O tempo fora da rua escoa numa sucessão de horas embriagadas de genuína ansiedade. Avanço e recuo, para voltar a avançar diante da porta, as mãos suadas e respiração pesada, enquanto espero o momento oportuno em que as amarras da realidade me cedem a liberdade da rua e relembro… O meu peito enche com os detalhes do que aconteceu no dia anterior e permissivo o momento da minha entrada, não hesito e coloco a chave na fechadura.
A porta desliza nas dobradiças antes perras e barulhentas para se deter no velho batente que raramente fora empregado. Estaquei equilibrada no horizonte que me separa da sua existência e contemplei a imagem, a ostentação da minha obra naquela que sempre foi a sua glória. Uma rua de singular ausência de desordem. Os arcos em pedra escura, beijados pela luz renitente de uma aurora tendenciosa e perspicaz, as pedras lustrosas pelos anos dos meus passos e um silêncio contemplativo. A minha rua.
Entrei e fechei a porta atrás de mim num gesto ausente do costumeiro ruído do ferrolho, o velho carrasco rabugento não emitiu um único som. Não existia um único vestígio da impostura verdejante que estrangulara cada recanto da minha criação, como se nunca ali tivesse encontrado nada fora do lugar que lhe havia destinado, tal como uma ilusão, uma miragem, a panóplia florestal que me apavorou com a sua lenta devastação, desapareceu.
Aproximei-me cautelosa do banco onde costumo deixar a minha capa e passei-a pelos ombros, numa repetição reconfortante dos meus hábitos. Apesar de tudo ter voltado ao seu lugar, de me ser óbvio o reconhecimento da ordem de cada pormenor, alguma coisa faltava ali. Eu sabia que sim, como uma cor, um cheiro, um ínfimo pormenor que amamos profundamente e nos atinge com uma ausência dolorosa.
- Eles não voltam enquanto ele andar por aqui.
Sobressaltei-me com a viscosidade daquela voz que me chegou oculta pelas sombras dos arcos mais distantes. Um tom triste e pausado que soava a mágoa. Quando apareceu, era uma figura vergada pelo cansaço. O rosto belo, marcado por uma fadiga que lhe carregava o olhar luminoso e a lentidão dos passos na minha direcção uma sucessiva cadencia de movimentos.
- O que estás a fazer na minha rua? – Perguntei obrigando-me a permanecer no mesmo sitio e não recuar com a sua aproximação. Não queria voltar a senti-lo moldar-me os pensamentos e perder o controlo da minha consciência. Naquele momento não existia nada nele que me impelisse de desejos ou me toldasse a visão, era apenas uma figura abatida, a chama de um pavio que se recusa a acender. – Como vieste aqui ter?
- Vi-o trazer-te para a gruta, quando… quando te atacou daquela forma. – Falava por sopros, como se o esforço de cada palavra lhe escoasse a réstia de alento onde se amparava. Limitei-me a escuta-lo, a pouca distancia, impondo-me o esforço por não olhar directamente para os olhos baços que procuravam timidamente os meus. – Tinha de ver com os meus olhos. Saber se depois do que te fez, se voltavas aqui. - Eu vi no que ele transformou a tua rua.
- Estás a dizer que foi ele quem fez aquilo? – Questionei-o com a dúvida a instalar-se no peito. Era possível que assim fosse, que apesar da minha intuição se recusar a ceder quanto a essa possibilidade, aquilo que ele estava a dizer ter um fundo de verdade. Muito antes do seu aparecimento, o estranho de olhos escuros tinha estado ali, tinha rondado e vasculhado a minha rua, e tudo se sucedeu após o seu misterioso aparecimento.
- Ah sim… – Varreu o ar na sua frente com um gesto brusco, como se afastasse qualquer dúvida, um fantasma que assombrasse a certeza do que dizia. - Aquilo que encontrei aqui, não pode ter sido feito por ninguém senão os da espécie desse maldito. – Aproximou-se um pouco mais e eu recuei. A sua voz começava agora a mudar, mais arrojada, no tom que intimamente recordei e me arrepiou a nuca. – Eles estrangulam tudo, distorcem as mentes e sugam a vida que os rodeia. – Susteve de súbito a explicação exaltada de ódio como se lhe estivesse a escapar algo e insistiu com dois passos em meu encalço. - Não te quero assustar.
- Eu não estou assustada. – Menti e cerrei os punhos enquanto engolia o medo das suas palavras, verdadeiras ou não, existia nelas a neblina que me ocultava as suas intenções. O derradeiro passo que recuei encostou-me ao pilar frio que limitava o espaço entre ambos. – Ele não me fez nada de mal. Aquilo que aconteceu ontem foi… - Outro mistério, outra pergunta sem resposta. – Um acidente.
Ele abanou a cabeça ao escutar-me, baixou os braços e tornou à postura vergada de semblante cansado como se acabasse de desistir de algo para o qual não teria força para enfrentar.
- Eu sabia que ia ser assim.– Começou a andar lentamente na minha frente, percorria a extensão da largura da calçada e voltava a repetir os mesmos passos continuamente, enchendo-me da sensação de me encontrar encurralada. - É normal que não te lembres. Provavelmente faz parte do encantamento.
- Que encantamento? – Obriguei-me a perguntar. Era importante que alcançasse todas as respostas, a seu tempo, teria oportunidade de meditar acerca delas e chegar às minhas próprias conclusões. Não podia simplesmente entregar-me a um medo coactivo e aceitar que ambos me desejavam mal ou teriam uma qualquer intenção oculta a meu respeito. – Estás a falar do que me fez desmaiar?
- É mais do que isso. É a forma como ele já consegue controlar os teus pensamentos que me deixa impressionado.
- Ele não controla os meus pensamentos. – Vociferei levada pela injustiça de ele ser capaz de dizer tal coisa, depois de eu ter sido capaz de identificar todas as artimanhas com que me cercara no dia anterior, ser capaz de atribuir tal intenção a outra pessoa era repulsivo. – Quem o fez foste tu.
Para minha surpresa, o choque que a acusação lhe provocou atingiu-me como uma bofetada. Os olhos claros e cristalinos alteraram-se, fixos nos meus, transparecendo uma tristeza tão profunda que me fez sentir a pessoa mais cruel do mundo.
- Desculpa. – Apressei-me como uma criança que é surpreendida a esconder estilhaços debaixo do tapete. Eu não suportava ser a causa para aquela sua expressão dolorosa. – Eu estou confusa. Há muitas coisas que não compreendo.
- Eu sei. – Garantiu, mostrando-se cuidadoso. Um tanto forçado, mas sem deixar de parecer sincero. As mãos brancas e delgadas alcançaram o meu rosto e emolduraram-no delicadamente entre elas. – Eu imagino como deve ser difícil para ti, encontrar respostas num mundo onde ainda não encontraste o teu lugar. – Os dedos esguios penetravam agora o meu cabelo, descendo lentamente até se deterem a meio das minhas costas. – Sou eu quem tem de pedir desculpa. Devia ter chegado aqui mais cedo.
O toque frio da sua pele, quando tocava a minha daquela forma, produzia em absoluto uma reacção neutralizante. Sabia-me dividida entre a permissão de o apreciar intimamente, não apenas ele, mas também a resposta que facilmente se traduzia em mim na presença do outro estranho, e a sensatez de desconfiar de mim própria por o consentir daquela forma. Era ingénua por cada demonstração de proximidade. Caminhava a passos largos por caminhos repletos de perigos contra os quais não me sabia escudar.
Disseste que eles não iam voltar enquanto ele estiver aqui. – Arrisquei, reagindo de imediato. Afastei-o pelo peito numa tentativa pouco conseguida, não queria que fosse demasiado óbvia a intenção de que não era meu desejo que se mantivesse demasiado próximo. – Estavas a falar do quê?
- Dos teus sentimentos. – Respondeu sem se afastar. Pousou as mãos firmes na minha cintura e permaneceu exactamente no mesmo sítio. - Os portões estão vazios, não sobrou nada dentro deles. Ele libertou-os lá fora e não vão regressar enquanto o encontrarem perto de ti.
O significado das suas palavras apunhalou-me de dor. Então era essa a ausência na minha rua. Os sentimentos que durante todos estes anos fui ordenando cuidadosamente na construção da minha criação tinham-me abandonado. Já não controlava absolutamente nada. Agora, até a invasão selvática que preenchera ilusória todos os espaços onde antes se dispunham organizadas as moradas de cada um dos meus sentimentos me deixara sozinha, numa rua sem sentido, completamente vazia.
- Como os recupero? – Agarrei-me à única réstia de esperança que encontrei no peito. Uma pequenina luz que teimava brilhar no vazio. – Diz-me!!! – Exigi de mãos cerradas no seu peito metálico. – Como posso ir buscá-los? Onde?
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