terça-feira, 24 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXIII

- Bom, se queres saber a verdade, é muito difícil perceber como e quando o fazem. – Pontuei sem deixar de observar aquela inesperada manifestação de embaraço. – Sei que aquele estranho o faz constantemente. Eu sinto-o enredar-me os pensamentos, faz-me desejar “coisas”.

Tossiu de forma brusca, dissimulando várias palavras que não me interessei em saber se pertenciam ao meu vocabulário, depois tornou à expressão branda e pegou nas minhas mãos como se o fizesse com bastante frequência.

- Existem muitas coisas neste mundo que eu te posso ensinar e levar a compreender. – Sentia o toque dos dedos quentes rodearem as palmas das minhas mãos delicadamente e refreei o prazer que isso me dava sem lhe abandonar os olhos. – As outras fazem parte das nossas próprias escolhas. É isso que não te posso mostrar ou enfiar nessa cabeça de vento.

Era um sorriso estreito e fugidio, mas era um sorriso. Soube com uma certeza incontornável que, desconhecendo tudo o resto, era aquele o verdadeiro impulso que me faria escolher o que procurar naquele mundo. Encontrar o motivo porque despertava em mim tamanho assombro em cada demonstração de luz naquele estranho, porque era especial para mim o facto de o ver sorrir daquela forma.

- O que aconteceu quando me encantaste? – Questionei sobrepondo as minhas dúvidas ao silêncio que nos circundava, à naturalidade com que aceitava o seu toque, abstraído com as minhas mãos nas dele e eu, confiando-lhas sem a menor hesitação. – Eu oiço-te na minha cabeça. Não são palavras… é como se…

- Os meus pensamentos se misturassem com os teus. – Completou e retirou as mãos do colo que sustinha as minhas. – Isso não sei explicar. Já te oiço há algum tempo.

- Ouves-me?

- Sim, os teus pensamentos interrompem os meus. – Descrevia deixando transparecer o quão irritado aquilo o deixava. - Sou obrigado a partilhar essa confusão de dúvidas existenciais e conclusões acerca do motivo de tudo, onde estás sempre a bater nas mesmas teclas e não chegas a lado nenhum.

- Ouves-me falar sozinha? – Tentei assimilar, dividida entre a mais profunda vergonha e o fascínio pela remota possibilidade daquilo que ele estava a relatar ser praticável. – Sempre?

- Felizmente não. – Gracejou com uma careta plausível – Ignoro-te a maior parte das vezes.

Não sabia dizer se aquilo me deixava mais aliviada ou, de certa forma, ofendida por considerar os meus pensamentos tão entediantes. Algo dentro de mim rugiu baixinho confrontado com a ideia de que o incomodava por pensar de certa forma.
Evitei olhar para ele enquanto debatia estas minhas fagulhas de desconsideração por mim própria. Se me visse como eu me vejo era natural que sofresse amargamente com uma presença tão irritante e enfadonha a inundar-lhe a cabeça com meditações desinteressantes cheias de causas e consequências acerca de tudo sem o poder evitar. Que pensar então, dos pensamentos cada vez mais frequentes que eu tinha acerca dele? O meu rosto incendiou instantaneamente.

- Estás a dizer que “isso” acontece a qualquer momento, mesmo quando eu não estou por perto? Não tem nada a ver com os olhos?

- Não. Aquilo que acontece através dos olhos é diferente. – Respondeu-me com paciência, esticando as pernas ao meu lado e deitou-se no chão da rua, tão quieto como se fizesse parte dela. – O que oiço na minha cabeça, são palavras soltas como impulsos. Às vezes são ideias, decisões, frases que nem sempre estão completas. Acho que são coisas que te marcam, ou que te são importantes e te obrigam a reagir.

- Mas… eu não te oiço. Só quando… - Tropecei nas palavras com a vergonha instalada na garganta como um pequeno torniquete. – Quando fazes aquilo com os olhos.

Silêncio.

- Não tens medo do que encontras nos meus olhos? – Murmurou tão baixinho que duvidei que estivesse a falar para mim. Como se ele próprio temesse a pergunta e não a resposta.

Observei-o estático na minha frente, os olhos fixos na minha aurora inebriada num fulgor ténue de silhuetas dançantes. O maxilar cerrado com firmeza num rosto que se moldara demasiado sério, ausente da mais pequena demonstração de emoção. Pensei como era fácil olhar para ele como um estranho e perder-me algures no labirinto de segredos que o cercavam e evocavam a minha curiosidade, sabia que ali morava o perigo de nunca encontrar uma saída através da bruma que o ocultava do mundo. Era sem duvida uma figura carregada de sombras e expressões frias, escudado por palavras que velavam um silêncio prolongado na sua própria solidão. Era um homem jovem, no auge da sua virilidade, todavia algo nele denunciava uma alma profundamente embebida no fardo de uma vida.
Existiam muitas razões para que tivesse medo dele. A que mais me causava receio era precisamente a sua chegada inesperada a um lugar que nunca partilhara com ninguém, ao único espaço verdadeiramente meu, e por onde ele se deslocava com suposto desinteresse. Outra era a estranha partilha dos meus pensamentos com alguém que, sendo um completo desconhecido, tinha acesso à nudez da minha intimidade. Não conhecia o motivo para que aquilo acontecesse, nem como era possível, muito menos como evita-lo. O facto de não ter hesitado em demarcar os seus próprios limites sem cortesias também se afigurava como um bom motivo para que não o subestimasse. Eu podia, em plena consciência, ter medo dele só pelo facto de fisicamente ser uma oponente a ter em fraca consideração. Ele era enorme, com pouco menos de dois metros, deitado preguiçosamente aos meus pés, as pernas compridas esticadas acima de um tufo verdejante de trevos sobre ervas daninhas, um tronco de ombros largos e braços robustos que eu conhecera fortes e vigorosos.
E depois os olhos escuros como dois fragmentos de ébano. Um abismo profundo de chamas e um poder inquestionável.

De tudo o que existia naquele mundo, e que eu desconhecia para que pudesse temer, os olhos dos “estranhos” que faziam parte dele, reservavam parte do mistério que envolvia a ordem e funcionamento em permanente equilíbrio da existência das duas ordens. Podia ter medo deles, era sensato que tivesse, do que escondiam e do que, com facilidade, colocavam nos meus pensamentos. Existia dentro de mim uma forma de me escudar disso, evitar providenciar acesso à minha mente e impedir aquela perigosa emissão de ideias antes que esse controlo me tornasse passível de ser influenciada. Era difícil alcançar uma plena consciência de que eu tinha capacidade para combate-lo, quando dois olhos claros como cristal num rosto de uma beleza prodigiosa me obrigavam a baixar a guarda e desejar que me tomasse até à infinidade do meu ser. Mas era possível.

A antítese gloriosa da escuridão era… diferente. Algo aconteceu no momento em que as chamas daqueles olhos negros invadiram e penetraram os meus. Podia lutar contra uma mente que cercava a minha e contornava os meus desejos como um punho que se cerra lentamente. Isto era distinto, era algo que simplesmente estilhaçava a minha consciência. Ouvia a sua voz límpida na minha cabeça como se sempre lá tivesse estado, reconhecia-lhe cada cadência grave, o cuidadoso vibrar das suas emoções no meu peito, percorrendo cada golfada de sangue nas minhas veias. Eu não tinha medo dos olhos dele, nem das vozes, ou dos significados de cada partilha involuntária. O que eu temia verdadeiramente era a ausência de todos eles, aquele segundo de trevas que me engoliu antes que alcançasse o que se encontrava daquele lado do abismo.

Talvez não estivesse preparada para tal. Talvez nunca viesse a estar.

- Não. Eu não tenho medo dos teus olhos. – Respondi por fim, sem denunciar qualquer dúvida quanto a essa incompreensível certeza. – Não me lembro do porquê de ter perdido os sentidos, mas sei que não tive medo quando me encantaste.

Ele não comentou e permaneceu em silêncio. Como se aguardasse em suspenso a conclusão da minha resposta.

- Não sei do que és capaz, nem como o fazes ou porquê. – Continuei a minha estranha digressão em voz alta, sentindo a facilidade com que transpunha em palavras a confusão que se ia acumulando na minha cabeça. – Vocês são diferentes, tu e o outro estranho. Com ele, eu consigo perceber como e quando modifica o que sinto, os meus desejos, sei que o faz para controlar o que penso acerca dele, e sobre ti. – Acrescentei, isolando esse pormenor para o contemplar mais tarde. – Utiliza os olhos para chegar até mim e depois… sinto medo do quanto cedo e do quanto ele retira. – Repeti estas últimas palavras até encontrar um significado onde se encaixassem, guardei-o junto aos outros e voltei a divagar. – Quando me encantaste, deixei de o sentir nos meus pensamentos.

- Tu sentes muitas coisas ao mesmo tempo. – Resmungou cruzando os braços por cima do peito e inclinou o rosto na minha direcção de sobrolho erguido. – Continua.

- Porquê? O que interessa o que penso sobre isto? – Libertei a minha muito contida frustração. – Vais ficar aí calado a ouvir-me e vou ficar sem respostas na mesma. Tanto faz o que penso sobre vocês. Continuam a ser dois estranhos.

Ele riu-se. Uma gargalhada sarcástica que ecoou pela rua e se perdeu através dos portões escancarados dos meus sentimentos agora perdidos e dispersos. Quando o silêncio regressou, ele estava de novo petrificado aos meus pés.

- Eu não sei o que aconteceu quando te encantei. – Falou de novo, arrepiando-me e fazendo-me saltar com o susto. – Não o faço muitas vezes.

Esperei impaciente pelo resto, como se o ar não me chegasse aos pulmões antes de ele libertar aquela sua espécie de esclarecimento desagradado.

- O que foi que me fizeste?

- Ele mostrou-te o que podes sentir, aquilo que podes desejar alcançar, o que podes ser… - Respondeu de olhar perdido nas partículas de poeira iluminada que descia dos arcos acima de nós, aos poucos adormecia a minha aurora poente, fadando a sua imagem translúcida que ia esmorecendo antes das suas ultimas palavras. – Eu mostrei-te o que tu és.

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