domingo, 21 de agosto de 2011

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXIV

Ponderei as minhas próximas palavras com cuidado. Não sabia, de todo, do que estava ele a falar. A minha fragilidade era contígua a ambas as realidades, a diferença era a ausência de todos os escudos que, fora da rua, reunia ao meu redor. A minha quase arrogância era eficiente, a minha óbvia alienação também me mantinha à tona do que exteriormente me sufocava. Sabia que isso era uma ilusão, mas mais ninguém teria de o saber além de mim. Naquele momento, sentia que os meus escudos eram menos que fumo, um átomo de inconsciência num mundo completamente despido de tais subtilezas. Se eu tinha alguma primazia em mim era o excesso de argumentos com que me criticava constantemente e a tendência para o negativismo relacionado às minhas capacidades. Agora tinha uma sombra, uma figura de homem que se afirmava um assassino, apontando os meus pontos fracos como um engodo, um disfarce que a minha natureza dispunha sem que eu a controlasse.

- A que distância me sentiste quando cheguei? – Interrompeu roubando a minha atenção no seu tom neutro e sombrio. – Explica o que sentiste, por favor.

Suspirei alto e a bom som. Estava a ficar esgotada, em breve teria de sair dali e regressar. Posei a mochila atrás de mim, o seu peso abandonou os meus ombros deslizando com um baque até à base da minha coluna. Fechei os olhos e recuei ao momento em que caminhara da gruta para o exterior. A sinfonia de cheiros… aquela estranha invasão nos meus sentidos que alarmava cada recanto do meu corpo como se fosse demasiado pequeno para acumular toda aquela informação. Tentara separá-los, identificar cada um. Tinha procurado neles algo familiar, como se me fosse íntima aquela forma de sensorizar o espaço até limites que eu ainda não conhecia. Não lhe ia dizer o que procurava naquele momento ou a promessa que tinha feito.

- Eu sinto os cheiros de maneira diferente. – Comecei, abrindo os olhos para o encarar, sentado rígido na minha frente. – É como se ganhassem uma dimensão ilimitada de reconhecimento. Eu consigo distinguir vários cheiros e sei que alguns estão a muita distância do sítio onde estou.

- Mais? – Encorajou-me com aquilo que assumi no seu rosto por um sorriso. Os olhos rasgados na sua fenda ganhando uma expressão de entusiasmo com as minhas palavras. – Consegues dar forma a esses cheiros conforme chegam a ti?

- Não sei. Não é uma coisa que eu controle. – Confessei abraçando os joelhos com força e obriguei-me a continuar a relembrar essas percepções. – Quando essa informação chega até mim… ás vezes é demasiada. É como um murro em cada sentido, porque através do cheiro, acho que consigo medir a distancia, a velocidade a que se desloca e…

- E?

- Acho que consigo perceber a intenção daquilo que se aproxima de mim. – Despejei sem reservas à loucura que aquilo podia parecer. – Eu senti isso com o segundo estranho. Não sei se por mim, mas senti perigo por quem estava comigo naquele momento.

- Muito bem!!! – Uniu as palmas com um estalido que ecoou pela rua como uma rajada e me fez dar um salto apertando a mão no peito. Senti-o fitar-me demoradamente, inclinando a cabeça de lado como se tivesse encontrado algo inesperado no meu gesto. – Estás cansada.

- Eu estou bem. – Neguei sem grande ênfase. – Não quero desperdiçar esta oportunidade.

- Entendo.

- Queria perguntar-te uma coisa. – Procurei sentar-me mais confortável na sua frente, cruzei as pernas e apertei as mãos uma na outra. – Porque é que eles se odeiam?

- Essa é uma pergunta que terás de ser tu própria a responder numa outra altura. – Falou-me calmamente como se tivesse esperado aquela minha pergunta desde o início. - Eu podia responder-te através da minha visão das coisas, mas não era justo que formasses opiniões tendo como base a minha versão.

- A diferença entre eles… é assim tão grande?

- A energia que referiste quando os descreveste funciona como dois ímanes. São dois pólos opostos que se repelem. – As mãos brancas de dedos delicados exemplificavam metodicamente o que me descrevia com vigor. – Não sei como explicar isto a alguém que não caminhou entre nós. Existe um equilíbrio a manter entre essas energias e o nosso papel é fundamental para que tudo isto seja concebível.

- Estás a falar de uma guerra entre os dois pólos?

- A luta entre esses dois pólos é a razão para que exista um equilíbrio que proporcione estabilidade neste mundo. Se a balança pender para um dos lados e for a tendência de apenas uma das duas facções a ordenar a existência de Elenorë, tudo está perdido. Então, desde a Era das Sombras, quando nenhum de nós vislumbrava o poder dos sonhos, que Carmacil e Narmohtar se combatem.

Depois de ter suplicado e esperado angustiada por respostas, sentia-me à deriva.

- Devias ir descansar. – Sugeriu começando a cobrir-se com os mantos negros que o enlaçavam e dispersavam a sua imagem em movimentos incolores e desfocados. – Amanhã vou estar aqui à tua espera.

Levantei-me sentindo o entorpecimento nas pernas por estar sentada há muito tempo, peguei na mochila e coloquei-a de novo ao ombro. O estranho já estava de pé, bailando nas sombras que o ocultavam dos raios ténues da aurora preguiçosa que não nos brindara com o seu espectáculo de luz e beijava com recato as zonas mais altaneiras dos arcos de pedra. Ergui a mão em despedida sem saber bem onde ele estava e virei as costas sem olhar para trás.

- Elenorë. – Tentei pronunciar, caminhando para a porta que abandonava a minha rua, deliciando-me com a forma como se expandia através de mim o seu nome. – Parece-me o nome de algo maravilhoso.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXXIII

Como não se moveu, percebi que esperava em troca que lhe confidenciasse o meu nome. Algo dentro de mim desejava ardentemente que lho concedesse, essa parte real da minha existência, uma identidade, tal como ele o fizera. Aparte do seu nome, não havia nada que eu pudesse reconhecer na sua figura, como uma miragem, um sopro, ele era aquele nome e dois olhos verdes como esmeraldas.

- Eu não tenho nome. – Ponderei sem saber como parecer coerente – Quando criei a minha rua não havia necessidade de ter um. A rua sou eu, e ela também não tem nome. Não preciso de afirmar a mim mesma quem sou através de um titulo que trago da realidade. Além disso, os nomes, tal como o aspecto, não são a nossa identidade. Não neste mundo.

- Ainda bem que referiste isso. – Pontuou, encaminhando-me pelos ombros de regresso à gruta – Isso do nome e do aspecto. Tens razão.

- Desculpa por não te retribuir com um nome, tu disseste-me o teu. – Voltei-me para o encarar. A mão nos ombros manteve-me a passo largo na direcção da cascata. – Parece-me injusto depois de teres sido o único a responder a algumas das minhas perguntas.

- Acho que nem todos nós temos respostas para te dar. Não sem respondermos primeiro às nossas próprias questões. – Seguiu na minha frente abrindo caminho junto à queda de água para que eu passasse sem ter de aterrar encharcada ao outro lado. - Isso é outro assunto que podemos discutir mais tarde se quiseres.

Caminhámos algum tempo depois de atravessamos o portão de âmbar em silêncio. Eu, dedicada às inúmeras perguntas que tinha a fervilhar na ponta da língua, e ele, na sua forma transitória e imperceptível sem me deixar margem para perceber ao que dedicava o seu emudecimento.

- Como são aqueles que chegaram antes de mim? – Perguntou sentando-se imóvel num dos primeiros bancos junto aos arcos que ultimavam a calçada até à porta da realidade.

- São diferentes. – Foi a primeira coisa que consegui replicar para os descrever. Tão diferentes como a água do vinho. – Sei pouco sobre eles. O primeiro é…muito estranho. Misterioso, com olhos escuros que afundam num abismo de fogo… - Mirei-o pelo canto do olho. Desconfiava que contando isto a alguém não se acreditassem nas minhas palavras. – e trouxe-me uma mochila com roupa. Sinto-me mais segura quando ele está aqui ou quando o oiço… a voz dele, - Corrigi, tentando a custo reservar aquele pequeno pormenor que invadia a minha mente com a sua voz, só para mim. – acalma-me. E enerva-me também.

- Homem ou elfo? – Perguntou como quem pergunta as horas.

- Elfo? – Embasbaquei meio perdida. – Como os das historias?

Surpreendeu-me com o que me pareceu uma gargalhada, algo abafado e demasiado curto para ficar no ouvido. Depois regressou à pose solene, pousando as mãos nos joelhos enrolados no manto esvoaçante como num casulo.

- Estás a falar a sério. – Concluí observando-o aguardar pela minha resposta. – Não sei. Acho que nunca lhe vi as orelhas. É alto, de cabelo escuro e comprido, e veste umas roupas feitas de uma pele muito leve. Do mesmo material das roupas que me trouxe na mochila. – Tentava reunir todos os pormenores da sua imagem, mas também da sua personalidade, na minha cabeça. – Ele é forte. Faz-me acreditar que também sou.

- Ardacarnë… o reino vermelho. É de lá que vem o teu amigo elfo.

- Ele não é meu amigo. – Apressei-me assim que senti as bochechas afoguear. – É um estranho. Nem sei se é um elfo como dizes.

- Todos somos estranhos, por agora. – Aquiesceu com um gesto sombrio através da mordaça. – Fala-me dos outros.

- O outro é perigoso. Aprendi da pior maneira, acredita. – Sentei-me a dois passos dos seus pés, a meio da calçada. – Ele utiliza a mente, não sei como o faz. Quando está por perto perco a posse dos meus pensamentos, como se a única coisa verdadeiramente importante fosse agradá-lo… - De novo as bochechas. Passei as mãos no rosto fingindo-me cansada e continuei. – Ele é indescritível. Toda aquela luz… e os olhos. É como se nele brilhassem todas as estrelas do céu.

Calei-me envergonhada por ter acabado de dizer aquilo em voz alta e não fui capaz de continuar.

- Não é teu amigo?

- Não!!! – Neguei como se acabasse de ser acusada injustamente de um acto terrível. – Ele brinca com os meus sentimentos, altera a minha forma de agir. Mete-me coisas na cabeça!!!

- Então, tal como o outro, não merece a tua confiança. – Estendeu as duas mãos na minha direcção, sustendo-as no ar como uma balança - Dois estranhos em quem não confias.

- Eu não sei se sou capaz de confiar em alguém. – Apertei as mãos uma na outra com força. – Existe neles uma espécie de energia que interfere com o meu estado de espírito. São opostos.

- Dividem-te. – Comentou com convicção. – Dividida tornas-te mais tendenciosa e cedes à energia que te domina.

Sem ter como avaliar a sua intenção ao dizer aquelas palavras, soube que eu própria teria levado uma eternidade a entender o que aquilo significava e quanto da sua conclusão era, sem sombra para dúvidas, a verdade. A tendência que eu sentia quando estava na presença de ambos os estranhos vacilava sobre padrões que eu não conseguia distinguir, como que esvaziada da minha própria vontade, eu era arremessada consoante a sua dança febril de ódios e vantagens, pensamentos e cedências. Quando apareciam sozinhos e nenhuma oposição oferecia perigo ao acesso ao meu discernimento, eu nunca duvidava que naquele momento, aquela era a voz da razão.

- Para comandares a tua vontade vamos ter de regressar ao início. – Falou por fim, deixando-me espaço para encaixar os meus pensamentos com a calma que até ali me escapara. – Mas antes, quero que saibas o meu papel nisto tudo.

Toda a minha atenção se focou na imagem exotérica do meu companheiro. Aquilo que era visível da sua figura tornou-se cada vez mais nítida até conseguir observa-lo por inteiro. Um homem de porte altivo envergava todos aqueles véus. De olhos esbugalhados, observei-o retira-los um por um sem conseguir emitir um som. O contorno esguio do tronco, os braços compridos e vigorosos, um pedaço de pele clara como neve junto à orla da mordaça, o pescoço direito e altivo da sua postura superior, as pernas longas, as mãos compridas a retirarem o capuz que desvendou um cabelo curto cor de fogo. Porem, a mordaça continuou a cobrir-lhe o rosto.

- Sou um assassino. Um ladrão. – Encolheu os ombros sem muita consideração por se ter classificado daquela forma. – A minha visão deste mundo é feita pelas sombras, sigo através dos espaços por onde ninguém ousa caminhar.

- Porquê? – Murmurei avassalada por aquele momento e pela sua inesperada confissão.

- Há muito tempo que aqui estou e conheço esta forma de vida entre duas realidades. É a minha natureza… - Olhou para mim transparecendo alguma tristeza. - Onde me encaixo aqui.

Acenei afiançando a minha compreensão. Mais uma vez, provava a mim mesma que não tinha jeito nenhum para avaliar as pessoas. Por muito que ele se afirmasse cruel, ou desvendasse a sua pérfida natureza, não existira um momento em que eu me tivesse sentido em risco ou o adivinhasse tentado em invadir-me os pensamentos.

- Todos nós temos características que delineiam a nossa natureza. Aquilo que para nós se demonstra espontaneamente é o símbolo interior que nos indica o caminho por onde seguimos a nossa viagem neste mundo.

- Então não somos nós quem decide?

- Não. – Recusou sem deixar que a minha pergunta se demorasse entre dois. - Isso trazes dentro de ti, e não pode ser corrompido por nada que te afronte deste lado. Poderás ser completamente oposta àquilo que és, naturalmente, para lá daquela porta. – Apontou para a saída da rua tornando a fitar-me com os seus grandes olhos verdes. – Tu por exemplo… não consegues negar em nada a tua natureza.

- Que sou frágil? – Tentei adivinhar com verdadeira anuência pela possível avaliação à minha figura franzina e mente tão facilmente corrompível.

- Faz parte sim. – Acenou com firmeza. – É isso que deixas transparecer. Um engodo penso eu, e que estás longe de controlar, se até tu própria acreditas nisso.

- Não estou a entender o que estás a tentar dizer com isso. – Confessei com a cabeça às voltas.

- Isso é o que faz de ti um óptimo exemplo da primazia dos caçadores.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXII

Outra vez. Três… Quatro com o felino negro. Em quantos dias?

Ele olhava para mim através da fenda que lhe descobria os olhos com suspeita curiosidade. Sentia-me novamente exposta, observada até ao ínfimo pormenor. Ao contrário do comportamento hesitante e ansioso aquando das aproximações dos estranhos anteriores, este revelava uma calma cuidadosa, como se contivesse nos seus movimentos velados a ausência de qualquer género de sentimento, controlando-os e sufocando a sua existência num escudo impenetrável.

- Eu… desculpa. – Atrapalhei-me, evitando focar a minha visão na sua figura disforme que me enchia de nervosismo e desconfiança. – Acho que não é necessário. Quer dizer, a tua ajuda, eu já tenho quem me vá ensinar.

Ele não se mexeu um milímetro, continuando a olhar-me letargicamente com o manto de pontas desfiadas a bailar-lhe junto aos tornozelos. Eu não acreditava que as minhas palavras o afastassem, ou que ele simplesmente acreditasse que havia quem tivesse chegado antes dele para me ajudar, mas, talvez isto se repetisse constantemente e ele não viesse a ser o ultimo estranho a abordar-me quando me aproximava da fronteira daquele mundo. Talvez eu viesse a compreender porque era importante lidar com todas estas presenças em meu redor.

- Quem és tu? – Perguntei-lhe num ímpeto cauteloso apertando os punhos atrás das costas – Porque estás aqui?

- Faço um favor.

Outro estranho cheio de mistérios. Desarmei a minha postura, de ombros descaídos em concordância com a minha dificuldade em retirar respostas acerca das coisas que me pareciam ser simples. Eu não escondia quem era, na verdade nunca tinha tido essa escolha, uma vez que desconhecia por completo todas aquelas possíveis presenças, mundos ou interesses. Eu apenas conhecia a minha rua. A rua que deixara de ser minha para passar a ser apenas uma passagem para algo maior e complexo, o género de coisa que eu gostava de manter ausente das minhas habituais visitas introspectivas.

- Estou farta disto sabes? – Dirigi-lhe, falando a meio tom com ambos, ele, e os meus pensamentos. – Farta das vossas respostas absurdas. Das vossas artimanhas e inconveniências que eu não quero realmente compreender. Só preciso que me digam para onde devo ir. – Pontapeei um aglomerado raquítico de galhos secos que ainda se mantinham presos ao solo acinzentado. - Não deves saber porque estou aqui, mas eu explico-te. A minha presença aqui é uma coincidência infeliz, que se prende com o facto de eu ter uma rua… - Esta parte era mais complicada e demasiado intimista para partilhar de animo leve com um estranho que acabara de surgir na minha frente – Desapareceram-me “coisas” que quero recuperar. E estão por aí. – Apontei por cima do seu ombro estático. – O problema é que ninguém é capaz de me dizer onde estou!!! E porque andam todos preocupados com a minha chegada e com a forma como chego a essas “coisas”!!!... E depois são essas vossas… - Gesticulei os dedos bailando junto aos seus olhos sem encontrar um termo – Eu nem sei de onde vocês vêm!!!

- Nandëondo.

- Desculpa? – Refreei a sequência do meu discurso inflamado, suspensa entre a apoteose do meu infortúnio com a palavra que ele murmurara. – O que disseste?

- Nandëondo. É de onde eu venho. – Tornou a repetir ligeiramente mais alto, a voz pendente na neutralidade. Aquela podia ser a voz de qualquer pessoa. Uma voz sem identidade.

- Ah… - Emudeci depois de ele ter acabado de me dar uma resposta.

- Tu estás em Talansilma. – Abarcou a floresta e a cordilheira com um gesto amplo ao nosso redor. - Uma zona despovoada a sudoeste do continente Ardaisil.

- Estamos num continente? – Aproximei-me, assoberbando o meu peito de entusiasmo pelas primeiras respostas que via respondidas. – De que tamanho? Esta zona… Como se divide todo o território?

- Calma. – Pediu apertando o manto ao seu redor como se tivesse receio de se ver descoberto á luz do dia. – Eu respondo-te a todas as tuas perguntas. Uma de cada vez, por favor.

- Desculpa… mas é a primeira vez que me respondem. – Abracei-me a mim própria, entalando as mãos com os braços e obrigando-as a manterem-se paradas com tanta emoção. – É complicado. Ultimamente não sei em quem confiar e ninguém me dá respostas acerca de nada.

- Então temos de descobrir quais são as perguntas que deves fazer. – Aproximou-se com passos seguros até mim e colocou a mão enluvada no meu ombro, sem peso, cheiro ou movimento, quase imperceptível. – Primeiro vamos regressar à tua rua. Não tenhas medo. – Interceptou o meu receio por aquela proposta com serenidade. – Eu não te quero mal.

- Como te chamas? – Arrisquei sem pensar. Aquela era uma pergunta importante para mim. Algo a que eu pudesse referir-me com certezas. Um nome no escuro.

- Eu tenho muitos nomes. – Respondeu num sussurro que lhe escapou pelos lábios amordaçados no tecido negro. - Alguns já me esqueci… Para ti sou Ollem.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXXI

“Parto as minhas correntes para me aprisionar a ti” (Ollem)

Quando interrompi a paz da rua, apressada pela porta singular e me detive à sua entrada, o espaço estático que me devolvia o reconhecimento dos meus sentimentos estava vazio. Uma ausência atroz de vida e de movimento no seu interior era o reflexo das minhas dúvidas. Eu não sabia o que sentia, ou o que viria a sentir de cada vez que regressava à rua. Ao meu lado esquerdo, sobre o poial lustroso da pedra negra estava a mochila à minha espera. Eu já não trazia a capa sobre os ombros, o meu refúgio já não fazia sentido quando todos os meus sentimentos haviam partido e se encontravam perdidos no desconhecido. A única protecção segura seria a confiança num dos estranhos. Caminhei até aos arcos e encostei o corpo na sua forma rígida sentindo o frio enregelar-me os ossos. A aurora estava ausente dos meus pensamentos. Nenhuma forma de brilhantismo ou de ideais a trariam de volta ao antigo esplendor. Retirei da mochila a roupa grosseira que havia sido um presente inesperado do estranho de olhos escuros e dentro dela estavam ainda as duas partes de uma adaga partida envolta num pedaço bafiento de linho. Observei-a uma última vez antes de a tornar a envolver e esconde-la debaixo de um dos bancos que dividia os dois primeiros arcos. Vesti a minha couraça com maior destreza da segunda vez, a complexidade dos passos e cruzamentos das fivelas surgiam-me de maneira familiar ao relembrar como o vira faze-lo. As botas contudo eram diferentes, já não eram os dois despojos vergonhosos que me caíam pelas pernas e me faziam arrastar os pés. Senti como isso me fazia recair numa espécie de contentamento, por me saber acarinhada daquela forma, ser minimamente importante para que se preocupasse com o meu bem-estar. Ele era intrigante. Os seus pensamentos medidos e cuidados por detrás da imensidão de um abismo negro, demasiado profundo. Perdia-me sem respostas nas suas palavras, e perdia também a capacidade de ser eloquente sempre que me aventurava a questionar o que ele acharia de mim.

Caminhei sem pressa pela rua. Estava sozinha a cada passo. Os portões escancarados em toda a extensão do meu percurso até chegar ao portão de âmbar. O cheiro e o som inegável da cascata no seu interior em contraponto às batidas ruidosas do coração no meu peito. Acariciei o colibri imóvel no interior da matéria refulgente e procurei dentro de mim o impulso por tornar a atravessar o outro mundo.

Não hesitei ao transpor a cortina de água e aterrei encharcada, porém de pé, no outro lado. Escorri o cabelo e amarrei-o com um nó junto à nuca, a couraça não deixara entrar agua portanto estava parcialmente molhada e não completamente. Apertei as presilhas da mochila junto ao corpo e avancei para o exterior. A brisa fugaz de todos os cheiros do que se escondia além do maciço de árvores cerradas na orla da floresta chegava a mim com a intensidade de um fumo espesso, repleto de estórias… confuso… estranho… mas que eu conseguia identificar. Cada um deles separando-se na sua essência, privando com os meus sentidos ao chegar a mim, a origem, a matéria, a distância…

Chegada ali, imóvel nesse meu reconhecimento invulgar do que me atingia, aguardei. Ele pedira que esperasse por ele e sem o questionar, seria exactamente isso que eu faria. Pensei que estaria ali perto, tinha de ter entrado na rua para me deixar a mochila com a roupa mas, pesando os acontecimentos, era prudente que não me aventurasse à sua procura. Inspirei o ar profundamente, aquele bafo ameno que rompia através dos troncos maciços na procura de algo que apaziguasse a minha espera. Os cheiros que procurava não chegavam até mim, nenhum deles.

Terra…Couro…Madeira…nada.

Então um sopro ténue, um pequeno pontuar de movimento por detrás da rocha escurecida que rompia o chão entre dois carvalhos distantes. Depois mais perto, o ondular da erva rasteira e quebradiça que trazia até mim aquilo que os olhos astutos não conseguiam desvendar. Recuei dois passos lentos mas alerta a cada indício que me roçava a pele e a deixava sensitiva aos estranhos pormenores do que a mim chegava. Sentia um rodopiar à minha volta, um pequeno vórtice que me encurralava num espaço ínfimo à entrada da gruta. Parou de repente e deixei de o sentir.

- Quando foi que me sentiste? – Sibilou num murmúrio quase inaudível.

Rodopiei sobre mim mesma localizando a voz abafada que sussurrava na sombra atrás de mim. O vulto estreito e incolor era uma sobreposição da rocha húmida do interior da gruta, como se fizesse parte da mesma, uma extensão camaleónica do que o abarcava.

- Quem és tu? – Ouvi-me questionar perdendo a noção do que me prendia ainda ao chão e me impedia de fugir dali a sete pés.

Com passos mudos observei-o ganhar vida ao caminhar na minha direcção, as vestes negras como um corvo fundiam-no e metamorfoseavam o espaço que o antecedia com a simplicidade da transparência, um lampejo de substância a cada movimento para depois perder o rumo da sua real localização. Era um ser etéreo mas autêntico. Um homem alto e esguio de rosto coberto por uma mordaça que encabeçava a sua inacreditável vestimenta, revelando apenas os olhos verdes como duas esmeraldas que tudo transpunham, que desnudavam sem entraves tudo quanto fosse seu desejo desvendar.

- Eu… sou quem te vai ensinar.

sábado, 28 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXX

Chorei. Chorei de medo e de angústia, de pena, por mim e pela minha rua. Libertei do meu peito o peso da culpa e da ingenuidade. Eu não era forte, nunca fora. A minha visão distorcida pela torrente de lágrimas vislumbrava um corpo magoado, a roupa esfarrapada e a quantidade de hematomas e escoriações que o meu erro causara. Nunca deveria ter abandonado a segurança da minha rua. Assim como nunca deveria ter seguido um estranho. A dor física de todos os golpes que sofrera não era, de todo, aquilo que mais me magoava. A verdadeira dor provinha do orgulho e da sensação de engano, a traição que contradizia todas as palavras que não conseguia recordar, mas que no entanto me haviam colocado naquela situação. Aquela sensação de abandono que justificava a queda em falso na consciência e que não me reconfortava na infalibilidade de me admitir corrompida.

- Shh… - Aproximou-se cheio de cuidados. De novo os braços quentes e seguros que abarcavam não só o meu corpo mas também um pedaço da minha alma. Não o afastei, pelo contrário, aninhei-me de encontro ao peito do estranho como uma criança, e de rosto afundado nas vestes rudes que o cobriam, chorei até saciar a réstia das minhas forças.

- Ele mentiu-me. – Segredei no embalo letárgico que me sustinha debruçada sobre ele. Já não haviam lágrimas para chorar e a dor partia agora lentamente do meu corpo.

Silencio.

- Nós escolhemos aquilo em que acreditamos. – Disse-me algum tempo depois numa voz serena que escutava emergir-lhe através do peito. – Podemos é levar tempo a admitir que se trata de uma mentira. Existe sempre um momento em que nos questionamos acerca de algo que não conhecemos, ou que não conseguimos compreender, então optamos por… – Interrompeu-se bruscamente. – Esquece.

Senti o seu corpo enrijecer como uma pedra e perder qualquer vestígio de calor.

- Continua. – Pedi-lhe. Não tinha coragem para me mexer e perder a oportunidade de escutar o que ele reservara de forma tão repentina. O sentido daquelas palavras eram-me tão imprescindíveis quanto a necessidade de continuar a respirar.

- Existem pessoas que seguem aquilo que a razão lhes dita. Aquilo que as move trata apenas do desejo por concluir certo objectivo, e isso não está errado. – Continuou de novo com algum vigor – Aquilo que somos também se define pela forma como pensamos. Ou não. Podemos apenas fazer aquilo que pensamos estar certo e não concordar inteiramente com isso. – Pausou tanto tempo que acreditei serem essas as últimas palavras daquela sua manifestação de critérios. Respirou fundo e antes de continuar senti-o estreitar o abraço em mim. – Depois existem pessoas, que apesar de acreditarem na razão das coisas ou das situações, se contrariam pelo que lhes dita o coração. E isso está quase sempre errado. A intuição e o instinto são conceitos muito abstractos daquilo que pode mover uma pessoa em certo momento. Acredito que existem consequências demasiado dolorosas para quem se permite seguir algo que não é definível.

- São escolhas.

- Sim. São as nossas escolhas, que por instinto ou seguindo a razão, nos levam a seguir por caminhos, ou a tomar posições que nem sempre nos permitem voltar atrás e corrigir o engano de termos investido numa mentira, nem sequer remediar as acções que no fim nos deixam sem qualquer resposta.

- Eu acho que em ambas corremos riscos.

Afastei-me do seu abraço, subitamente envergonhada por me perceber tão próxima, dele, mas também daquelas palavras. O meu corpo sustinha uma dormência invulgar enquanto via desaparecer os meus ferimentos. Os hematomas eram agora extensões amareladas que já não exibiam os cortes nem me afligiam de dor. Como que por magia, tudo em mim regressava ao normal sem que conseguisse perceber como.

- Estás melhor? – Perguntou observando-me sem grande ênfase pela impossibilidade daquilo acontecer em tão pouco tempo. Pegou num pequeno cantil que trazia preso na cintura e estendeu-mo num gesto de incentivo. – Bebe. Não faças essa cara, é só água.

Peguei no pequeno recipiente, também este acouraçado e da mesma cor de tudo o que o cobria. Removi a rolha com o orgulho reservado no aperto das minhas maxilas com o esforço e levei-o aos lábios. Tinha muita sede. Percebi isso depois de começar a beber sofregamente a água fresca e senti-la estimular cada recanto do meu corpo como uma corrente de energia arrebatadora. Não conseguia parar.

- Obrigado. – Agradeci e devolvi-lhe o cantil sabendo que acabara por beber a totalidade do seu suplemento. – Sinto-me muito melhor.

- Devias sair daqui agora. Acho que por hoje já foi suficiente. Não te devias esforçar tanto por lidar com tudo isto. – Sugeriu levantando-se do chão para me oferecer ajuda, de mão esticada na minha frente com prontidão.

- Estás cá amanhã? – Perguntei-lhe tentando ignorar o formigueiro estranho que me percorria ao supor que o voltaria a encontrar de novo.

Ele olhou para mim de semblante cerrado, mirou a cascata por um momento e tornou a incidir os olhos negros nos meus com uma intensidade aterradora.

- Não saias da rua se eu não estiver aqui. – Era um pedido. - Eu não confio que tu sejas capaz de lidar com aquilo que aquele estranho representa.

Acedi com a cabeça sem ter de encontrar mais palavras para expressar as inúmeras perguntas que se afundavam em mim. Teria de confiar nele. Eu tinha de confiar em alguém, mesmo quando não conseguia confiar em mim mesma.

- Eu não te respondi. – Relembrei-o percebendo que se preparava para atravessar a cascata e partir. Ele devolveu-me um sorriso que, mais do que a água ou as suas estranhas poções, me fez disparar o coração no peito. – O gato… Acho que ele também não sabe porque me salvou.

- O nome dele é Miller.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXIX

As sombras nos meus olhos eram reproduções amortalhadas da realidade. Os braços vincados em redor do meu corpo findo de vitalidade compunham sobre mim uma sensação de segurança cauta mas eficaz ao me transportar através da gruta com passos firmes, descompassados de tudo o que nos rodeava mas que atravessavam sem demora o espaço disforme que captava à nossa passagem.

- Vi serpentes que voavam. – Murmurei junto ao rosto cerrado do estranho de olhos escuros. Olhos que naquele momento se afligiam de preocupação com o sopro que eram as minhas palavras. – Azuis… e atacaram-me.

- Eu sei…

- E depois… não vais acreditar em mim. – Interrompi-me recuperando fôlego e coragem para lhe contar o que sucedera. – Vi um bicho.

- As serpentes não eram bichos? – Indagou com o sarcasmo habitual, que foi indisciplinadamente contrariado pelo pequeno trejeito da sua boca num sorriso.

- Este era diferente.

- Tiveste medo? – Apertou-me mais junto ao peito, cobriu o meu rosto com uma mão grande abrigando-me da corrente de água que atravessamos em dois passos robustos e estacou do outro lado a escorrer água como se tivéssemos acabado de emergir de um mergulho que separava duas realidades. Estávamos de volta ao interior da cascata.

O medo era naquele momento um sentimento demasiado definitivo para aquilo que realmente se instalara dentro de mim. Sim, sentia medo. Tanto que nunca me veria capaz de o assumir sem que temesse voltar a recordar os momentos de agonia da minha tentativa de controlo sobre algo que desconhecia completamente. A dor era a única sintonia que figurava naquilo que conseguia recordar, as imagens eram focos enevoados e repletos de pormenores que figuravam a situação de perigo e de impotência na minha memória confusa e desfragmentada. O abandono era o compasso que ditara o pânico e por fim a chegada metafórica da besta negra que me salvara pouco antes da chegada do estranho de olhos escuros. Esforcei-me por deslindar o que em segundos me assolara com a sua chegada inesperada e explosiva.

- Como era o bicho? – Perguntou pousando-me no chão húmido junto à abobada da câmara com cuidado. Ele afastou-se sem encontrar os meus olhos postos nos dele com súbita curiosidade. – Esse que era diferente.

- Era grande…

- Hum.

- E era negro e brilhante como uma azeitona madura. – Descrevia observando-o sentar-se, não demasiado perto, junto a mim. A expressão que encobria o interesse pela minha descrição, explicita de preocupação pelo que eu afigurava naquele momento. – Parecia um gato, ou uma espécie de felino. Ele era enorme.

- Um gato?!! – Resmungou como se acabasse de frustrar as suas expectativas quanto ao bicho que eu tentava descrever.

- Ele salvou-me. – Rematei num soluço que antecedia a descompressão num choro que começara a galopar na minha garganta. – Ele apareceu do nada quando eu fiquei sozinha. Eu não sei porquê… entendes?

- Porque ficaste sozinha ou porque o gato apareceu para te salvar?

A voz saíra-lhe gelada. Existia na sua pergunta tanto uma denúncia de escárnio quanto um refolgo pela minha compreensão de que eu havia sido ingénua e imprudente em ter-me colocado naquela situação.

- As duas coisas. – Engoli o orgulho sem dificuldade. Estava demasiado exausta para me dedicar a negar que ele teria razão, mesmo antes de ele a reclamar. – Hoje, quando cheguei aqui, estava o estranho de olhos azuis na minha rua. Estava à minha espera.

- Sabes… Eu não quero que me contes o que se passou. – Afirmou no seu tom frio e desinteressado. Os braços cruzados sobre o peito oscilavam sobre a cadência acelerada da respiração, agora alterada pela minha referência ao “outro”. – Eu não altero nada acerca das tuas escolhas, adulteradas ou não. É claro que a minha presença aqui já deixou de ser casual, não te vou mentir.

- Então porque voltas aqui? – Inclinei o rosto na sua direcção, despreocupado e ausente nos seus próprios pensamentos, sentado à distância de um braço com as roupas completamente encharcadas. O cabelo escuro e solto sobre os ombros repleto de pequenos vestígios pela sua passagem pelo desconhecido até ali.

- Porque achas que o bicho te salvou?

- Não me respondes com outra pergunta. – Devolvi com angústia. Aquelas suas perguntas comprimiam o meu desejo por confiar nele, esse desejo que lutava por se expandir dentro do meu peito oscilava nos nossos diálogos sinuosos e cheios de desconfiança. – Eu não sei o porquê de muitas coisas.

Sem grande ênfase vi-o afastar-se da rocha e acocorar-se aos meus pés. A mochila sebenta e desgastada caiu abafada pelo som da água sem revelar o que guardava no seu interior. Com gestos hábeis abriu-a e procurou por algo dentro da mesma sem demoras.

- Podes começar por compreender uma coisa. – Aguardou fitando-me por alguns segundos. Estava demasiado sério. Então retirou a única coisa que eu deixara para trás na clareira, a adaga bela e reluzente, estava agora partida em duas. Estendi as minhas mãos e ele posou entre elas a lâmina quebrada e o punho portentoso da minha arma. Nunca chegara a dar-lhe uso. Muito antes de poder tentar, ela abandonara a minha mão na queda. Coloquei-a sobre as minhas pernas, o peso desmedido do metal continuava a ser um fardo excessivo para aquilo que conseguia suportar.

– Isto nunca te poderia salvar.

domingo, 13 de março de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVIII

Não há uma fatalidade exterior. Mas existe uma fatalidade interior: há sempre um minuto em que nos descobrimos vulneráveis; então, os erros atraem-nos como uma vertigem. (Antoine de Saint-Exupéry)


Apertei o punho da adaga na mão, o metal gelado que se elevava à intenção de ceder ao que do meu corpo fluía, fugir sem olhar para trás, para onde nunca tivesse de questionar a ausência de vontade própria, a minha segurança, ou mesmo as estranhas ocorrências que surgiam na vulgaríssima existência que tivera até chegar ali. Sem armaduras e com a certeza de que aquela minha estapafúrdia sessão de heroísmo iria ser uma tragédia, avancei.

O ar aguçado invadia-me o corpo com arrepios, feria-me as narinas e os joelhos tombavam a cada passo como se me custasse erguer os pés. Atrás de mim seguia a sequência da respiração expectante do estranho, demasiado alterada pela emoção, entregue a um género de espera cruel. Na minha frente silvos frenéticos que rasgavam o ar e acrescentavam uma aura de sacrifício adjacente a tudo o resto. Parei junto a um amontoado de silvas rasteiras de aspecto decadente, agachei-me um instante, oculta pelos parcos galhos e passei a língua pelos lábios ressequidos pelo medo. Agora… espera. O instinto dizia que não devia avançar, que já estava demasiado perto, a ansiedade pedia uma tomada de decisão urgente e os olhos afunilavam perante o meu alvo, a ampliação do terror exibia escamas pérolas sobre um azul crepuscular. Ergui-me lentamente quando o vi retornar na minha direcção, perdido na sua sequência abstraída de vai e vem tomando cinco metros de território com a pequena extensão do seu corpo esguio. Pela boca entreaberta, exibindo a forma bifurcada da língua, surgiam dentes curtos e serrilhados que ofereciam um carácter agressivo ao olhar opaco das pequenas orbitas esbranquiçadas. A coragem que tentara manter abandonou-me no instante em que a criatura me viu nitidamente na sua presença. Dilacerou o ar com um guincho que me estuprou os ouvidos e vi-me atordoada sem qualquer reacção. Procurei o estranho atrás de mim, a sua figura possante e intocável que refutava todas as minhas inseguranças e no seu lugar encontrei o espaço vazio por entre as arvores escurecidas, ele já não estava lá. A adaga caiu, os meus passos tombaram nas silvas e protegi o rosto com os braços antes do hálito apodrecido se cerrar na minha carne, uma e outra vez, a uma velocidade atroz. A dor que me infligia a cada dentada seguia o pulsar do sangue nas minhas veias, depressa todo o meu corpo doía, tudo em mim rasgava em suplício na vaga de cortes profundos por toda a extensão da pele, e por dentro… por dentro queimava.

“Espera por mim.”… Frágil.

Cerrei os punhos e esbracejei na minha frente, cega por me livrar da criatura enfurecida, por acabar com a aflição de me saber inteiramente entregue e inútil, sem qualquer forma de me proteger. A adaga demasiado longe e a incessante investida sobre mim eram as únicas coisas que rompiam o meu pensamento confuso e descontrolado, fustigado pela pequena memória de uma voz que reconhecia em cada recanto do meu ser como esperança no segundo da desistência. Dentro do meu peito, esta rugia constante pelo tempo que escapava de mim. Aos poucos eu perdia o vigor, os meus braços cediam junto ao corpo e na pele apresentava a proporção da dor nos sulcos ensanguentados dos cortes. Os meus olhos dilatavam nesta sequência de pânico e tudo o que via estava enevoado por sombras. Criaturas oscilantes, muitas em meu redor. Eu era o festim imóvel, enlouquecido e desistente que lhes instigava a fúria com a réstia de ar que escapava apressada pelos meus lábios. Os gritos começaram por se avultar na minha garganta, presos e inúteis na parca tentativa por pedir auxílio, exteriorizar a minha aflição era algo que, embora tudo o resto fosse de uma violência desmedida, me estava a tomar de verdadeiro pavor.

A forma negra que se avolumou nos meus olhos trazia ainda o ardor intenso dos movimentos acelerados por uma chegada inesperada, grande e lustrosa como breu rompia a confusão de figuras disformes e frenéticas com um rugir temeroso e cravado de angústia. Por fim nada me tocava, nada me atingia de dor, nada abalava o meu corpo dilacerado e padeci no silêncio das injúrias sem o mínimo movimento.

Terra…couro…madeira…

O felino que observei junto ao meu rosto era enorme. O focinho afunilado aproximou-se devagar, ofegante, lançando baforadas de vapor pelas narinas fendidas pelo estouro de combate que oferecera ás criaturas despedaçadas ao nosso redor, e por entre a penugem brilhante e sedosa da sua expressão bestial, dois olhos enxameados, rubros de raiva e preocupação. Senti o corpo robusto aninhar-se junto ao meu com cuidado, o calor que emanava do seu pêlo espesso penetrava a minha pele e atenuava a agonia dos golpes como um sopro cálido sobre a frigidez do meu suplício.
Eu estava a alucinar, deduzi ao perceber que retirava estas conclusões de cada vez que me permitia abrir os olhos. Não me conseguia mexer, a pequena tentativa de encher os pulmões de ar reforçavam as pontadas atrozes por cada um dos ferimentos. A única convicção que tinha era a de não resistir muito mais tempo contra a única defesa que me restava. Adormecer, deixar-me velar pela bênção de perder todos os sentidos.

Senti-o erguer-me sem o mínimo esforço, a robustez do seu corpo musculado e ausência de fusão nos passos extraordinariamente ligeiros debaixo do meu corpo inerte. Caminhou devagar até à entrada da gruta, pousou-me no chão e observou com ansiedade, sentado numa postura graciosa, esperando de mim um sinal, algo que se parecesse com a prova de que eu ainda estava ali. Medi a distancia que nos separava e no custo dilacerante do movimento tentei tocar-lhe a patorra que fazia quatro vezes o tamanho da minha mão, a meio caminho o meu braço caiu de novo imóvel.

“Esperaste por mim”…Protegida.

Os olhos aquosos semicerraram bruscamente, o felino ergueu-se e sem hesitação partiu pelo caminho que fizera para me trazer até ali. Esse momento invadiu-me de amargura, eu não queria que ele partisse, sem saber porquê, eu queria-o perto de mim. A sua figura ágil trespassou a orla das árvores e penetrou a escuridão sem sequer olhar para trás.

Gemi de frustração por me saber sozinha…O estranho de olhos claros não estava ali. A promessa que ainda soava na memória fora quebrada pela sua partida no momento em que mais precisara dele. Ele abandonou-me, e com ele, a minha indecifrável dormência. Então neste momento, soube que nada era o que parecia, que este mundo estava pleno de ilusões, pensamentos violados por desejos e estranhos cruéis. A veneração que lhe concedera era porém demasiado recente, reclamava ainda o pulsar de paixão pela sua figura austera e palavras doces, a certeza de que ele era importante para mim. Depois a vergonha chegou, aninhou-se no meu orgulho e despejou sobre as minhas maleitas a vaga do choro.

Passos… controlados e cautelosos vindos do desconhecido. A respiração acelerada que tentava manter estável chegava até mim muito antes de o saber próximo. O cheiro que lhe reconhecia afundou o meu pranto de carência. O corpo esguio e acouraçado debruçou-se sobre o meu com gestos cuidadosos, duas mãos grandes e quentes ergueram-me junto a um peito inquieto.

- Espera por mim. – Murmurou de rosto afundado no meu cabelo.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVII

Atravessei o espaço entre a gruta e as árvores consciente de que os meus movimentos eram impelidos pela figura luminosa e fluida do meu guia, a sua postura exímia e altiva conduzia-me de passos confiantes para o desconhecido sem olhar para trás. Na sua sombra, eu era apenas um pormenor. Aquela figura descompensada e sem importância que o seguia sem uma palavra, sem hesitar, disputando apenas a oportunidade de poder pisar o chão por onde ele passava. Sentia os meus pés gelados, tudo em mim gelava com a proximidade, porém eu nunca diria que não a essa sensação profunda e evidente de abstracção. Aquela doce dormência que sentia perto dele era quase narcótica dos meus males, dos defeitos que durante anos me condicionavam, dos complexos que me aprisionavam a algo que sempre controlei. Agora chegara o momento de me afastar, do alívio que sentia por me saber entregue a alguém que sabia o que fazer com todos eles. Mesmo que esse alguém fosse um estranho.

Parámos na orla escura e opressiva dos primeiros carvalhos. Os cheiros que me rodeavam eram repletos de impressões e as anormais reacções que produziam faziam-me oscilar, retida em pequenos despertares de consciência conforme as captava ao meu redor. Como a casca rugosa das árvores quando lhes toquei, cobertas de um musgo esverdeado e decomposto que cheirava a profundamente a madeira apodrecida na humidade. Terra… couro… madeira…

- Pega nisto. – Dirigiu-se a mim roubando-me á reflexão – Quero ver o que consegues fazer.

Olhei para ele, emoldurado pelas sombras, no vazio de uma floresta cheia de sussurros errantes, maravilhoso e cheio de luz. Toquei-lhe no rosto frio salvaguardando que ele era real, existiam medos dentro de mim que recusavam abandonar a possibilidade dele não estar ali, de poder deixar de o ter perto o suficiente. Depois olhei para as mãos esguias e brancas, o formato perfeito das suas unhas, o trejeito com que segurava firme no cabo requintado de uma espada curta e de aspecto valiosíssimo.

- É para ti. – Ofereceu-ma com algum cuidado. O movimento com que a colocava na minha mão e a cerrava na dele retirava para bem longe o receio e as indagações sobre o motivo para tal presente – Vais precisar dela agora.

Era demasiado pesada como constatei assim que tive de a suportar desamparada nas minhas mãos. Os meus pulsos vergavam sempre que a tentava endireitar na minha frente, supondo que seria dessa forma que a deveria manusear, seria um tormento ter de a transportar, quanto mais ter de lhe dar qualquer tipo de uso. Os meus olhos procuravam os dele sempre que falhava a tentativa, e nele nada me devolvia inspiração suficiente para que o meu esforço fosse tido como efectivo. Ele limitou-se a observar-me, uma e outra vez, erguer o que para si se tratava de um pequeno cutelo, como se este tivesse o peso do seu machado.

- Isso é para usares só com uma mão. – Resmungou aproximando-se para me mostrar como segurar na arma. – Assim!!!

A mão cerrada sobre a minha num aperto penoso não era suficiente para que, mesmo querendo acima de tudo agrada-lo, conseguir fazer o que me pedia. E eu queria muito ser capaz. Queria um segundo da sua aprovação descartando o que isso significava. O que me esperava só viria após esse momento, e depois disso, já nada era tão importante.

- Isso não vai resultar se não te esforçares um bocadinho mais. – Incitava-me ansioso por me ver segurar a espada como idealizara. O rosto cerrado numa expressão de pura frustração enquanto levantava o meu braço para de seguida me ver perder a força e este tornar a descair. – Estás aqui há muito tempo. Hoje já não vais ser capaz.

- Vou. – Recusei de imediato, percebendo que com isto algo nele desistia de mim. – Eu sou capaz.

Ele inspirou profundamente e observou-me esgotar a réstia de energia que sentia fluir do meu corpo para o trágico movimento que terminou com a lâmina cravada no chão entre os meus pés.

- Se calhar precisas de um incentivo. – Colocou a possibilidade no ar com uma centelha de entusiasmo na voz límpida. – Queres experimentar?

- Faço o que quiseres. – Respondi arrebatada pela proposta que nos faria avançar sem mais demonstrações da minha fraca capacidade para segurar a malfadada espada. Apesar de me saber completamente esgotada, eu iria até onde fosse necessário para que houvesse um momento em que conseguisse provar-lhe que tudo aquilo valeria o esforço. - Desde que não fiquemos aqui especados até ficar sem dedos dos pés.

Ele riu-se, provocando-me um pequeno arrepio que me subiu a coluna e se instalou na nuca como um cubo de gelo que acabara de contrariar a gravidade. Peguei no cabo da adaga e arrastei-a junto a mim até ele.

- É pena que não tenhas nada melhor para vestir. Vai ser mais complicado contigo nesse estado. – Observava-me de cima a baixo com algum desdém. Eu sentia e via no seu rosto esses pequenos momentos de depreciação, e em vez de me sentir minimizada ou ofendida, enchia-me de um enorme sentimento de culpa. Eu seria capaz de ser melhor se me esforçasse. Seria capaz de lhe provar que merecia melhor e que teria o necessário para evoluir mesmo naquelas condições. – Vai ter de chegar por hoje. Depois arranjo-te qualquer coisa.

- Não te preocupes comigo. Eu estou bem. – Menti com receio que julgasse ter algum género de interesse nas suas posses ou na possibilidade evidente de me poder providenciar melhor do que eu trazia vestido da minha rua. A única coisa que morava no meu peito sem se deixar domar pela dormência ainda era algo parecido com o orgulho. – Quando for possível, eu arranjo melhor.

Avançamos um pouco mais para o interior do bosque e abandonamos a visão da entrada da gruta. Para trás deixava a rua e os portões escancarados, aos poucos também deixei de ouvir a cascata e por fim, nada se sobrepunha ao desconhecido. Sentia mais do que via o que estava para lá dos troncos grosseiros e fétidos pelos quais atravessávamos em silêncio. A adaga arrastada a meu lado e a armadura metálica em movimento eram os únicos sons produzidos além da nossa respiração, tudo o resto provinha do espaço assombroso e enegrecido pelas copas cerradas acima de nós.
Os meus olhos cravados nele como se nada para além da sua imagem fosse digna da minha atenção captavam silhuetas luminosas que se deslocavam a grande velocidade, serpenteando pelo ar entre as ramagens mais baixas dos carvalhos e que rasavam a mata rasteira iluminando-a num tom azulado. Julguei tratar-se de fumo, alguma espécie de vapor produzido por aquele ambiente sufocado e apodrecido, estendi a minha mão para a dele e apertei-a sem coragem para tirar dúvidas.

- São serpentes. – Parou de repente, quebrando o silêncio sem incertezas e apontou para um ponto alargado de uma clareira a pouca distância, curvou-se a meu lado até ficar com o rosto ao mesmo nível do meu e certificou-se de que eu via exactamente o que ele estava a referir. – Estás a vê-las?

Eu não queria ter de responder naquele momento. No meu peito inflamara uma miríade de sensações ao vê-las nitidamente na minha frente. Serpentes azuis que esvoaçavam em véus de fumo como peixes de barbatanas translúcidas pelo ar. Os corpos longos e fluidos que se moviam em direcções erráticas para regressarem sempre ao mesmo ponto como se ali guardassem, ou aguardassem, algo. Sentia picadas agudas na ponta dos dedos das mãos e dos pés e voltei a ouvir o meu coração, irregular e descompassado pelo medo e pela confusão, o dele sereno e ritmado a meu lado, depois os silvos da deslocação do ar daqueles seres misteriosos e assustadores e por fim, como uma invasão ensurdecedora a cada canto do meu corpo, todos os sons numa distância impossível de conceber. O cheiro intensificou-se em ondas de deslocação do ar e tornei a enjoar com a amálgama de fragrâncias e odores tão insuportavelmente acentuados. Eram lindas na verdade, mas não existia uma única razão para que, e reagindo o meu corpo daquela forma, eu confiasse numa aproximação segura. Tudo em mim reclamava pela inacção de movimentos, pelo enorme controlo que tinha de ter para conter a vontade desproporcional de correr dali para fora e fugir de regresso à segurança da gruta.

- Existem duas coisas muito importantes acerca delas que deves saber. – Tornou a falar junto ao meu pescoço, o sopro frio das suas palavras como um espicaçar premeditado nos meus instintos – A dentada e a forma de as matar.

- Prefiro matar antes de descobrir o que acontece depois da dentada. – Respondi-lhe, ouvindo a minha voz fugir pela garganta como um jorrar de desespero contido. Recuei um passo e senti as minhas costas de encontro ao seu peito de ferro. – Como se matam?

- A cabeça é a forma mais eficaz. – Rodeou-me até ficar na minha frente e eu deixar de as ver vaguear tão perto de nós. - Normalmente uma pancada forte é suficiente, mas no teu caso… era melhor que conseguisses usar a adaga.

- E se não conseguir das duas formas? – Coloquei a terceira opção como quem faz um pequeno apontamento sem importância. Eu estava aterrorizada. – O que faz a dentada?

- Eu não as deixo morderem-te o suficiente para que seja uma catástrofe. Também não precisas entrar em pânico, eu fico aqui a ver. São só umas serpentes… dói um bocadinho.

Fechei os olhos alguns segundos na tentativa de assimilar aquilo que ele acabava de dizer. Eu ia atacar serpentes, não existiam dúvidas de que era precisamente aquilo que ele queria que eu fizesse. Seres que voavam quando deviam rastejar e que exibiam nos seus movimentos uma incontornável mensagem que apelava à distância e bom senso. Ia fazê-lo sozinha, sem saber muito bem como, e com a ajuda de uma catana que pesava mais que um calhau.

- Promete que a matas se me morder. – Encarei-o entusiasmado na minha frente com a expectativa. Os olhos brilhantes e o sorriso confiante na minha tomada de decisão, como se aguardasse o acontecimento com verdadeira confiança na minha duvidosa vitória.

- Prometo.