido hipótese de ver respondida essa pequena falha na minha memória. – Foi o “outro” que ma deu.

- Ele que fique com os trapos. – Sibilou contrafeito, a expressão magnífica maculada pela raiva. - Vou dar-te mais do que ele alguma vez pôde sonhar ter. – Disse apertando a minha mão na sua. Ele estava gelado. Frio como um icebergue de metal. – Anda.

Eu via-me arrastada a seu lado. Não que o acompanhasse contra minha vontade, mas a sua mão relembrava-me a algema que não via, ou não queria ver. O escudo abaulado luziu ao ser erguido contra a queda de água, a luz cristalina num chorrilho de formas dispersas em nosso redor enquanto a transpúnhamos para o outro lado.

Madeira…couro…terra…

O som desproporcional de água chegou-nos a partir da saída da gruta. Os céus bramiam em tempestade como se me recebessem em discórdia e a chuva arrebatadora que fustigava o chão, enchendo-o de sulcos profundos, transformava a terra ressequida na continuidade da lama que trazia agarrada aos meus pés descalços. As sandálias, essas tinham partido na mochila, desaparecidas tal como a estranha armadura de couro. De queixo erguido e peito pleno de ar, ignorei as tremuras, o aperto na mão e também o nervoso estilhaçar da coragem.

- O que sabes acerca deste mundo? – A voz doce e repleta de ternura chegou-me como um bafo quente. Largou a minha mão e colocou o braço sobre os meus ombros. Era pesado, um fardo de ferro duro que se instalou comodamente e não me trazia aconchego, tão pouco o calor desejado após provar a sua voz. No entanto, eu cedia, algures…

- Sei que algo meu se encontra ali. – Indiquei com um aceno para o negrume que as árvores abrigavam sob os galhos agora gotejantes de chuva. - E sei que vou atravessar esse teu mundo até o encontrar. – Tentei que as minhas palavras não traduzissem o que dentro de mim se esvaía, a esperança de que não fosse tarde demais. – Sei que neste mundo existem pontos de encontro iguais ao meu. Que vocês, que chegaram aqui primeiro o dominam e se fundem num todo como fantasmas encurralados.

- Fatalista. – Apontou estreitando-me contra si. – Não é assim tão mau.

- E tu? – Olhei para ele, o rosto tão perto que a sua boca carnuda me impelia de um desejo profano, os olhos cravados nos meus e o adocicado toque da sua mente na minha. – O que sabes acerca deste mundo?

Ele era o centro do mundo. Qualquer que fosse a resposta. Estranhas eram as dúvidas que palpitavam dentro de mim sempre que me permitia afastar-me da segurança que ele me providenciava. Lindo, esbelto… perfeito. - Estranhos, eram quantos? - Afastei a fagulha que me arrepiava a pele, o calor não era externo, era dentro de mim. Tudo o resto podia gelar no esquecimento.

- Sei que tu chegaste. E que antes de ti não havia nada.

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