segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXII

“Existem várias formas de descrever o que progrediu a partir deste momento, no entanto, o segredo permanece para sempre no teu olhar.” (Jinx)


Fiquei gelada. Senti o meu corpo ceder e por um momento deixei que aquela sensação de ausência me inundasse, depois estava demasiado escuro para que percebesse que mãos, quantas, me amparavam a queda.

Acordei junto à entrada da minha rua, deitada perto dos arcos do pensamento, repletos da era viçosa que espaçosamente se espraiava por cada recanto das minhas construções. Sentei-me devagar, poupando os movimentos com indolência e suspeita de que não estava ali sozinha. A luz obscura da aurora debruçava sombras dançantes em meu redor. Ao longe, um sopro de agua fugia através de um portão sem cadeado e trazia ate mim a visão de um mundo que eu vislumbrara, um mundo sustentado pelos sonhos e sentimentos, gerado pela criação intrincada de duas ordens. Estava lá e era tão real quanto a rua que sempre conheci.

Na minha cabeça surgiam as imagens entrecortadas dos acontecimentos, olhares fogosos e aparições na orla das árvores cerradas junto à clareira que escondia a gruta da cascata. Aqueles dois homens estranhos, tão diferentes e misteriosos. Olhei á minha volta perscrutando nas sombras um sinal de movimento e levantei-me devagar. A força que os movimentos exigiam para me conseguir sustentar esgotavam-se em cada partícula do meu corpo como se estivesse prestes a estilhaçar. Já não trazia a minha couraça vestida, aquele presente desconcertante desapareceu, estava nua debaixo da capa negra que abandonara sobre as rochas. Demasiado esgotada para me insurgir sobre o que isso significava ou me remeter a pensamentos ultrajados acerca da minha dignidade escorreguei pelo pilar de volta ao chão.

- Talvez ele tenha razão. – Sussurrei baixinho para a rocha onde pousara a cabeça – Talvez eu seja muito frágil…

Ouvi-o muito antes de ele se aproximar, os passos largos, firmes na terra quebrada e nos ramos tenros que cobriam o chão. Madeira…couro…terra…sangue… Parou na minha frente, via-lhe as botas gastas, e a respiração entrecortada quebrava o silêncio da ausência do tempo. Sentou-se na minha frente, gracioso e tenaz como se estivesse em constante mudança de movimentos moldando-os para sua comodidade. Amparou-me com um braço e sentou-me equilibrada pelos pulsos nas suas mãos grandes e firmes. Quedei-me de joelhos encostados nos dele e as mãos inertes sobre as suas botas.

- Toma. – Estendeu um frasquinho de vidro colorido num tom carmim na minha direcção. Era pequeno, em forma de bolbo, e cabia-lhe no punho fechado. – Bebe isto, tudo.

Não perguntei o que era, limitei-me a recebe-lo na minha mão sem muita observação, reparei que era quente e que borbulhava como se tivesse vida própria e, confiando cegamente naquele estranho especifico, levei-o aos lábios. Não tinha cheiro, e ao primeiro trago também não tinha gosto. Água quente pensei, ganhando coragem para emborcar o resto sem receios. Não esperava que me oferecesse nada milagroso que afastasse de repente todo aquele cansaço e preenchesse a minha falta de energia, de facto, não senti absolutamente nada nos primeiros segundos após voltar a olhar para o frasco vazio com propositada descrença. Então, as duas mãos que me equilibravam mantiveram-me firme no chão, quando enxameada por centenas de picadas ardentes, me remeti a vigorosas tremuras que estimulavam de uma só vez cada ponto nervoso do meu corpo.

- Já passa, não te assustes.

Ele tinha uma forma simples de apresentar o que para mim seriam verdadeiras ondas de terror. Eu não estava assustada, estava a aceitar com verdadeiro mérito o facto de morrer jovem, entre mundos, e queimada viva. – Os meus exageros transitam bastante entre os segundos que me submetem a algo que desconheço verdadeiramente. – A sensação de fogo que se espalhava pelas veias aceleravam os batimentos descompassados do meu peito ofegante, tudo em mim clamava entre a dor e a adrenalina. De repente parou… a pulsação acelerada do sangue latejava e preenchia o corpo cansado com uma energia vibrante e vigorosa.

- É uma experiência desagradável quando bebes pela primeira vez, eu sei. – Pegou no frasquinho que caiu no meu colo e guardou-o no bolso das calças. – Estás melhor?

Dispensei-me de lhe responder, flecti as mãos e os braços enrijecidos depois da arrebatadora “experiência desagradável” e sorri. Não que tivesse surgido entre nós nada que me permitisse partilhar o que realmente sentia depois de vivenciar algo daquele género, mas era quase impossível não me permitir exteriorizar o assombro pelo resultado. Era admirável, e misterioso como tudo o que provinha daquele mundo.

- O que se passou? – Perguntei-lhe sem permitir que se afastasse e me roubasse a oportunidade de perceber o que tinha acontecido depois ter perdido os sentidos.

Contrariando o que eu estava à espera, e tendo sido sempre óbvio que ele não era inclinado a dar grandes explicações ou a alongar-se em diálogos inoportunos, inspirou uma grande quantidade de ar e encolheu os ombros quando o libertou. Fixou-me e levantou a mão até ao meu rosto, afastando uma madeixa de cabelo que caía escorrida e me cobria os olhos.

- A culpa foi minha. – Começou por se considerar culpado com uma expressão de verdadeiro constrangimento, voltou a respirar fundo e afastou-se de mim, inclinando-se para trás apoiado nos cotovelos. – Eu não devia ter feito aquilo.

- Aquilo o quê? – Tentei recordar tudo o que se tinha passado momentos antes de ter desmaiado. Recordava acima de tudo e com uma grande intensidade os olhos vermelhos e as palavras que tinham inundado os meus pensamentos… depois nada. – Falares comigo nos pensamentos?

Ele mudou de posição e voltou a sentar-se direito na minha frente como se o tivesse picado com um alfinete.

- Não. Não é “isso”. – Negou como se falar acerca deste pormenor o deixasse desconfortável. – Ele estava a encantar-te… e eu, fiz a mesma coisa.

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