sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXIV

O tempo fora da rua escoa numa sucessão de horas embriagadas de genuína ansiedade. Avanço e recuo, para voltar a avançar diante da porta, as mãos suadas e respiração pesada, enquanto espero o momento oportuno em que as amarras da realidade me cedem a liberdade da rua e relembro… O meu peito enche com os detalhes do que aconteceu no dia anterior e permissivo o momento da minha entrada, não hesito e coloco a chave na fechadura.
A porta desliza nas dobradiças antes perras e barulhentas para se deter no velho batente que raramente fora empregado. Estaquei equilibrada no horizonte que me separa da sua existência e contemplei a imagem, a ostentação da minha obra naquela que sempre foi a sua glória. Uma rua de singular ausência de desordem. Os arcos em pedra escura, beijados pela luz renitente de uma aurora tendenciosa e perspicaz, as pedras lustrosas pelos anos dos meus passos e um silêncio contemplativo. A minha rua.
Entrei e fechei a porta atrás de mim num gesto ausente do costumeiro ruído do ferrolho, o velho carrasco rabugento não emitiu um único som. Não existia um único vestígio da impostura verdejante que estrangulara cada recanto da minha criação, como se nunca ali tivesse encontrado nada fora do lugar que lhe havia destinado, tal como uma ilusão, uma miragem, a panóplia florestal que me apavorou com a sua lenta devastação, desapareceu.
Aproximei-me cautelosa do banco onde costumo deixar a minha capa e passei-a pelos ombros, numa repetição reconfortante dos meus hábitos. Apesar de tudo ter voltado ao seu lugar, de me ser óbvio o reconhecimento da ordem de cada pormenor, alguma coisa faltava ali. Eu sabia que sim, como uma cor, um cheiro, um ínfimo pormenor que amamos profundamente e nos atinge com uma ausência dolorosa.

- Eles não voltam enquanto ele andar por aqui.

Sobressaltei-me com a viscosidade daquela voz que me chegou oculta pelas sombras dos arcos mais distantes. Um tom triste e pausado que soava a mágoa. Quando apareceu, era uma figura vergada pelo cansaço. O rosto belo, marcado por uma fadiga que lhe carregava o olhar luminoso e a lentidão dos passos na minha direcção uma sucessiva cadencia de movimentos.

- O que estás a fazer na minha rua? – Perguntei obrigando-me a permanecer no mesmo sitio e não recuar com a sua aproximação. Não queria voltar a senti-lo moldar-me os pensamentos e perder o controlo da minha consciência. Naquele momento não existia nada nele que me impelisse de desejos ou me toldasse a visão, era apenas uma figura abatida, a chama de um pavio que se recusa a acender. – Como vieste aqui ter?

- Vi-o trazer-te para a gruta, quando… quando te atacou daquela forma. – Falava por sopros, como se o esforço de cada palavra lhe escoasse a réstia de alento onde se amparava. Limitei-me a escuta-lo, a pouca distancia, impondo-me o esforço por não olhar directamente para os olhos baços que procuravam timidamente os meus. – Tinha de ver com os meus olhos. Saber se depois do que te fez, se voltavas aqui. - Eu vi no que ele transformou a tua rua.

- Estás a dizer que foi ele quem fez aquilo? – Questionei-o com a dúvida a instalar-se no peito. Era possível que assim fosse, que apesar da minha intuição se recusar a ceder quanto a essa possibilidade, aquilo que ele estava a dizer ter um fundo de verdade. Muito antes do seu aparecimento, o estranho de olhos escuros tinha estado ali, tinha rondado e vasculhado a minha rua, e tudo se sucedeu após o seu misterioso aparecimento.

- Ah sim… – Varreu o ar na sua frente com um gesto brusco, como se afastasse qualquer dúvida, um fantasma que assombrasse a certeza do que dizia. - Aquilo que encontrei aqui, não pode ter sido feito por ninguém senão os da espécie desse maldito. – Aproximou-se um pouco mais e eu recuei. A sua voz começava agora a mudar, mais arrojada, no tom que intimamente recordei e me arrepiou a nuca. – Eles estrangulam tudo, distorcem as mentes e sugam a vida que os rodeia. – Susteve de súbito a explicação exaltada de ódio como se lhe estivesse a escapar algo e insistiu com dois passos em meu encalço. - Não te quero assustar.

- Eu não estou assustada. – Menti e cerrei os punhos enquanto engolia o medo das suas palavras, verdadeiras ou não, existia nelas a neblina que me ocultava as suas intenções. O derradeiro passo que recuei encostou-me ao pilar frio que limitava o espaço entre ambos. – Ele não me fez nada de mal. Aquilo que aconteceu ontem foi… - Outro mistério, outra pergunta sem resposta. – Um acidente.

Ele abanou a cabeça ao escutar-me, baixou os braços e tornou à postura vergada de semblante cansado como se acabasse de desistir de algo para o qual não teria força para enfrentar.

- Eu sabia que ia ser assim.– Começou a andar lentamente na minha frente, percorria a extensão da largura da calçada e voltava a repetir os mesmos passos continuamente, enchendo-me da sensação de me encontrar encurralada. - É normal que não te lembres. Provavelmente faz parte do encantamento.

- Que encantamento? – Obriguei-me a perguntar. Era importante que alcançasse todas as respostas, a seu tempo, teria oportunidade de meditar acerca delas e chegar às minhas próprias conclusões. Não podia simplesmente entregar-me a um medo coactivo e aceitar que ambos me desejavam mal ou teriam uma qualquer intenção oculta a meu respeito. – Estás a falar do que me fez desmaiar?

- É mais do que isso. É a forma como ele já consegue controlar os teus pensamentos que me deixa impressionado.

- Ele não controla os meus pensamentos. – Vociferei levada pela injustiça de ele ser capaz de dizer tal coisa, depois de eu ter sido capaz de identificar todas as artimanhas com que me cercara no dia anterior, ser capaz de atribuir tal intenção a outra pessoa era repulsivo. – Quem o fez foste tu.

Para minha surpresa, o choque que a acusação lhe provocou atingiu-me como uma bofetada. Os olhos claros e cristalinos alteraram-se, fixos nos meus, transparecendo uma tristeza tão profunda que me fez sentir a pessoa mais cruel do mundo.

- Desculpa. – Apressei-me como uma criança que é surpreendida a esconder estilhaços debaixo do tapete. Eu não suportava ser a causa para aquela sua expressão dolorosa. – Eu estou confusa. Há muitas coisas que não compreendo.

- Eu sei. – Garantiu, mostrando-se cuidadoso. Um tanto forçado, mas sem deixar de parecer sincero. As mãos brancas e delgadas alcançaram o meu rosto e emolduraram-no delicadamente entre elas. – Eu imagino como deve ser difícil para ti, encontrar respostas num mundo onde ainda não encontraste o teu lugar. – Os dedos esguios penetravam agora o meu cabelo, descendo lentamente até se deterem a meio das minhas costas. – Sou eu quem tem de pedir desculpa. Devia ter chegado aqui mais cedo.

O toque frio da sua pele, quando tocava a minha daquela forma, produzia em absoluto uma reacção neutralizante. Sabia-me dividida entre a permissão de o apreciar intimamente, não apenas ele, mas também a resposta que facilmente se traduzia em mim na presença do outro estranho, e a sensatez de desconfiar de mim própria por o consentir daquela forma. Era ingénua por cada demonstração de proximidade. Caminhava a passos largos por caminhos repletos de perigos contra os quais não me sabia escudar.

Disseste que eles não iam voltar enquanto ele estiver aqui. – Arrisquei, reagindo de imediato. Afastei-o pelo peito numa tentativa pouco conseguida, não queria que fosse demasiado óbvia a intenção de que não era meu desejo que se mantivesse demasiado próximo. – Estavas a falar do quê?

- Dos teus sentimentos. – Respondeu sem se afastar. Pousou as mãos firmes na minha cintura e permaneceu exactamente no mesmo sítio. - Os portões estão vazios, não sobrou nada dentro deles. Ele libertou-os lá fora e não vão regressar enquanto o encontrarem perto de ti.

O significado das suas palavras apunhalou-me de dor. Então era essa a ausência na minha rua. Os sentimentos que durante todos estes anos fui ordenando cuidadosamente na construção da minha criação tinham-me abandonado. Já não controlava absolutamente nada. Agora, até a invasão selvática que preenchera ilusória todos os espaços onde antes se dispunham organizadas as moradas de cada um dos meus sentimentos me deixara sozinha, numa rua sem sentido, completamente vazia.

- Como os recupero? – Agarrei-me à única réstia de esperança que encontrei no peito. Uma pequenina luz que teimava brilhar no vazio. – Diz-me!!! – Exigi de mãos cerradas no seu peito metálico. – Como posso ir buscá-los? Onde?

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXIII

- Bom, se queres saber a verdade, é muito difícil perceber como e quando o fazem. – Pontuei sem deixar de observar aquela inesperada manifestação de embaraço. – Sei que aquele estranho o faz constantemente. Eu sinto-o enredar-me os pensamentos, faz-me desejar “coisas”.

Tossiu de forma brusca, dissimulando várias palavras que não me interessei em saber se pertenciam ao meu vocabulário, depois tornou à expressão branda e pegou nas minhas mãos como se o fizesse com bastante frequência.

- Existem muitas coisas neste mundo que eu te posso ensinar e levar a compreender. – Sentia o toque dos dedos quentes rodearem as palmas das minhas mãos delicadamente e refreei o prazer que isso me dava sem lhe abandonar os olhos. – As outras fazem parte das nossas próprias escolhas. É isso que não te posso mostrar ou enfiar nessa cabeça de vento.

Era um sorriso estreito e fugidio, mas era um sorriso. Soube com uma certeza incontornável que, desconhecendo tudo o resto, era aquele o verdadeiro impulso que me faria escolher o que procurar naquele mundo. Encontrar o motivo porque despertava em mim tamanho assombro em cada demonstração de luz naquele estranho, porque era especial para mim o facto de o ver sorrir daquela forma.

- O que aconteceu quando me encantaste? – Questionei sobrepondo as minhas dúvidas ao silêncio que nos circundava, à naturalidade com que aceitava o seu toque, abstraído com as minhas mãos nas dele e eu, confiando-lhas sem a menor hesitação. – Eu oiço-te na minha cabeça. Não são palavras… é como se…

- Os meus pensamentos se misturassem com os teus. – Completou e retirou as mãos do colo que sustinha as minhas. – Isso não sei explicar. Já te oiço há algum tempo.

- Ouves-me?

- Sim, os teus pensamentos interrompem os meus. – Descrevia deixando transparecer o quão irritado aquilo o deixava. - Sou obrigado a partilhar essa confusão de dúvidas existenciais e conclusões acerca do motivo de tudo, onde estás sempre a bater nas mesmas teclas e não chegas a lado nenhum.

- Ouves-me falar sozinha? – Tentei assimilar, dividida entre a mais profunda vergonha e o fascínio pela remota possibilidade daquilo que ele estava a relatar ser praticável. – Sempre?

- Felizmente não. – Gracejou com uma careta plausível – Ignoro-te a maior parte das vezes.

Não sabia dizer se aquilo me deixava mais aliviada ou, de certa forma, ofendida por considerar os meus pensamentos tão entediantes. Algo dentro de mim rugiu baixinho confrontado com a ideia de que o incomodava por pensar de certa forma.
Evitei olhar para ele enquanto debatia estas minhas fagulhas de desconsideração por mim própria. Se me visse como eu me vejo era natural que sofresse amargamente com uma presença tão irritante e enfadonha a inundar-lhe a cabeça com meditações desinteressantes cheias de causas e consequências acerca de tudo sem o poder evitar. Que pensar então, dos pensamentos cada vez mais frequentes que eu tinha acerca dele? O meu rosto incendiou instantaneamente.

- Estás a dizer que “isso” acontece a qualquer momento, mesmo quando eu não estou por perto? Não tem nada a ver com os olhos?

- Não. Aquilo que acontece através dos olhos é diferente. – Respondeu-me com paciência, esticando as pernas ao meu lado e deitou-se no chão da rua, tão quieto como se fizesse parte dela. – O que oiço na minha cabeça, são palavras soltas como impulsos. Às vezes são ideias, decisões, frases que nem sempre estão completas. Acho que são coisas que te marcam, ou que te são importantes e te obrigam a reagir.

- Mas… eu não te oiço. Só quando… - Tropecei nas palavras com a vergonha instalada na garganta como um pequeno torniquete. – Quando fazes aquilo com os olhos.

Silêncio.

- Não tens medo do que encontras nos meus olhos? – Murmurou tão baixinho que duvidei que estivesse a falar para mim. Como se ele próprio temesse a pergunta e não a resposta.

Observei-o estático na minha frente, os olhos fixos na minha aurora inebriada num fulgor ténue de silhuetas dançantes. O maxilar cerrado com firmeza num rosto que se moldara demasiado sério, ausente da mais pequena demonstração de emoção. Pensei como era fácil olhar para ele como um estranho e perder-me algures no labirinto de segredos que o cercavam e evocavam a minha curiosidade, sabia que ali morava o perigo de nunca encontrar uma saída através da bruma que o ocultava do mundo. Era sem duvida uma figura carregada de sombras e expressões frias, escudado por palavras que velavam um silêncio prolongado na sua própria solidão. Era um homem jovem, no auge da sua virilidade, todavia algo nele denunciava uma alma profundamente embebida no fardo de uma vida.
Existiam muitas razões para que tivesse medo dele. A que mais me causava receio era precisamente a sua chegada inesperada a um lugar que nunca partilhara com ninguém, ao único espaço verdadeiramente meu, e por onde ele se deslocava com suposto desinteresse. Outra era a estranha partilha dos meus pensamentos com alguém que, sendo um completo desconhecido, tinha acesso à nudez da minha intimidade. Não conhecia o motivo para que aquilo acontecesse, nem como era possível, muito menos como evita-lo. O facto de não ter hesitado em demarcar os seus próprios limites sem cortesias também se afigurava como um bom motivo para que não o subestimasse. Eu podia, em plena consciência, ter medo dele só pelo facto de fisicamente ser uma oponente a ter em fraca consideração. Ele era enorme, com pouco menos de dois metros, deitado preguiçosamente aos meus pés, as pernas compridas esticadas acima de um tufo verdejante de trevos sobre ervas daninhas, um tronco de ombros largos e braços robustos que eu conhecera fortes e vigorosos.
E depois os olhos escuros como dois fragmentos de ébano. Um abismo profundo de chamas e um poder inquestionável.

De tudo o que existia naquele mundo, e que eu desconhecia para que pudesse temer, os olhos dos “estranhos” que faziam parte dele, reservavam parte do mistério que envolvia a ordem e funcionamento em permanente equilíbrio da existência das duas ordens. Podia ter medo deles, era sensato que tivesse, do que escondiam e do que, com facilidade, colocavam nos meus pensamentos. Existia dentro de mim uma forma de me escudar disso, evitar providenciar acesso à minha mente e impedir aquela perigosa emissão de ideias antes que esse controlo me tornasse passível de ser influenciada. Era difícil alcançar uma plena consciência de que eu tinha capacidade para combate-lo, quando dois olhos claros como cristal num rosto de uma beleza prodigiosa me obrigavam a baixar a guarda e desejar que me tomasse até à infinidade do meu ser. Mas era possível.

A antítese gloriosa da escuridão era… diferente. Algo aconteceu no momento em que as chamas daqueles olhos negros invadiram e penetraram os meus. Podia lutar contra uma mente que cercava a minha e contornava os meus desejos como um punho que se cerra lentamente. Isto era distinto, era algo que simplesmente estilhaçava a minha consciência. Ouvia a sua voz límpida na minha cabeça como se sempre lá tivesse estado, reconhecia-lhe cada cadência grave, o cuidadoso vibrar das suas emoções no meu peito, percorrendo cada golfada de sangue nas minhas veias. Eu não tinha medo dos olhos dele, nem das vozes, ou dos significados de cada partilha involuntária. O que eu temia verdadeiramente era a ausência de todos eles, aquele segundo de trevas que me engoliu antes que alcançasse o que se encontrava daquele lado do abismo.

Talvez não estivesse preparada para tal. Talvez nunca viesse a estar.

- Não. Eu não tenho medo dos teus olhos. – Respondi por fim, sem denunciar qualquer dúvida quanto a essa incompreensível certeza. – Não me lembro do porquê de ter perdido os sentidos, mas sei que não tive medo quando me encantaste.

Ele não comentou e permaneceu em silêncio. Como se aguardasse em suspenso a conclusão da minha resposta.

- Não sei do que és capaz, nem como o fazes ou porquê. – Continuei a minha estranha digressão em voz alta, sentindo a facilidade com que transpunha em palavras a confusão que se ia acumulando na minha cabeça. – Vocês são diferentes, tu e o outro estranho. Com ele, eu consigo perceber como e quando modifica o que sinto, os meus desejos, sei que o faz para controlar o que penso acerca dele, e sobre ti. – Acrescentei, isolando esse pormenor para o contemplar mais tarde. – Utiliza os olhos para chegar até mim e depois… sinto medo do quanto cedo e do quanto ele retira. – Repeti estas últimas palavras até encontrar um significado onde se encaixassem, guardei-o junto aos outros e voltei a divagar. – Quando me encantaste, deixei de o sentir nos meus pensamentos.

- Tu sentes muitas coisas ao mesmo tempo. – Resmungou cruzando os braços por cima do peito e inclinou o rosto na minha direcção de sobrolho erguido. – Continua.

- Porquê? O que interessa o que penso sobre isto? – Libertei a minha muito contida frustração. – Vais ficar aí calado a ouvir-me e vou ficar sem respostas na mesma. Tanto faz o que penso sobre vocês. Continuam a ser dois estranhos.

Ele riu-se. Uma gargalhada sarcástica que ecoou pela rua e se perdeu através dos portões escancarados dos meus sentimentos agora perdidos e dispersos. Quando o silêncio regressou, ele estava de novo petrificado aos meus pés.

- Eu não sei o que aconteceu quando te encantei. – Falou de novo, arrepiando-me e fazendo-me saltar com o susto. – Não o faço muitas vezes.

Esperei impaciente pelo resto, como se o ar não me chegasse aos pulmões antes de ele libertar aquela sua espécie de esclarecimento desagradado.

- O que foi que me fizeste?

- Ele mostrou-te o que podes sentir, aquilo que podes desejar alcançar, o que podes ser… - Respondeu de olhar perdido nas partículas de poeira iluminada que descia dos arcos acima de nós, aos poucos adormecia a minha aurora poente, fadando a sua imagem translúcida que ia esmorecendo antes das suas ultimas palavras. – Eu mostrei-te o que tu és.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXII

“Existem várias formas de descrever o que progrediu a partir deste momento, no entanto, o segredo permanece para sempre no teu olhar.” (Jinx)


Fiquei gelada. Senti o meu corpo ceder e por um momento deixei que aquela sensação de ausência me inundasse, depois estava demasiado escuro para que percebesse que mãos, quantas, me amparavam a queda.

Acordei junto à entrada da minha rua, deitada perto dos arcos do pensamento, repletos da era viçosa que espaçosamente se espraiava por cada recanto das minhas construções. Sentei-me devagar, poupando os movimentos com indolência e suspeita de que não estava ali sozinha. A luz obscura da aurora debruçava sombras dançantes em meu redor. Ao longe, um sopro de agua fugia através de um portão sem cadeado e trazia ate mim a visão de um mundo que eu vislumbrara, um mundo sustentado pelos sonhos e sentimentos, gerado pela criação intrincada de duas ordens. Estava lá e era tão real quanto a rua que sempre conheci.

Na minha cabeça surgiam as imagens entrecortadas dos acontecimentos, olhares fogosos e aparições na orla das árvores cerradas junto à clareira que escondia a gruta da cascata. Aqueles dois homens estranhos, tão diferentes e misteriosos. Olhei á minha volta perscrutando nas sombras um sinal de movimento e levantei-me devagar. A força que os movimentos exigiam para me conseguir sustentar esgotavam-se em cada partícula do meu corpo como se estivesse prestes a estilhaçar. Já não trazia a minha couraça vestida, aquele presente desconcertante desapareceu, estava nua debaixo da capa negra que abandonara sobre as rochas. Demasiado esgotada para me insurgir sobre o que isso significava ou me remeter a pensamentos ultrajados acerca da minha dignidade escorreguei pelo pilar de volta ao chão.

- Talvez ele tenha razão. – Sussurrei baixinho para a rocha onde pousara a cabeça – Talvez eu seja muito frágil…

Ouvi-o muito antes de ele se aproximar, os passos largos, firmes na terra quebrada e nos ramos tenros que cobriam o chão. Madeira…couro…terra…sangue… Parou na minha frente, via-lhe as botas gastas, e a respiração entrecortada quebrava o silêncio da ausência do tempo. Sentou-se na minha frente, gracioso e tenaz como se estivesse em constante mudança de movimentos moldando-os para sua comodidade. Amparou-me com um braço e sentou-me equilibrada pelos pulsos nas suas mãos grandes e firmes. Quedei-me de joelhos encostados nos dele e as mãos inertes sobre as suas botas.

- Toma. – Estendeu um frasquinho de vidro colorido num tom carmim na minha direcção. Era pequeno, em forma de bolbo, e cabia-lhe no punho fechado. – Bebe isto, tudo.

Não perguntei o que era, limitei-me a recebe-lo na minha mão sem muita observação, reparei que era quente e que borbulhava como se tivesse vida própria e, confiando cegamente naquele estranho especifico, levei-o aos lábios. Não tinha cheiro, e ao primeiro trago também não tinha gosto. Água quente pensei, ganhando coragem para emborcar o resto sem receios. Não esperava que me oferecesse nada milagroso que afastasse de repente todo aquele cansaço e preenchesse a minha falta de energia, de facto, não senti absolutamente nada nos primeiros segundos após voltar a olhar para o frasco vazio com propositada descrença. Então, as duas mãos que me equilibravam mantiveram-me firme no chão, quando enxameada por centenas de picadas ardentes, me remeti a vigorosas tremuras que estimulavam de uma só vez cada ponto nervoso do meu corpo.

- Já passa, não te assustes.

Ele tinha uma forma simples de apresentar o que para mim seriam verdadeiras ondas de terror. Eu não estava assustada, estava a aceitar com verdadeiro mérito o facto de morrer jovem, entre mundos, e queimada viva. – Os meus exageros transitam bastante entre os segundos que me submetem a algo que desconheço verdadeiramente. – A sensação de fogo que se espalhava pelas veias aceleravam os batimentos descompassados do meu peito ofegante, tudo em mim clamava entre a dor e a adrenalina. De repente parou… a pulsação acelerada do sangue latejava e preenchia o corpo cansado com uma energia vibrante e vigorosa.

- É uma experiência desagradável quando bebes pela primeira vez, eu sei. – Pegou no frasquinho que caiu no meu colo e guardou-o no bolso das calças. – Estás melhor?

Dispensei-me de lhe responder, flecti as mãos e os braços enrijecidos depois da arrebatadora “experiência desagradável” e sorri. Não que tivesse surgido entre nós nada que me permitisse partilhar o que realmente sentia depois de vivenciar algo daquele género, mas era quase impossível não me permitir exteriorizar o assombro pelo resultado. Era admirável, e misterioso como tudo o que provinha daquele mundo.

- O que se passou? – Perguntei-lhe sem permitir que se afastasse e me roubasse a oportunidade de perceber o que tinha acontecido depois ter perdido os sentidos.

Contrariando o que eu estava à espera, e tendo sido sempre óbvio que ele não era inclinado a dar grandes explicações ou a alongar-se em diálogos inoportunos, inspirou uma grande quantidade de ar e encolheu os ombros quando o libertou. Fixou-me e levantou a mão até ao meu rosto, afastando uma madeixa de cabelo que caía escorrida e me cobria os olhos.

- A culpa foi minha. – Começou por se considerar culpado com uma expressão de verdadeiro constrangimento, voltou a respirar fundo e afastou-se de mim, inclinando-se para trás apoiado nos cotovelos. – Eu não devia ter feito aquilo.

- Aquilo o quê? – Tentei recordar tudo o que se tinha passado momentos antes de ter desmaiado. Recordava acima de tudo e com uma grande intensidade os olhos vermelhos e as palavras que tinham inundado os meus pensamentos… depois nada. – Falares comigo nos pensamentos?

Ele mudou de posição e voltou a sentar-se direito na minha frente como se o tivesse picado com um alfinete.

- Não. Não é “isso”. – Negou como se falar acerca deste pormenor o deixasse desconfortável. – Ele estava a encantar-te… e eu, fiz a mesma coisa.