sábado, 9 de junho de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXVII

- Não lhe vais dar oportunidade de escolha? – Perguntou o estranho agora remetido para um tom sombrio. – Ela é assim tão importante que queiras tomar por ela uma decisão que nos afecta a todos?

- Olha à tua volta demónio. – Rugiu-lhe esbracejando em seu redor – Ela está em Talansilma. O único que está aqui a tomar decisões erradas és tu.

Por um momento vi-o descair os ombros, como se a fatalidade daquilo que lhe tinha dito fosse tão óbvia que nada do que ele pudesse dizer ou fazer fosse suficiente para o contestar. Olhou para trás na minha direcção, os olhos negros afunados numa expressão avaliadora que me encheu de dúvidas e receios que não conseguia justificar.

- Eu acho que não é nela que estão interessados, nenhum de vocês. – Retornou à sua opositora cruzando os braços num reafirmar de posição. – É a criação dela que vos está a deixar curiosos. Vou ser sincero, a mim também.

A mulher ergueu a sua cabeça esbelta num ímpeto ultrajado e semicerrou os olhos aquosos para a gruta antes de voltar a encara-lo.

- Seja como dizes, estamos interessados na criação. Qual é o teu interesse nela? – Inquiriu como se fosse realmente estranho o seu interesse em mim e não conseguisse abdicar da vontade por lá chegar antes que fossem óbvias as razões e as decisões irreversíveis. – Queres a fonte da criação para quê? Ela é dispensável. Não controla absolutamente nada.

- Eu não tenho de justificar os meus interesses. – Fez questão de realçar tomando-se de uma postura provocadora sem que isso o tornasse menos inflexível. – Estou disposto a fazer uma troca. A fonte pela criação.

Agora a gargalhada gelava-me o sangue nas veias. A figura esbelta da mulher moveu-se em redor do estranho como se o enlaçasse a cada volta num feitiço perverso que me deixava bastante desconfortável, por não ter coragem de a impedir e evitar que aquela conversa continuasse sem que eu tivesse nada a dizer, e eu não tinha de facto, mas sobretudo porque a ideia de estarem a ser discutidos assuntos que me envolviam e não ser capaz de fazer valer o que pensava acerca deles me estava a sufocar.

- Tu vais voltar para a escória pútrida de onde vieste, - Pronunciou-se languidamente de olhos imersos de malvadez. – e abandonar Ardaisil sem que ela tenha de presenciar o que nós fazemos a elfos ensanguentados, como tu, quando conspurcam as nossas terras com as vossas presenças repugnantes.

- Para quem se apresenta como um elfo, és deveras preconceituosa. – Devolveu de forma depreciativa mirando-a da cabeça aos pés. - És, como os teus, a herança inglória de uma corja de traidores. Não interessa a forma como te mostras, sei quem és e o que representas.

- Terá Ardacarnë descido tão baixo que envie até aqui alguém como tu? – Rodeou-lhe o rosto com um dedo de unha afiada como uma garra e que parou ameaçadora na sua garganta. – Diz-me porque devo deixar-te partir sem que leves marcada em ti mais uma morte?

- Porque também tu sabes quem eu sou. – Sorriu-lhe ignorando o perigo que eu via envolve-lo e o deixava ameaçadoramente exposto. – Não abandonavas Talansilma sem que te devorasse.

Agora era o choque das suas palavras que me preenchiam de pavor. De que estavam eles a falar? Elfos ensanguentados, traidores, mortes e o que queria ele dizer com aquela ameaça de a devorar? Onde me tinha eu enfiado? Quem era realmente aquele estranho e o que queriam todos eles de mim e da minha rua?

- Entregas a criação em troca da fonte… o que ganhas com isso? – Retornou ao que antes havia sido o ponto fulcral daquela conversa sinuosa retirando a garra da sua garganta com alguma relutância.

- Como disseste, ela não controla absolutamente nada. Não existe nenhum interesse especial nela como fonte, e a criação, eu não sou ingénuo, está no vosso território. – Agora dirigiam ambos um olhar fixo na minha direcção que me fez deslizar, desejar enterrar-me no chão e desaparecer. – Ela é neste momento dispensável, mas também não vou sair daqui de mãos a abanar. Fui eu quem descobriu o portal. Se regressar sem ela vão ser postas em causa as minhas intenções por estar no vosso território, ter esbarrado com uma fonte e não a apresentar em Delduwath.

Eu era dispensável. Aquela conversa acerca da criação e da fonte era finalmente elucidadora, era a minha rua que eles desejavam, todos eles. O resto fazia parte de uma história da qual eu não fazia parte, nem desejava fazer. Teriam de fazer melhor que aquilo se queriam tomar de mim aquilo que criara, aquilo que fazia parte de mim e da minha própria história. 


- Olha para ela… - Apontou para mim, encolhida junto ao chão – É patético que a queiras levar até Delduwath, separá-la do ponto de encontro e fingir que não tens nenhum interesse nisto.

Ele estava a perder a paciência. Via-o de sobrolho erguido e expressão cerrada, os punhos fechados com força e os ombros hirtos como um fuso.

- O meu interesse nela é pessoal. – Referiu num sussurro virando as costas e impedindo-me de lhe ver o rosto. – Nenhum de nós tem qualquer tipo de vantagem em ficar com ela.

Observei o sorriso depravado que inundou o rosto esbelto da mulher com verdadeiro pavor. O semblante harmonioso da sua expressão tornou-se perverso antes mesmo que as suas palavras o tornassem ofensivo.

- Vais esvaziar-lhe a mente? – Inclinou o rosto a dois palmos de distância do dele gracejando com as palavras como se retirasse delas um prazer pérfido – Sugar o que resta e deixá-la a apodrecer como uma pedinte nas valetas de Ardacarnë?

A mão que cerrou no pescoço esguio e a fez sufocar não era um aviso. Havia nele a intensão de a calar e nos olhos escuros refulgiam as chamas de um inferno que falava de morte. Ela cambaleou de mãos descaídas junto ao corpo sem se debater. O sorriso depravado nos lábios era demasiado cruel para que sentisse urgência em interferir e evitar o que julgava estar a acontecer. Então a luz surgiu vinda das sombras das árvores, um clarão em movimento que sulcava a terra com garras afiadas e um corpo possante. Um felino de dimensões gigantescas, branco como a neve e dentes expostos como verdadeiros punhais, rompeu na clareira com um rugido que me estilhaçou de terror e se abateu sobre eles como um manto. 

Submersos num nevoeiro de luz e fumo, deixei de os distinguir, parte dos movimentos era engolido naquela bruma espessa que tinha surgido sem saber de onde e explosões sucessivas de rugidos e vozes estridentes que pronunciavam palavras que não entendia faziam daquilo uma experiência pavorosa a que assistia impotente. Sabia que o estranho estava em desvantagem e que também não seria eu a salvá-lo. Podia fugir, entrar pela gruta e regressar incólume à rua mas algo me obrigava a ficar quieta, aparte, num testemunho apavorado, sabendo que tudo aquilo se devia a mim. Na minha frente a massa disforme de corpos bestiais e formas desconexas ribombava num combate efusivo. Distinguia a mulher como uma sombra, surgindo e desaparecendo como um fantasma de garras encrespadas que se mantinha na margem sussurrando de rosto hipnótico como uma bruxa que lançava encantamentos em surdina.

“Corre… foge para a rua… rápido”

A voz invadiu-me a mente como uma bofetada. Era a voz do estranho. O som das suas palavras sacudido pelo esforço em pronuncia-las enquanto duelava, e eu não o via apesar de saber que estava ali na minha frente, com aquela besta enorme de mandibulas ferozes que, era obvio, obedecia à mulher como se lhe pertencesse.

“VAI!!!”

Eu não me conseguia mexer. O corpo simplesmente não me obedecia como se me mantivesse paralisada de terror. Os meus olhos ardiam com o esforço por os manter abertos, atentos a cada movimento, a tudo o que se estava a passar na minha frente. E os sons, esses bombardeavam a minha mente com rajadas estrondosas que acentuavam o terror de passar a ser dirigido a mim aquele ataque diabólico.

“ Não me consigo mexer” - Tentei responder sem saber se ele me ouvia.

“ Concentra-te.” – Respondeu. A voz agora agonizando na minha cabeça numa súplica. – “Respira… Fecha os olhos.”

Assim fiz. Enchi o meu peito de ar, uma, duas vezes, até o sentir pleno e expelir tudo de uma vez. Uma pontada aguda insistia em dificultar a minha tentativa de concentração como se também o meu corpo zombasse da situação. Fechei os olhos e tentei de novo. Concentra-te. Lentamente, sabendo que na minha frente tudo se desmoronava com aquela luta, preenchi o meu peito de ar. O calor que concentrava com este esforço espalhou-se rapidamente pelos meus membros entorpecidos e acentuou de novo a percepção dos meus sentidos. Ergui-me junto à rocha ainda de olhos fechados. A entrada da gruta não estava longe, uns cinco passos e poderia alcançá-la. Oculta pela escuridão avancei, um passo de cada vez, caminhando lateralmente encostada à rocha como um lagarto assustado. Quando senti a minha mão vaguear no vão da entrada, abri os olhos e corri como uma louca para o seu interior. Os pés escorregavam na lama e aos tropeções me fui obrigando a erguer e continuar como se fugisse pela própria vida. Rompi pela cascata ensandecida pelo terror e cai do outro lado ofegando por ar como se também este fugisse na minha frente. Levantei-me, cai, rastejei e passei o portal para a rua. Vagueava ali uma escuridão sombria que devolvia até mim sopros gelados como se tudo estivesse suspenso e o eco da minha respiração despertasse algo muito maior que o meu medo.

“ Procura… o objecto da tua rua.”- Era um murmúrio. A voz que tocava a minha mente já não vibrava, era como se a escutasse muito longe, perdida numa memória do que antes tinha sido vibrante e cheio de vida.

Olhei em meu redor num desvario. O objecto da minha rua? A rua despida e gélida que não sustinha absolutamente nada do que antes tinha criado ali? Já não era a minha rua. Ao longe a porta cerrada que me mantinha presa a este mundo era uma imagem ténue e longínqua, uma impossibilidade na qual depositava toda a minha esperança. Tinha de a alcançar. Fugir dali e esquecer que alguma vez, tudo aquilo, tinha existido. O sonho, a rua, eu.  

“Espera.”- Um pedido desfeito de uma voz que quase já não chegava até mim. – “Não podes partir.”

Ignorei-o e obriguei-me a caminhar. Um passo de cada vez e chegaria à porta.

“Ele vai-te buscar. Procura o objecto…”

A voz abandonou a minha mente como um véu. Como se as palavras cálidas que haviam tocado os meus pensamentos os depusessem e restasse apenas o vazio do meu medo e das minhas duvidas. Ele já não existia. Nada daquilo iria existir do outro lado daquela porta. Olhei para os arcos funestos enquanto corria, a ausência da aurora numa memória dolorosa e o chão lustroso espraiando na minha frente uma despedida cruel. Havia tanto que se perdera, e no entanto as sobras eram ainda tão importantes para mim. Alcancei a porta com um sobressalto provocado pela pressa, levei a mão ao peito avolumando já a saudade na minha partida e enfiei a chave na fechadura com dificuldade. Um rugido rompeu pela rua atrás de mim como um trovão apressando os meus movimentos. Eles já estavam ali. Rodei a chave uma, duas…

“Fecha a porta.” – A voz regressou com todo o vigor à minha mente. O estranho voltara.

Ignora-o, exclamei de mãos a tremer no derradeiro movimento que me libertaria dali. Olhei para trás e escutei o avançar galopante de garras acelerando até mim pela rua. Dei a última volta com a chave antes de ouvir o próximo rugido. Estava atrás de mim, demasiado perto, terrivelmente perto. Lentamente, obriguei-me a encará-lo. Agachado a dois passos de distância estava um felino enorme, negro como uma azeitona madura e de expressão bestial inundada de expectativa.

“Confia.”  

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXVI

- E tu tens um sentido de oportunidade indecente. – Acusei-o num sussurro sibilante vendo-o recuar até à base pedregosa que emoldurava a entrada da gruta sem se delongar em dar mais enfase à sua chegada imprevista.

Segui-o sem hesitações. Já era óbvio que, independentemente, de não confiar em nenhum deles, este era o único que eu seguiria sem me questionar acerca das suas intenções. Não era uma questão de confiança, com ele, era uma questão de instinto.

- Sabes o que está daquele lado? – Perguntei-lhe observando-o estático e de olhar fixo nas sombras.

- Sei.

Escusava perguntar de novo. As suas respostas eram sempre frustrantes e tortuosas, sabia que não diria nada se não fosse já sua intenção fazê-lo. Como permaneceu em silêncio, limitei-me a ficar quieta ao seu lado. O tempo passava e com ele aumentava a minha ansiedade deixando pouco espaço para a paciência. Ouvia a sua respiração cadenciada e sentia, mais do que via, a forma como se mantinha hirto, encostado à parede rochosa como se fizesse parte da mesma. Esperei… esperei… e fartei-me de esperar, ganhando a minha incapacidade de ficar quieta uma dimensão quase insustentável.

- Vamos ficar aqui muito tempo? – Quebrei o silêncio, adivinhando o esgar que me dirigiu por ter falado naquele momento. – Porque é que temos de estar aqui escondidos?

- Shhh!!!

Apeteceu-me pontapear o mundo inteiro. Sentei-me no chão e cruzei os braços com o rol de ofensas a dardejar na minha mente. Por mim podiam estar ali fora cem novos estranhos! De que adiantava ficar ali escondida se mais tarde ou mais cedo eles descobririam o que guardava a gruta ou me encontrariam sozinha numa das minhas investidas para o seu mundo? Mais por rebeldia que por inconsciência agarrei numa pedra e atirei-a o mais longe que consegui na direção da floresta. Segundos depois tinha uma mão cerrada no meu pulso numa repreensão em surdina.

- Estás a magoar-me!!! – Rugi baixinho tentando em vão afrouxar-lhe os dedos que fincava na minha pele como um louco.

Antes que existisse qualquer tipo de resposta da sua parte, chegou-nos o som que rasgou o ar vindo da floresta. Uma gargalhada cristalina, como se sinos tinissem ao nosso redor e fustigassem cada recanto daquela clareira. O som mais belo e no entanto mais aterrador que alguma vez ouvira. Quedamo-nos os dois num impasse emudecido pelo medo e pela expectativa. Não muito longe do sitio onde nos encontrávamos escondidos, eu de unhas fincadas na sua mão e ele insensível no seu aperto doloroso no meu pulso, surgiu envolta numa aura luminosa a imagem de uma mulher. Não era bem uma mulher, nela existiam pormenores que ultrapassavam a simples descrição de uma figura feminina. Era parcialmente humana, contudo nada nela exibia os contornos pelos quais definimos algo como sendo comum entre nós. Era maravilhosa. Uma estatura engrandecida pela luz que a sua pele irradiava, num tom azulado e brilhante, era como se nela reflectisse a luz da lua, e a voz, aquela sinfonia que despertava em nós a vontade de nos libertarmos, de corrermos na sua direcção e abraçarmos a sua beleza até sentirmos que de alguma forma fazíamos parte dela. O rosto afunilado e de expressões delicadas era dominado pela claridade dos seus olhos rasgados que nos preenchiam com uma estranha sensação de segurança. O cabelo longo e sedoso, repleto de inúmeros vestígios da sua passagem pela floresta, caía como um manto negro nas suas formas esguias e beijava-lhe a cintura despida que, como o resto do seu corpo, exibia por entre pequenos trajes luminosos incrustados de milhares de pequenas joias que transpareciam na sua luz como pequeninas gotículas de água. Os passos ligeiros com que beijava o chão não produziam qualquer som e os movimentos fluidos pareciam traduções maravilhosas de um ser agraciado pela ausência de gravidade. Permaneceu assim, desinteressadamente parada na nossa presença, ignorando a forma ridícula como ambos nos mantínhamos estáticos apesar de ser óbvio que sabia perfeitamente onde estávamos.

- Podemos fingir que este encontro nunca aconteceu… - Dirigiu na nossa direcção sem olhar para o local onde estávamos escondidos como se fizesse questão de nos deixar pouco à vontade com a nossa própria predisposição em não revelarmos as nossas presenças. – Até quando a vais manter aqui escondida? Outros virão… outros com menos tolerância para essa tua insistência em quereres guardá-la só para ti.

Olhei para ele no escuro. Os meus olhos vislumbravam nas sombras a sua expressão tenaz e o aperto no meu pulso afrouxou quando ele se erigiu em toda a sua altura e avançou seguro pela clareira. Não fui capaz de o seguir. Eu sabia que aquele diálogo não me incluía e que a minha presença era, uma vez mais, um motor para que se enredassem em assuntos que eu não conseguia alcançar.

Observei-os do sítio onde ficara, emudecida, sem saber o que esperar. Aquela nova presença tão perto da gruta era tanto uma ameaça como um novo mistério, e eu sabia que indiscutivelmente era a minha existência ou a da minha rua que continuava a trazê-los até ali. A mulher, ou ser, elfo ou não, era sobretudo ininteligível. Quando o estranho se aproximou o suficiente para que ele próprio ficasse imerso da sua luz cintilante cerrei os punhos e sustive a respiração. Havia algo que eu percebera, ainda antes daquele encontro, que estava em desacordo com as minhas estranhas percepções. Não conseguia deslindar nenhuma particularidade que revelasse identidade ou presença nela, era como se nem sequer ali estivesse. Nenhum cheiro, nenhum som, nenhuma revelação física que a colocasse naquele espaço antes de se ter revelado a nós. E era claro que eu a tinha visto do outro lado apenas porque era esse o seu desejo enquanto tinha caminhado sozinha na orla das grandes árvores. Isso era desconcertante, agora que eu me tornara dependente daquilo que os meus sentidos me devolviam do exterior, não ser capaz de os utilizar a meu favor colocava-me de novo no papel da figura frágil que eu tentava abandonar a todo o custo. Havia porém outra coisa, algo mais definitivo do que um cheiro ou um som, eu tinha a certeza, absoluta, de que ela não era assim tão maravilhosa quanto se apresentava ali. Sabia que o estranho corria perigo e que eu não seria capaz de o escudar ou salvar de nada que viesse dela.

- Entrega-a e segue o teu caminho. – Disse-lhe num lamento frio e implacável. – Tenho tido contigo mais brandura do que é compreensível tendo em conta a tua posição. Não esperas que te deixemos caminhar pelo nosso território e ignorar a tua presença quando também a dela está em causa.

- E se eu não partir sem ela? – Contrapôs naquele seu tom irónico que eu já conhecia e deixava sempre margem para duvidar se estava realmente a levar a sério o que dizia.

Outra gargalhada surgiu no quebranto que nos rodeava. Desta vez não existia nada de belo naquele som. Era mais uma chicotada gelada que despertava o medo por não saber o que a fazia rir daquela forma.

- Julgas que não sei o que ela é? Que não sei o que guarda para além daquela gruta? – Vociferou de expressão alterada pela cólera e tudo nela perdeu a candura tornando-a de repente temível e arrojada. – Sabes quem eu sou?!!

- Sei.

- Eu também sei quem és e acho que isso basta para que repenses aquilo que estás a fazer aqui e quais vão ser as consequências para ambos.

Silêncio.


domingo, 18 de março de 2012

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXV

O reclamar da rua chegava-me durante a madrugada como um lamento. No meu peito vibravam ventos, sopros de mundos que eu não conhecia e de sonhos que eu ainda não tivera. Abeiravam-se da minha consciência vozes e imagens desconexas como fios de pensamentos perdidos. Agora existia um “antes” e um “depois”, uma espécie de conflito abismava a minha vontade de regressar. A quietude pairava na orla da velha porta como um fantasma, quase um aviso, de que não saberia o que iria encontrar do outro lado. Era cruel que me soubesse vulnerável ao fazê-lo, sabendo que não detinha qualquer poder sobre os acontecimentos dessa minha visita e que nada voltaria a ser igual depois disso.

A noite tinha caído há muito quando rodei a chave na fechadura perra e ruidosa, empurrei a porta sustendo a respiração e expeli o ar dos meus pulmões com antecipação ao tranca-la à minha chegada. Como sempre, o silêncio recebeu-me com aquele estranho peso no estômago e a sensação de que não estaria sozinha. Agora era inevitável que encarasse a mochila aos meus pés, a prova de que não sonhara com a sua existência, que não era a minha rua que me precedia mas sim um porto seguro que fazia parte de um universo criado por muitas outras pessoas. Pessoas que me assustavam com os seus próprios pensamentos e intenções, e apesar das minhas perguntas começarem a ter respostas, nenhuma delas parecia ser suficiente para sagar a minha curiosidade… e o meu medo.

Vesti-me como se aquela roupa fosse o que me sobrava da sensação de segurança que havia existido ali um dia. O calor que expandia através de mim para dar vida ao meu pequeno mundo já não abarcava além dos passos que me levavam até ao portão de âmbar, e o som destes viajava pelos cantos emudecidos da rua e retornava oco como o estalar de um galho seco. A aurora dormia na escuridão fazendo com que os arcos se agigantassem nas sombras e me cobrissem com tristeza, despidos das trepadeiras em flor. Era frio o caminho, como se tudo ali estivesse congelado, suspenso, e eu era a única coisa que se movia.

Recordava pelo caminho a chegada dos três estranhos. Trazia em mim todas as memórias, como se tivessem permanecido comigo, a visão, o cheiro, o som das suas vozes. Sabia que nunca sentira isso porque nada existira além de mim dentro da rua, porém era algo mais. Sentia-os vivos. Como se se tivesse criado uma extensão dos meus pensamentos que os conseguia de facto tocar, um elo que me ligava a cada um deles e que era minha escolha fazer-me notar e alcançá-los, ou permanecer em silêncio e evitar que sentissem a minha presença. Havia também a dúvida se, ao tentar contactar apenas um deles, os outros fossem interpelados da mesma forma. Isso era algo que eu evitaria determinantemente.

Teria de arranjar uma forma de iluminar o caminho se fosse continuar a aventurar-me daquela maneira e caminhar por sítios desconhecidos durante a noite. Sabia-me segura enquanto estivesse perto do portão, mas nada me inspirava segurança além da gruta que dava para a floresta. Atravessei o portão de âmbar e tentei refrear o acelerar da respiração ao ouvir a queda de água da cascata interior preencher o ar de forma ensurdecedora. Não gostava nada da ideia de ficar encharcada até aos ossos, a meio da noite e sozinha numa floresta gelada. Isto era outra coisa que teria de ter solução. Meti a mochila por cima da cabeça, saltei para o outro lado e aterrei na lama peganhenta. Arrastei-me até à extremidade rochosa com uma destreza vagarosa e movimentos que lembravam um ritual aborígene, sentei-me numa das pedras na margem daquele pequeno lago pantanoso e tentei secar o cabelo antes de o amarrar. A minha roupa protegeu-me da água gelada, o couro da vestimenta era impermeável e as botas, apesar de terem ficado lastimáveis com a travessia pela lama mantinham os meus pés quentes e secos no seu interior. Senti-me grata mais uma vez por aquele estranho presente, era naquele momento tudo o que eu tinha para me proteger do que me aguardava lá fora. Depois havia a promessa do terceiro estranho. “Amanhã vou estar aqui à tua espera”, dissera naquele tom vazio mas que dissipava qualquer dúvida. Não estava ali ninguém. Talvez se tivesse cansado de esperar e eu já tivesse regressado tarde.

Via a luz da lua pairar lá fora através da entrada da gruta banhando tudo com a sua luz prateada e tornando cada relevância um foco esbatido à distância. Eu não tinha pressa em caminhar até lá, era a curiosidade que me obrigava a dar cada passo apesar do terror que isso me provocava. Um presságio inundava a minha mente, assim que me visse lá fora, algo iria mudar e ficaria exposta. Algo estranho se passava comigo desde o dia em que a rua deixara de existir, como se eu própria tivesse deixado de existir da forma como sempre tinha sido. O meu corpo era por vezes um outro elemento, algo que eu avaliava e me retornava com enchentes de informação que com dificuldade tentava compreender. Os sons eram cada vez mais nítidos, estridentes e dolorosos. Os cheiros inundavam-me com tamanha brutalidade que me sentia nauseada sempre que inspirava as correntes do ar que me rodeava. A minha pele era sensível, um sensor apurado que me mantinha sempre alerta e obrigava tudo o resto a reagir às constantes tomadas de consciência como se necessitasse de permissão para me mexer. Era assustador e cada vez mais óbvio.

Vi a lua enorme quando alcancei as primeiras ramadas raquíticas que se espraiavam na minha frente ao chegar ao exterior. As árvores que se retorciam e inclinavam sobre as outras de forma incomum, pareciam-me ainda mais assombrosas àquela luz com as copas pouco enfolhadas e os galhos esticados para o céu como se o tentassem alcançar com o seu desalento. A ideia de me embrenhar ali era sufocante. Se ao menos pudesse confiar em alguém. O estranho de olhos claros era, dos três, aquele que eu afastava dos meus pensamentos com verdadeira agonia. Não havia em momento algum, algo que eu encontrasse daquilo que me recordava das suas aparições, que me inspirasse confiança. Ele era perigoso e eu não era de todo estúpida. Apesar do último estranho ser, provavelmente, a escolha acertada se tivesse de denominar alguém daquele mundo em que podia confiar, o estranho dos olhos escuros surgia sempre como um fôlego no meu já instalado desespero. Era instintivo, eu não sabia avaliar o quanto do que sentia era físico na sua presença, aquela sensação de segurança, o impulso de me manter demasiado perto, eram embaraçosas e para absurdo bastava que o escutasse como um tenor na minha cabeça sempre que me colocava em apuros ou o medo tomava conta dos meus pensamentos.

Era uma questão de coragem, avançar sem olhar para trás e fingir que correria tudo bem, sozinha no escuro, com as milhentas sinfonias daquela pestilenta floresta a ecoar-me aos ouvidos e nada nas mãos com que me defender se, e era provável, encontrasse pelo caminho algo que me atacasse e mostrasse o quão ridícula a minha presença era naquele mundo.

Ou uma questão de confiança, abrir a minha mente e expandir de uma vez a inegável vontade de pedir por ajuda e receber uma resposta, mesmo que sarcástica ou demasiado moralista. Eu sabia que tinha feito a minha escolha dias atrás, no momento em que o abismo me retribuíra uma centelha de esperança.

“Estás aí?”

Nada. Uma coruja rasava o chão com o piar estridente de um ataque calculado na escuridão e desaparecia de novo como se nunca tivesse passado ali. Estava sozinha.
Comecei por caminhar junto à orla das árvores, mantinha uma certa distância dos primeiros troncos fétidos e espreitava entre eles tentando encontrar algo parecido com um caminho, qualquer coisa que fosse definida o suficiente, para que se fosse necessário, pudesse voltar para trás sem me perder. Andei cautelosamente uns cem metros sem encontrar absolutamente nada, tempo suficiente para que se revelasse óbvio que tudo o que existia para lá daquele matagal moribundo era indecifrável. Voltei para trás com receio de deixar de ver a entrada da gruta e decidida a percorrer a mesma distância na outra direcção, ajustei a mochila nos ombros e foi quando ouvi, quase imperceptível, o som ritmado que me acompanhava do outro lado. Continuei a caminhar sem me deter com o medo, controlei a respiração e permiti que o instinto que indagara a meu respeito me guiasse. Eram quatro passadas por cada duas que eu dava em direcção à entrada da gruta. Cautelosas e sem hesitações como um compasso dos meus movimentos. Inspirei o ar demasiado saturado pelas folhas apodrecidas que cobriam o chão dentro da floresta e vislumbrei pelo canto do olho o pouco que o luar me devolvia do outro lado. O movimento lânguido e mutável era uma mancha esbranquiçada que surgia camuflada pelo nevoeiro rasteiro que a terra emanava e seguia atento em mim, desaparecendo e tornando a aparecer por entre os troncos robustos que nos separavam. Não conseguia parar de andar, sabia que isso iria desmascarar a minha tentativa de parecer ignorar a presença daquilo que me seguia. Era grande, disso não tinha duvidas. Uma forma esguia mas encorpada com um indiscutível odor a felino, mas também qualquer coisa que reconhecia como híbrida, um cheiro que se fundia noutro e que eu não conseguia separar. Continuamos a caminhar juntos, eu com uma aparente calma que obrigava ao esforço por controlar todos os meus sentidos, e o outro na sua vigia camuflada dos meus movimentos. Não me parecia que se demorasse muito mais naquela espécie de transição até ao momento em que me assaltasse do escuro… até que o deixei de ouvir. Assim como o conseguira identificar, percebendo o momento em que tinha aparecido, a sua presença tinha sido interrompida pela total percepção do vazio. Já não estava ali nada.

A prudência exigia que não cedesse totalmente a essa tomada de consciência. Eu não conhecia aquele mundo, muito menos os seres que nele habitavam, as suas capacidades ou as intenções com que surgiam no meu caminho. Retornei à entrada da gruta com a sensação que nunca me conseguiria encaixar ali. Era tudo assustadoramente complexo. Os medos e as frustrações eram uma pequena parte daquilo que a minha mente era capaz de produzir, isto sem ter de encarar qualquer estranho ou criatura nocturna, bastava-me a incapacidade de admitir a falta de controlo que detinha sobre os meus sentimentos.

- Ela anda aí a observar há algum tempo.

Olhei para trás com um baque que me parou o coração no peito e esbarrei na sua figura imóvel sobre a lateral pedregosa que escalava pelo monte que se elevava acima da gruta. Nas sombras como um espectro que não filtrava a luz da lua, devolvia-me o olhar negro com a respectiva expressão mordaz. Peguei na primeira pedra que encontrei junto aos meus pés e atirei-a com um rugir de fúria. Estava ali desde que eu tinha chegado ou teria dado pela sua presença ao se aproximar. Peguei noutra pedra e voltei a fazer dele o objecto da minha ira, acertei-lhe em cheio no peito e preparei-me para repetir o feito sem pensar duas vezes.

- Vamos ter de resolver esse teu problema. – Saltou para o chão protegendo a cara com o braço ao se aproximar a passos largos para me tirar a pedra da mão com um esticão impaciente. – Tens uma pontaria miserável.

domingo, 21 de agosto de 2011

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXIV

Ponderei as minhas próximas palavras com cuidado. Não sabia, de todo, do que estava ele a falar. A minha fragilidade era contígua a ambas as realidades, a diferença era a ausência de todos os escudos que, fora da rua, reunia ao meu redor. A minha quase arrogância era eficiente, a minha óbvia alienação também me mantinha à tona do que exteriormente me sufocava. Sabia que isso era uma ilusão, mas mais ninguém teria de o saber além de mim. Naquele momento, sentia que os meus escudos eram menos que fumo, um átomo de inconsciência num mundo completamente despido de tais subtilezas. Se eu tinha alguma primazia em mim era o excesso de argumentos com que me criticava constantemente e a tendência para o negativismo relacionado às minhas capacidades. Agora tinha uma sombra, uma figura de homem que se afirmava um assassino, apontando os meus pontos fracos como um engodo, um disfarce que a minha natureza dispunha sem que eu a controlasse.

- A que distância me sentiste quando cheguei? – Interrompeu roubando a minha atenção no seu tom neutro e sombrio. – Explica o que sentiste, por favor.

Suspirei alto e a bom som. Estava a ficar esgotada, em breve teria de sair dali e regressar. Posei a mochila atrás de mim, o seu peso abandonou os meus ombros deslizando com um baque até à base da minha coluna. Fechei os olhos e recuei ao momento em que caminhara da gruta para o exterior. A sinfonia de cheiros… aquela estranha invasão nos meus sentidos que alarmava cada recanto do meu corpo como se fosse demasiado pequeno para acumular toda aquela informação. Tentara separá-los, identificar cada um. Tinha procurado neles algo familiar, como se me fosse íntima aquela forma de sensorizar o espaço até limites que eu ainda não conhecia. Não lhe ia dizer o que procurava naquele momento ou a promessa que tinha feito.

- Eu sinto os cheiros de maneira diferente. – Comecei, abrindo os olhos para o encarar, sentado rígido na minha frente. – É como se ganhassem uma dimensão ilimitada de reconhecimento. Eu consigo distinguir vários cheiros e sei que alguns estão a muita distância do sítio onde estou.

- Mais? – Encorajou-me com aquilo que assumi no seu rosto por um sorriso. Os olhos rasgados na sua fenda ganhando uma expressão de entusiasmo com as minhas palavras. – Consegues dar forma a esses cheiros conforme chegam a ti?

- Não sei. Não é uma coisa que eu controle. – Confessei abraçando os joelhos com força e obriguei-me a continuar a relembrar essas percepções. – Quando essa informação chega até mim… ás vezes é demasiada. É como um murro em cada sentido, porque através do cheiro, acho que consigo medir a distancia, a velocidade a que se desloca e…

- E?

- Acho que consigo perceber a intenção daquilo que se aproxima de mim. – Despejei sem reservas à loucura que aquilo podia parecer. – Eu senti isso com o segundo estranho. Não sei se por mim, mas senti perigo por quem estava comigo naquele momento.

- Muito bem!!! – Uniu as palmas com um estalido que ecoou pela rua como uma rajada e me fez dar um salto apertando a mão no peito. Senti-o fitar-me demoradamente, inclinando a cabeça de lado como se tivesse encontrado algo inesperado no meu gesto. – Estás cansada.

- Eu estou bem. – Neguei sem grande ênfase. – Não quero desperdiçar esta oportunidade.

- Entendo.

- Queria perguntar-te uma coisa. – Procurei sentar-me mais confortável na sua frente, cruzei as pernas e apertei as mãos uma na outra. – Porque é que eles se odeiam?

- Essa é uma pergunta que terás de ser tu própria a responder numa outra altura. – Falou-me calmamente como se tivesse esperado aquela minha pergunta desde o início. - Eu podia responder-te através da minha visão das coisas, mas não era justo que formasses opiniões tendo como base a minha versão.

- A diferença entre eles… é assim tão grande?

- A energia que referiste quando os descreveste funciona como dois ímanes. São dois pólos opostos que se repelem. – As mãos brancas de dedos delicados exemplificavam metodicamente o que me descrevia com vigor. – Não sei como explicar isto a alguém que não caminhou entre nós. Existe um equilíbrio a manter entre essas energias e o nosso papel é fundamental para que tudo isto seja concebível.

- Estás a falar de uma guerra entre os dois pólos?

- A luta entre esses dois pólos é a razão para que exista um equilíbrio que proporcione estabilidade neste mundo. Se a balança pender para um dos lados e for a tendência de apenas uma das duas facções a ordenar a existência de Elenorë, tudo está perdido. Então, desde a Era das Sombras, quando nenhum de nós vislumbrava o poder dos sonhos, que Carmacil e Narmohtar se combatem.

Depois de ter suplicado e esperado angustiada por respostas, sentia-me à deriva.

- Devias ir descansar. – Sugeriu começando a cobrir-se com os mantos negros que o enlaçavam e dispersavam a sua imagem em movimentos incolores e desfocados. – Amanhã vou estar aqui à tua espera.

Levantei-me sentindo o entorpecimento nas pernas por estar sentada há muito tempo, peguei na mochila e coloquei-a de novo ao ombro. O estranho já estava de pé, bailando nas sombras que o ocultavam dos raios ténues da aurora preguiçosa que não nos brindara com o seu espectáculo de luz e beijava com recato as zonas mais altaneiras dos arcos de pedra. Ergui a mão em despedida sem saber bem onde ele estava e virei as costas sem olhar para trás.

- Elenorë. – Tentei pronunciar, caminhando para a porta que abandonava a minha rua, deliciando-me com a forma como se expandia através de mim o seu nome. – Parece-me o nome de algo maravilhoso.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXIII

Como não se moveu, percebi que esperava em troca que lhe confidenciasse o meu nome. Algo dentro de mim desejava ardentemente que lho concedesse, essa parte real da minha existência, uma identidade, tal como ele o fizera. Aparte do seu nome, não havia nada que eu pudesse reconhecer na sua figura, como uma miragem, um sopro, ele era aquele nome e dois olhos verdes como esmeraldas.

- Eu não tenho nome. – Ponderei sem saber como parecer coerente – Quando criei a minha rua não havia necessidade de ter um. A rua sou eu, e ela também não tem nome. Não preciso de afirmar a mim mesma quem sou através de um titulo que trago da realidade. Além disso, os nomes, tal como o aspecto, não são a nossa identidade. Não neste mundo.

- Ainda bem que referiste isso. – Pontuou, encaminhando-me pelos ombros de regresso à gruta – Isso do nome e do aspecto. Tens razão.

- Desculpa por não te retribuir com um nome, tu disseste-me o teu. – Voltei-me para o encarar. A mão nos ombros manteve-me a passo largo na direcção da cascata. – Parece-me injusto depois de teres sido o único a responder a algumas das minhas perguntas.

- Acho que nem todos nós temos respostas para te dar. Não sem respondermos primeiro às nossas próprias questões. – Seguiu na minha frente abrindo caminho junto à queda de água para que eu passasse sem ter de aterrar encharcada ao outro lado. - Isso é outro assunto que podemos discutir mais tarde se quiseres.

Caminhámos algum tempo depois de atravessamos o portão de âmbar em silêncio. Eu, dedicada às inúmeras perguntas que tinha a fervilhar na ponta da língua, e ele, na sua forma transitória e imperceptível sem me deixar margem para perceber ao que dedicava o seu emudecimento.

- Como são aqueles que chegaram antes de mim? – Perguntou sentando-se imóvel num dos primeiros bancos junto aos arcos que ultimavam a calçada até à porta da realidade.

- São diferentes. – Foi a primeira coisa que consegui replicar para os descrever. Tão diferentes como a água do vinho. – Sei pouco sobre eles. O primeiro é…muito estranho. Misterioso, com olhos escuros que afundam num abismo de fogo… - Mirei-o pelo canto do olho. Desconfiava que contando isto a alguém não se acreditassem nas minhas palavras. – e trouxe-me uma mochila com roupa. Sinto-me mais segura quando ele está aqui ou quando o oiço… a voz dele, - Corrigi, tentando a custo reservar aquele pequeno pormenor que invadia a minha mente com a sua voz, só para mim. – acalma-me. E enerva-me também.

- Homem ou elfo? – Perguntou como quem pergunta as horas.

- Elfo? – Embasbaquei meio perdida. – Como os das historias?

Surpreendeu-me com o que me pareceu uma gargalhada, algo abafado e demasiado curto para ficar no ouvido. Depois regressou à pose solene, pousando as mãos nos joelhos enrolados no manto esvoaçante como num casulo.

- Estás a falar a sério. – Concluí observando-o aguardar pela minha resposta. – Não sei. Acho que nunca lhe vi as orelhas. É alto, de cabelo escuro e comprido, e veste umas roupas feitas de uma pele muito leve. Do mesmo material das roupas que me trouxe na mochila. – Tentava reunir todos os pormenores da sua imagem, mas também da sua personalidade, na minha cabeça. – Ele é forte. Faz-me acreditar que também sou.

- Ardacarnë… o reino vermelho. É de lá que vem o teu amigo elfo.

- Ele não é meu amigo. – Apressei-me assim que senti as bochechas afoguear. – É um estranho. Nem sei se é um elfo como dizes.

- Todos somos estranhos, por agora. – Aquiesceu com um gesto sombrio através da mordaça. – Fala-me dos outros.

- O outro é perigoso. Aprendi da pior maneira, acredita. – Sentei-me a dois passos dos seus pés, a meio da calçada. – Ele utiliza a mente, não sei como o faz. Quando está por perto perco a posse dos meus pensamentos, como se a única coisa verdadeiramente importante fosse agradá-lo… - De novo as bochechas. Passei as mãos no rosto fingindo-me cansada e continuei. – Ele é indescritível. Toda aquela luz… e os olhos. É como se nele brilhassem todas as estrelas do céu.

Calei-me envergonhada por ter acabado de dizer aquilo em voz alta e não fui capaz de continuar.

- Não é teu amigo?

- Não!!! – Neguei como se acabasse de ser acusada injustamente de um acto terrível. – Ele brinca com os meus sentimentos, altera a minha forma de agir. Mete-me coisas na cabeça!!!

- Então, tal como o outro, não merece a tua confiança. – Estendeu as duas mãos na minha direcção, sustendo-as no ar como uma balança - Dois estranhos em quem não confias.

- Eu não sei se sou capaz de confiar em alguém. – Apertei as mãos uma na outra com força. – Existe neles uma espécie de energia que interfere com o meu estado de espírito. São opostos.

- Dividem-te. – Comentou com convicção. – Dividida tornas-te mais tendenciosa e cedes à energia que te domina.

Sem ter como avaliar a sua intenção ao dizer aquelas palavras, soube que eu própria teria levado uma eternidade a entender o que aquilo significava e quanto da sua conclusão era, sem sombra para dúvidas, a verdade. A tendência que eu sentia quando estava na presença de ambos os estranhos vacilava sobre padrões que eu não conseguia distinguir, como que esvaziada da minha própria vontade, eu era arremessada consoante a sua dança febril de ódios e vantagens, pensamentos e cedências. Quando apareciam sozinhos e nenhuma oposição oferecia perigo ao acesso ao meu discernimento, eu nunca duvidava que naquele momento, aquela era a voz da razão.

- Para comandares a tua vontade vamos ter de regressar ao início. – Falou por fim, deixando-me espaço para encaixar os meus pensamentos com a calma que até ali me escapara. – Mas antes, quero que saibas o meu papel nisto tudo.

Toda a minha atenção se focou na imagem exotérica do meu companheiro. Aquilo que era visível da sua figura tornou-se cada vez mais nítida até conseguir observa-lo por inteiro. Um homem de porte altivo envergava todos aqueles véus. De olhos esbugalhados, observei-o retira-los um por um sem conseguir emitir um som. O contorno esguio do tronco, os braços compridos e vigorosos, um pedaço de pele clara como neve junto à orla da mordaça, o pescoço direito e altivo da sua postura superior, as pernas longas, as mãos compridas a retirarem o capuz que desvendou um cabelo curto cor de fogo. Porem, a mordaça continuou a cobrir-lhe o rosto.

- Sou um assassino. Um ladrão. – Encolheu os ombros sem muita consideração por se ter classificado daquela forma. – A minha visão deste mundo é feita pelas sombras, sigo através dos espaços por onde ninguém ousa caminhar.

- Porquê? – Murmurei avassalada por aquele momento e pela sua inesperada confissão.

- Há muito tempo que aqui estou e conheço esta forma de vida entre duas realidades. É a minha natureza… - Olhou para mim transparecendo alguma tristeza. - Onde me encaixo aqui.

Acenei afiançando a minha compreensão. Mais uma vez, provava a mim mesma que não tinha jeito nenhum para avaliar as pessoas. Por muito que ele se afirmasse cruel, ou desvendasse a sua pérfida natureza, não existira um momento em que eu me tivesse sentido em risco ou o adivinhasse tentado em invadir-me os pensamentos.

- Todos nós temos características que delineiam a nossa natureza. Aquilo que para nós se demonstra espontaneamente é o símbolo interior que nos indica o caminho por onde seguimos a nossa viagem neste mundo.

- Então não somos nós quem decide?

- Não. – Recusou sem deixar que a minha pergunta se demorasse entre dois. - Isso trazes dentro de ti, e não pode ser corrompido por nada que te afronte deste lado. Poderás ser completamente oposta àquilo que és, naturalmente, para lá daquela porta. – Apontou para a saída da rua tornando a fitar-me com os seus grandes olhos verdes. – Tu por exemplo… não consegues negar em nada a tua natureza.

- Que sou frágil? – Tentei adivinhar com verdadeira anuência pela possível avaliação à minha figura franzina e mente tão facilmente corrompível.

- Faz parte sim. – Acenou com firmeza. – É isso que deixas transparecer. Um engodo penso eu, e que estás longe de controlar, se até tu própria acreditas nisso.

- Não estou a entender o que estás a tentar dizer com isso. – Confessei com a cabeça às voltas.

- Isso é o que faz de ti um óptimo exemplo da primazia dos caçadores.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXII

Outra vez. Três… Quatro com o felino negro. Em quantos dias?

Ele olhava para mim através da fenda que lhe descobria os olhos com suspeita curiosidade. Sentia-me novamente exposta, observada até ao ínfimo pormenor. Ao contrário do comportamento hesitante e ansioso aquando das aproximações dos estranhos anteriores, este revelava uma calma cuidadosa, como se contivesse nos seus movimentos velados a ausência de qualquer género de sentimento, controlando-os e sufocando a sua existência num escudo impenetrável.

- Eu… desculpa. – Atrapalhei-me, evitando focar a minha visão na sua figura disforme que me enchia de nervosismo e desconfiança. – Acho que não é necessário. Quer dizer, a tua ajuda, eu já tenho quem me vá ensinar.

Ele não se mexeu um milímetro, continuando a olhar-me letargicamente com o manto de pontas desfiadas a bailar-lhe junto aos tornozelos. Eu não acreditava que as minhas palavras o afastassem, ou que ele simplesmente acreditasse que havia quem tivesse chegado antes dele para me ajudar, mas, talvez isto se repetisse constantemente e ele não viesse a ser o ultimo estranho a abordar-me quando me aproximava da fronteira daquele mundo. Talvez eu viesse a compreender porque era importante lidar com todas estas presenças em meu redor.

- Quem és tu? – Perguntei-lhe num ímpeto cauteloso apertando os punhos atrás das costas – Porque estás aqui?

- Faço um favor.

Outro estranho cheio de mistérios. Desarmei a minha postura, de ombros descaídos em concordância com a minha dificuldade em retirar respostas acerca das coisas que me pareciam ser simples. Eu não escondia quem era, na verdade nunca tinha tido essa escolha, uma vez que desconhecia por completo todas aquelas possíveis presenças, mundos ou interesses. Eu apenas conhecia a minha rua. A rua que deixara de ser minha para passar a ser apenas uma passagem para algo maior e complexo, o género de coisa que eu gostava de manter ausente das minhas habituais visitas introspectivas.

- Estou farta disto sabes? – Dirigi-lhe, falando a meio tom com ambos, ele, e os meus pensamentos. – Farta das vossas respostas absurdas. Das vossas artimanhas e inconveniências que eu não quero realmente compreender. Só preciso que me digam para onde devo ir. – Pontapeei um aglomerado raquítico de galhos secos que ainda se mantinham presos ao solo acinzentado. - Não deves saber porque estou aqui, mas eu explico-te. A minha presença aqui é uma coincidência infeliz, que se prende com o facto de eu ter uma rua… - Esta parte era mais complicada e demasiado intimista para partilhar de animo leve com um estranho que acabara de surgir na minha frente – Desapareceram-me “coisas” que quero recuperar. E estão por aí. – Apontei por cima do seu ombro estático. – O problema é que ninguém é capaz de me dizer onde estou!!! E porque andam todos preocupados com a minha chegada e com a forma como chego a essas “coisas”!!!... E depois são essas vossas… - Gesticulei os dedos bailando junto aos seus olhos sem encontrar um termo – Eu nem sei de onde vocês vêm!!!

- Nandëondo.

- Desculpa? – Refreei a sequência do meu discurso inflamado, suspensa entre a apoteose do meu infortúnio com a palavra que ele murmurara. – O que disseste?

- Nandëondo. É de onde eu venho. – Tornou a repetir ligeiramente mais alto, a voz pendente na neutralidade. Aquela podia ser a voz de qualquer pessoa. Uma voz sem identidade.

- Ah… - Emudeci depois de ele ter acabado de me dar uma resposta.

- Tu estás em Talansilma. – Abarcou a floresta e a cordilheira com um gesto amplo ao nosso redor. - Uma zona despovoada a sudoeste do continente Ardaisil.

- Estamos num continente? – Aproximei-me, assoberbando o meu peito de entusiasmo pelas primeiras respostas que via respondidas. – De que tamanho? Esta zona… Como se divide todo o território?

- Calma. – Pediu apertando o manto ao seu redor como se tivesse receio de se ver descoberto á luz do dia. – Eu respondo-te a todas as tuas perguntas. Uma de cada vez, por favor.

- Desculpa… mas é a primeira vez que me respondem. – Abracei-me a mim própria, entalando as mãos com os braços e obrigando-as a manterem-se paradas com tanta emoção. – É complicado. Ultimamente não sei em quem confiar e ninguém me dá respostas acerca de nada.

- Então temos de descobrir quais são as perguntas que deves fazer. – Aproximou-se com passos seguros até mim e colocou a mão enluvada no meu ombro, sem peso, cheiro ou movimento, quase imperceptível. – Primeiro vamos regressar à tua rua. Não tenhas medo. – Interceptou o meu receio por aquela proposta com serenidade. – Eu não te quero mal.

- Como te chamas? – Arrisquei sem pensar. Aquela era uma pergunta importante para mim. Algo a que eu pudesse referir-me com certezas. Um nome no escuro.

- Eu tenho muitos nomes. – Respondeu num sussurro que lhe escapou pelos lábios amordaçados no tecido negro. - Alguns já me esqueci… Para ti sou Ollem.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXI

“Parto as minhas correntes para me aprisionar a ti” (Ollem)

Quando interrompi a paz da rua, apressada pela porta singular e me detive à sua entrada, o espaço estático que me devolvia o reconhecimento dos meus sentimentos estava vazio. Uma ausência atroz de vida e de movimento no seu interior era o reflexo das minhas dúvidas. Eu não sabia o que sentia, ou o que viria a sentir de cada vez que regressava à rua. Ao meu lado esquerdo, sobre o poial lustroso da pedra negra estava a mochila à minha espera. Eu já não trazia a capa sobre os ombros, o meu refúgio já não fazia sentido quando todos os meus sentimentos haviam partido e se encontravam perdidos no desconhecido. A única protecção segura seria a confiança num dos estranhos. Caminhei até aos arcos e encostei o corpo na sua forma rígida sentindo o frio enregelar-me os ossos. A aurora estava ausente dos meus pensamentos. Nenhuma forma de brilhantismo ou de ideais a trariam de volta ao antigo esplendor. Retirei da mochila a roupa grosseira que havia sido um presente inesperado do estranho de olhos escuros e dentro dela estavam ainda as duas partes de uma adaga partida envolta num pedaço bafiento de linho. Observei-a uma última vez antes de a tornar a envolver e esconde-la debaixo de um dos bancos que dividia os dois primeiros arcos. Vesti a minha couraça com maior destreza da segunda vez, a complexidade dos passos e cruzamentos das fivelas surgiam-me de maneira familiar ao relembrar como o vira faze-lo. As botas contudo eram diferentes, já não eram os dois despojos vergonhosos que me caíam pelas pernas e me faziam arrastar os pés. Senti como isso me fazia recair numa espécie de contentamento, por me saber acarinhada daquela forma, ser minimamente importante para que se preocupasse com o meu bem-estar. Ele era intrigante. Os seus pensamentos medidos e cuidados por detrás da imensidão de um abismo negro, demasiado profundo. Perdia-me sem respostas nas suas palavras, e perdia também a capacidade de ser eloquente sempre que me aventurava a questionar o que ele acharia de mim.

Caminhei sem pressa pela rua. Estava sozinha a cada passo. Os portões escancarados em toda a extensão do meu percurso até chegar ao portão de âmbar. O cheiro e o som inegável da cascata no seu interior em contraponto às batidas ruidosas do coração no meu peito. Acariciei o colibri imóvel no interior da matéria refulgente e procurei dentro de mim o impulso por tornar a atravessar o outro mundo.

Não hesitei ao transpor a cortina de água e aterrei encharcada, porém de pé, no outro lado. Escorri o cabelo e amarrei-o com um nó junto à nuca, a couraça não deixara entrar agua portanto estava parcialmente molhada e não completamente. Apertei as presilhas da mochila junto ao corpo e avancei para o exterior. A brisa fugaz de todos os cheiros do que se escondia além do maciço de árvores cerradas na orla da floresta chegava a mim com a intensidade de um fumo espesso, repleto de estórias… confuso… estranho… mas que eu conseguia identificar. Cada um deles separando-se na sua essência, privando com os meus sentidos ao chegar a mim, a origem, a matéria, a distância…

Chegada ali, imóvel nesse meu reconhecimento invulgar do que me atingia, aguardei. Ele pedira que esperasse por ele e sem o questionar, seria exactamente isso que eu faria. Pensei que estaria ali perto, tinha de ter entrado na rua para me deixar a mochila com a roupa mas, pesando os acontecimentos, era prudente que não me aventurasse à sua procura. Inspirei o ar profundamente, aquele bafo ameno que rompia através dos troncos maciços na procura de algo que apaziguasse a minha espera. Os cheiros que procurava não chegavam até mim, nenhum deles.

Terra…Couro…Madeira…nada.

Então um sopro ténue, um pequeno pontuar de movimento por detrás da rocha escurecida que rompia o chão entre dois carvalhos distantes. Depois mais perto, o ondular da erva rasteira e quebradiça que trazia até mim aquilo que os olhos astutos não conseguiam desvendar. Recuei dois passos lentos mas alerta a cada indício que me roçava a pele e a deixava sensitiva aos estranhos pormenores do que a mim chegava. Sentia um rodopiar à minha volta, um pequeno vórtice que me encurralava num espaço ínfimo à entrada da gruta. Parou de repente e deixei de o sentir.

- Quando foi que me sentiste? – Sibilou num murmúrio quase inaudível.

Rodopiei sobre mim mesma localizando a voz abafada que sussurrava na sombra atrás de mim. O vulto estreito e incolor era uma sobreposição da rocha húmida do interior da gruta, como se fizesse parte da mesma, uma extensão camaleónica do que o abarcava.

- Quem és tu? – Ouvi-me questionar perdendo a noção do que me prendia ainda ao chão e me impedia de fugir dali a sete pés.

Com passos mudos observei-o ganhar vida ao caminhar na minha direcção, as vestes negras como um corvo fundiam-no e metamorfoseavam o espaço que o antecedia com a simplicidade da transparência, um lampejo de substância a cada movimento para depois perder o rumo da sua real localização. Era um ser etéreo mas autêntico. Um homem alto e esguio de rosto coberto por uma mordaça que encabeçava a sua inacreditável vestimenta, revelando apenas os olhos verdes como duas esmeraldas que tudo transpunham, que desnudavam sem entraves tudo quanto fosse seu desejo desvendar.

- Eu… sou quem te vai ensinar.