sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXVI

Aguardámos o amainar do tempo abrigados no arco que separava a gruta do exterior. Depois das suas palavras eu dediquei-me apenas a observá-lo, perto, despreocupado e seguro das minhas avaliações. Não era curiosidade que nutria pela sua figura possante e mente luminosa, era apenas… eu não sabia o que lhe chamar. Os olhos límpidos dardejavam os meus até aos confins do meu ser, e era nisso que eu me detinha abalada no seu abraço despropositado. A profunda rendição a algo que completava aquilo que trazia em falta. Os meus sentimentos pelos seus.

- Sentes? – Interrompeu o meu magnetismo como quem apaga a luz no breu.

- Não sei o que sinto. – Expus com sinceridade, atordoada pela forma como interrompia a paz nos meus pensamentos. – O que queres que sinta?

- Aquilo que te dou. – Sussurrou junto á minha fonte, beijando-a de seguida como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Era isso que eu sentia agora. Os lábios frios num adormecimento profundo daquilo que me afligia, como se fosse necessário escudar-me de tudo o que ocupava espaço além de nós. – Sentes?

Sentia. De facto, naquele momento, era a coisa mais preciosa daquele estranho, a única certeza que chegava até mim ao vislumbrar o caminho que me separava da minha aventura.

- O meu mundo é teu.

As palavras apesar de não fazerem sentido, ditas de forma tão absoluta instalaram-se nas minhas certezas. Aquelas poucas certezas que alguém como eu transporta pela vida e se sustém inabalável do seu significado.


A chuva parou. Não percebi em que momento, entre o pousar da minha cabeça no seu ombro e o som blindado da sua respiração dentro de um peito metálico, a tempestade deu lugar ao silêncio. Gotículas brindadas pela luz do sol brilhavam no aço a que me agarrava tão ausente. Ele moveu-se e com ele, o meu corpo enrijecido pelo frio e pela imobilidade.

- É tarde. – Sentenciava a voz bela como que trazida pelo vento. – Vamos caminhar aos poucos e hoje ficamos aqui por perto. Estás a perder a vitalidade e eu não te quero colocar em perigo.

- Eu estou bem. – Menti ao atingir o despertar do tom de despedida nos seus lábios. Passei as mãos pelo cabelo escorrido e humedecido pela chuva que chegara até nós e apertei a capa em meu redor. – Eu aguento mais. Eu consigo acompanhar-te.

- Não tenhas pressa de entrar ali. O tempo não perdoa aqueles que se julgam mais fortes que aquilo a que estão destinados. – Sorriu sabendo que eu entendia perfeitamente ao que se estava a referir. – A tua fragilidade nunca foi uma dúvida. É um facto que deves ter em conta. Não podes alterar aquilo que és de um momento para o outro. A tua sobrevivência aqui não depende da tua vontade mas sim do quanto irás alcançar se souberes usar isso a teu favor.

- “Ninguém disse que ser frágil era mau”. – Repeti as suas palavras sentindo como estas se encaixavam depois de eu as compreender. - Entendo.

- Vais entender muitas coisas com ele longe de ti. – Cuspiu para o ar sem o cuidado de não me relembrar que essa presença, agora ausente do meu caminho, ainda se debatia na minha memória. - Aquele imbecil de orelhas em bico que não tem onde cair morto.

- Orelhas em bico?

Ele olhou-me de lado como se não entendesse onde estava a estranheza da sua declaração. As narinas dilatadas e os olhos fixos numa imagem extenuante de ódio e impaciência que deram lugar a um esgar de repugnância.

- Não lhe vês as orelhas bicudas e os olhos negros como um demónio? - Rugia de mão segura no punho do machado – O que viste naquele miserável?

Muito longe, perdida dentro de mim, morava a memória de um estranho de olhos escuros. Uma figura alta e vibrante, de sorrisos difíceis mas arrebatadores. Se me concentrasse um pouco nessa memória, reconhecia nessa imagem fugidia a irreverência da juventude numa voz pontuada de um ironismo infalível. Lembrava também a indolência dos seus passos na minha rua, o quebranto da pele amena e agora a sua ausência. O estranho de olhos escuros regressava até mim com a demora do tempo, como se houvera passado anos, uma memória de uma memória. A mochila inglória era a única coisa que preenchia o espaço em branco. A minha couraça, as sandálias… uma voz na minha cabeça? O “outro”?

- Não sei do que estás a falar. – Devolvi ainda debruçada naquilo que com dificuldade conseguia extrair de mim própria. Eu falara dele pouco antes, conhecia-o, ele estivera presente algures. – Não me lembro. Já foi há quanto tempo?

Ele sorriu. Como um tutor paciente que sabe esperar o fruto do esforço, acariciou-me o rosto com ternura e abandonou a irritação. Abraçou-me um momento e depois de me beijar a testa tornou a inundar os meus olhos de luz.

- Desculpa. Não é importante. – Disse num sussurro – Já foi há muito tempo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rua da Jinx - Entre Mágoa e Ilusão XXV

Sabia que não encontraria espaço para abarcar a razão. Não era o abismo negro e repleto de segredos que contemplava agora tão perto do rosto, antes o infindável espaço vazio para onde esgotava a réstia do meu desespero. As minhas mãos cerradas sob um peito de ferro e a crença de que nada mais havia a perder. Eu dar-lhe-ia o resto, aquilo que sobrava, o fumo que assolava a ausência dos meus sentimentos.

- Não tenho mais nada a perder. – Concluí com a voz reduzida a um murmúrio. O eco das palavras a perder-se no espaço insondável que nos rodeava. Não a reconhecia, aquela deposição de mim própria, no entanto, sabia que não era eu. – Leva-me lá para fora.

Ele aguardou em silêncio. As mãos esguias enfunadas nas minhas ancas com robustez e os olhos claros vaiados de glória.

- Até onde estás disposta a seguir-me? – A voz adocicada soprava o meu rosto numa carícia, a pergunta destituindo-me de medo, de ausências, até mesmo da resposta.

Escutava-o… a voz, a pele, o cheiro… escutava-o.

- Há coisas que não entendes. Eu procurei demasiado para agora correr o risco de te perder.

O ímpeto, a descrença…escutava-o.

- O mundo ali fora é enorme. A tua demanda por… - Interrompeu-se por um termo adequado – os “sentimentos” que te escapam. Eu não te posso prometer o que já perdeste.

Estranho… escutava-o: “não vás…espera por mim”… Frágil.

- Eu não te estou a pedir os meus sentimentos de volta. – Devolvi enquanto me forcei a afasta-lo, desta vez sem cerimonias. – Os sentimentos, esses que desapareceram, são meus. Não estão perdidos. Mostra-me o caminho.

Ignorei a forma como ele reagia aos meus movimentos. O esgar de impotência aquando da brusquidão com que os seus olhos abandonaram os meus e a minha voz regressara vigorosa a garganta ressequida pelo choro que continha a todo o custo. Dei por ele a auscultar cada um dos meus pensamentos, manso, terno e implacável.

- O que me dás em troca? – Escutei-o como um chicote nas minhas costas. Um puxão em rédea curta antes mesmo de dar o primeiro passo. Estaquei a pouca distância e encarei-o de novo.

- O que queres de mim? – Volvi dividida entre a possibilidade de falhar e do custo que isso acarretava. – O que queres quando aqui vens e me enches a cabeça de sonhos?

Quando ele sorriu… eu soube que estava perdida.

- Eu vou cobrar. Quando chegar a hora.

Senti no ar a advertência daquelas palavras. Estavam ditas, não como uma ameaça mas como algo definitivo. Aceitei-as com um aceno, desloquei-me na impotência e com esse gesto engoli o orgulho da minha liberdade. Estendi a minha mão para a dele e ele apressou-se a cerrar o punho em volta dela.


Cheguei ao portão de âmbar seguindo os passos firmes do estranho que seria o meu guia. No peito o coração batia de forma pujante e vigorosa, um alarme que me despertava todos os sentidos para aquilo que teria em breve pela frente. A entrada recôndita do interior da gruta, o ponto de partida, a frecha do meu ponto de encontro.

- A roupa que trazias ontem? – Perguntou de olhos postos naquilo que trazia vestido. As calças esfarrapadas e a blusa metade daquilo que antes me cobrira o torso inteiro. Ao seu lado parecia um pardal junto a um rei de rapina.

- Não sei. – Encolhi os ombros sem ter tido hipótese de ver respondida essa pequena falha na minha memória. – Foi o “outro” que ma deu.

- Ele que fique com os trapos. – Sibilou contrafeito, a expressão magnífica maculada pela raiva. - Vou dar-te mais do que ele alguma vez pôde sonhar ter. – Disse apertando a minha mão na sua. Ele estava gelado. Frio como um icebergue de metal. – Anda.

Eu via-me arrastada a seu lado. Não que o acompanhasse contra minha vontade, mas a sua mão relembrava-me a algema que não via, ou não queria ver. O escudo abaulado luziu ao ser erguido contra a queda de água, a luz cristalina num chorrilho de formas dispersas em nosso redor enquanto a transpúnhamos para o outro lado.

Madeira…couro…terra…

O som desproporcional de água chegou-nos a partir da saída da gruta. Os céus bramiam em tempestade como se me recebessem em discórdia e a chuva arrebatadora que fustigava o chão, enchendo-o de sulcos profundos, transformava a terra ressequida na continuidade da lama que trazia agarrada aos meus pés descalços. As sandálias, essas tinham partido na mochila, desaparecidas tal como a estranha armadura de couro. De queixo erguido e peito pleno de ar, ignorei as tremuras, o aperto na mão e também o nervoso estilhaçar da coragem.

- O que sabes acerca deste mundo? – A voz doce e repleta de ternura chegou-me como um bafo quente. Largou a minha mão e colocou o braço sobre os meus ombros. Era pesado, um fardo de ferro duro que se instalou comodamente e não me trazia aconchego, tão pouco o calor desejado após provar a sua voz. No entanto, eu cedia, algures…

- Sei que algo meu se encontra ali. – Indiquei com um aceno para o negrume que as árvores abrigavam sob os galhos agora gotejantes de chuva. - E sei que vou atravessar esse teu mundo até o encontrar. – Tentei que as minhas palavras não traduzissem o que dentro de mim se esvaía, a esperança de que não fosse tarde demais. – Sei que neste mundo existem pontos de encontro iguais ao meu. Que vocês, que chegaram aqui primeiro o dominam e se fundem num todo como fantasmas encurralados.

- Fatalista. – Apontou estreitando-me contra si. – Não é assim tão mau.

- E tu? – Olhei para ele, o rosto tão perto que a sua boca carnuda me impelia de um desejo profano, os olhos cravados nos meus e o adocicado toque da sua mente na minha. – O que sabes acerca deste mundo?

Ele era o centro do mundo. Qualquer que fosse a resposta. Estranhas eram as dúvidas que palpitavam dentro de mim sempre que me permitia afastar-me da segurança que ele me providenciava. Lindo, esbelto… perfeito. - Estranhos, eram quantos? - Afastei a fagulha que me arrepiava a pele, o calor não era externo, era dentro de mim. Tudo o resto podia gelar no esquecimento.

- Sei que tu chegaste. E que antes de ti não havia nada.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXIV

O tempo fora da rua escoa numa sucessão de horas embriagadas de genuína ansiedade. Avanço e recuo, para voltar a avançar diante da porta, as mãos suadas e respiração pesada, enquanto espero o momento oportuno em que as amarras da realidade me cedem a liberdade da rua e relembro… O meu peito enche com os detalhes do que aconteceu no dia anterior e permissivo o momento da minha entrada, não hesito e coloco a chave na fechadura.
A porta desliza nas dobradiças antes perras e barulhentas para se deter no velho batente que raramente fora empregado. Estaquei equilibrada no horizonte que me separa da sua existência e contemplei a imagem, a ostentação da minha obra naquela que sempre foi a sua glória. Uma rua de singular ausência de desordem. Os arcos em pedra escura, beijados pela luz renitente de uma aurora tendenciosa e perspicaz, as pedras lustrosas pelos anos dos meus passos e um silêncio contemplativo. A minha rua.
Entrei e fechei a porta atrás de mim num gesto ausente do costumeiro ruído do ferrolho, o velho carrasco rabugento não emitiu um único som. Não existia um único vestígio da impostura verdejante que estrangulara cada recanto da minha criação, como se nunca ali tivesse encontrado nada fora do lugar que lhe havia destinado, tal como uma ilusão, uma miragem, a panóplia florestal que me apavorou com a sua lenta devastação, desapareceu.
Aproximei-me cautelosa do banco onde costumo deixar a minha capa e passei-a pelos ombros, numa repetição reconfortante dos meus hábitos. Apesar de tudo ter voltado ao seu lugar, de me ser óbvio o reconhecimento da ordem de cada pormenor, alguma coisa faltava ali. Eu sabia que sim, como uma cor, um cheiro, um ínfimo pormenor que amamos profundamente e nos atinge com uma ausência dolorosa.

- Eles não voltam enquanto ele andar por aqui.

Sobressaltei-me com a viscosidade daquela voz que me chegou oculta pelas sombras dos arcos mais distantes. Um tom triste e pausado que soava a mágoa. Quando apareceu, era uma figura vergada pelo cansaço. O rosto belo, marcado por uma fadiga que lhe carregava o olhar luminoso e a lentidão dos passos na minha direcção uma sucessiva cadencia de movimentos.

- O que estás a fazer na minha rua? – Perguntei obrigando-me a permanecer no mesmo sitio e não recuar com a sua aproximação. Não queria voltar a senti-lo moldar-me os pensamentos e perder o controlo da minha consciência. Naquele momento não existia nada nele que me impelisse de desejos ou me toldasse a visão, era apenas uma figura abatida, a chama de um pavio que se recusa a acender. – Como vieste aqui ter?

- Vi-o trazer-te para a gruta, quando… quando te atacou daquela forma. – Falava por sopros, como se o esforço de cada palavra lhe escoasse a réstia de alento onde se amparava. Limitei-me a escuta-lo, a pouca distancia, impondo-me o esforço por não olhar directamente para os olhos baços que procuravam timidamente os meus. – Tinha de ver com os meus olhos. Saber se depois do que te fez, se voltavas aqui. - Eu vi no que ele transformou a tua rua.

- Estás a dizer que foi ele quem fez aquilo? – Questionei-o com a dúvida a instalar-se no peito. Era possível que assim fosse, que apesar da minha intuição se recusar a ceder quanto a essa possibilidade, aquilo que ele estava a dizer ter um fundo de verdade. Muito antes do seu aparecimento, o estranho de olhos escuros tinha estado ali, tinha rondado e vasculhado a minha rua, e tudo se sucedeu após o seu misterioso aparecimento.

- Ah sim… – Varreu o ar na sua frente com um gesto brusco, como se afastasse qualquer dúvida, um fantasma que assombrasse a certeza do que dizia. - Aquilo que encontrei aqui, não pode ter sido feito por ninguém senão os da espécie desse maldito. – Aproximou-se um pouco mais e eu recuei. A sua voz começava agora a mudar, mais arrojada, no tom que intimamente recordei e me arrepiou a nuca. – Eles estrangulam tudo, distorcem as mentes e sugam a vida que os rodeia. – Susteve de súbito a explicação exaltada de ódio como se lhe estivesse a escapar algo e insistiu com dois passos em meu encalço. - Não te quero assustar.

- Eu não estou assustada. – Menti e cerrei os punhos enquanto engolia o medo das suas palavras, verdadeiras ou não, existia nelas a neblina que me ocultava as suas intenções. O derradeiro passo que recuei encostou-me ao pilar frio que limitava o espaço entre ambos. – Ele não me fez nada de mal. Aquilo que aconteceu ontem foi… - Outro mistério, outra pergunta sem resposta. – Um acidente.

Ele abanou a cabeça ao escutar-me, baixou os braços e tornou à postura vergada de semblante cansado como se acabasse de desistir de algo para o qual não teria força para enfrentar.

- Eu sabia que ia ser assim.– Começou a andar lentamente na minha frente, percorria a extensão da largura da calçada e voltava a repetir os mesmos passos continuamente, enchendo-me da sensação de me encontrar encurralada. - É normal que não te lembres. Provavelmente faz parte do encantamento.

- Que encantamento? – Obriguei-me a perguntar. Era importante que alcançasse todas as respostas, a seu tempo, teria oportunidade de meditar acerca delas e chegar às minhas próprias conclusões. Não podia simplesmente entregar-me a um medo coactivo e aceitar que ambos me desejavam mal ou teriam uma qualquer intenção oculta a meu respeito. – Estás a falar do que me fez desmaiar?

- É mais do que isso. É a forma como ele já consegue controlar os teus pensamentos que me deixa impressionado.

- Ele não controla os meus pensamentos. – Vociferei levada pela injustiça de ele ser capaz de dizer tal coisa, depois de eu ter sido capaz de identificar todas as artimanhas com que me cercara no dia anterior, ser capaz de atribuir tal intenção a outra pessoa era repulsivo. – Quem o fez foste tu.

Para minha surpresa, o choque que a acusação lhe provocou atingiu-me como uma bofetada. Os olhos claros e cristalinos alteraram-se, fixos nos meus, transparecendo uma tristeza tão profunda que me fez sentir a pessoa mais cruel do mundo.

- Desculpa. – Apressei-me como uma criança que é surpreendida a esconder estilhaços debaixo do tapete. Eu não suportava ser a causa para aquela sua expressão dolorosa. – Eu estou confusa. Há muitas coisas que não compreendo.

- Eu sei. – Garantiu, mostrando-se cuidadoso. Um tanto forçado, mas sem deixar de parecer sincero. As mãos brancas e delgadas alcançaram o meu rosto e emolduraram-no delicadamente entre elas. – Eu imagino como deve ser difícil para ti, encontrar respostas num mundo onde ainda não encontraste o teu lugar. – Os dedos esguios penetravam agora o meu cabelo, descendo lentamente até se deterem a meio das minhas costas. – Sou eu quem tem de pedir desculpa. Devia ter chegado aqui mais cedo.

O toque frio da sua pele, quando tocava a minha daquela forma, produzia em absoluto uma reacção neutralizante. Sabia-me dividida entre a permissão de o apreciar intimamente, não apenas ele, mas também a resposta que facilmente se traduzia em mim na presença do outro estranho, e a sensatez de desconfiar de mim própria por o consentir daquela forma. Era ingénua por cada demonstração de proximidade. Caminhava a passos largos por caminhos repletos de perigos contra os quais não me sabia escudar.

Disseste que eles não iam voltar enquanto ele estiver aqui. – Arrisquei, reagindo de imediato. Afastei-o pelo peito numa tentativa pouco conseguida, não queria que fosse demasiado óbvia a intenção de que não era meu desejo que se mantivesse demasiado próximo. – Estavas a falar do quê?

- Dos teus sentimentos. – Respondeu sem se afastar. Pousou as mãos firmes na minha cintura e permaneceu exactamente no mesmo sítio. - Os portões estão vazios, não sobrou nada dentro deles. Ele libertou-os lá fora e não vão regressar enquanto o encontrarem perto de ti.

O significado das suas palavras apunhalou-me de dor. Então era essa a ausência na minha rua. Os sentimentos que durante todos estes anos fui ordenando cuidadosamente na construção da minha criação tinham-me abandonado. Já não controlava absolutamente nada. Agora, até a invasão selvática que preenchera ilusória todos os espaços onde antes se dispunham organizadas as moradas de cada um dos meus sentimentos me deixara sozinha, numa rua sem sentido, completamente vazia.

- Como os recupero? – Agarrei-me à única réstia de esperança que encontrei no peito. Uma pequenina luz que teimava brilhar no vazio. – Diz-me!!! – Exigi de mãos cerradas no seu peito metálico. – Como posso ir buscá-los? Onde?

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXIII

- Bom, se queres saber a verdade, é muito difícil perceber como e quando o fazem. – Pontuei sem deixar de observar aquela inesperada manifestação de embaraço. – Sei que aquele estranho o faz constantemente. Eu sinto-o enredar-me os pensamentos, faz-me desejar “coisas”.

Tossiu de forma brusca, dissimulando várias palavras que não me interessei em saber se pertenciam ao meu vocabulário, depois tornou à expressão branda e pegou nas minhas mãos como se o fizesse com bastante frequência.

- Existem muitas coisas neste mundo que eu te posso ensinar e levar a compreender. – Sentia o toque dos dedos quentes rodearem as palmas das minhas mãos delicadamente e refreei o prazer que isso me dava sem lhe abandonar os olhos. – As outras fazem parte das nossas próprias escolhas. É isso que não te posso mostrar ou enfiar nessa cabeça de vento.

Era um sorriso estreito e fugidio, mas era um sorriso. Soube com uma certeza incontornável que, desconhecendo tudo o resto, era aquele o verdadeiro impulso que me faria escolher o que procurar naquele mundo. Encontrar o motivo porque despertava em mim tamanho assombro em cada demonstração de luz naquele estranho, porque era especial para mim o facto de o ver sorrir daquela forma.

- O que aconteceu quando me encantaste? – Questionei sobrepondo as minhas dúvidas ao silêncio que nos circundava, à naturalidade com que aceitava o seu toque, abstraído com as minhas mãos nas dele e eu, confiando-lhas sem a menor hesitação. – Eu oiço-te na minha cabeça. Não são palavras… é como se…

- Os meus pensamentos se misturassem com os teus. – Completou e retirou as mãos do colo que sustinha as minhas. – Isso não sei explicar. Já te oiço há algum tempo.

- Ouves-me?

- Sim, os teus pensamentos interrompem os meus. – Descrevia deixando transparecer o quão irritado aquilo o deixava. - Sou obrigado a partilhar essa confusão de dúvidas existenciais e conclusões acerca do motivo de tudo, onde estás sempre a bater nas mesmas teclas e não chegas a lado nenhum.

- Ouves-me falar sozinha? – Tentei assimilar, dividida entre a mais profunda vergonha e o fascínio pela remota possibilidade daquilo que ele estava a relatar ser praticável. – Sempre?

- Felizmente não. – Gracejou com uma careta plausível – Ignoro-te a maior parte das vezes.

Não sabia dizer se aquilo me deixava mais aliviada ou, de certa forma, ofendida por considerar os meus pensamentos tão entediantes. Algo dentro de mim rugiu baixinho confrontado com a ideia de que o incomodava por pensar de certa forma.
Evitei olhar para ele enquanto debatia estas minhas fagulhas de desconsideração por mim própria. Se me visse como eu me vejo era natural que sofresse amargamente com uma presença tão irritante e enfadonha a inundar-lhe a cabeça com meditações desinteressantes cheias de causas e consequências acerca de tudo sem o poder evitar. Que pensar então, dos pensamentos cada vez mais frequentes que eu tinha acerca dele? O meu rosto incendiou instantaneamente.

- Estás a dizer que “isso” acontece a qualquer momento, mesmo quando eu não estou por perto? Não tem nada a ver com os olhos?

- Não. Aquilo que acontece através dos olhos é diferente. – Respondeu-me com paciência, esticando as pernas ao meu lado e deitou-se no chão da rua, tão quieto como se fizesse parte dela. – O que oiço na minha cabeça, são palavras soltas como impulsos. Às vezes são ideias, decisões, frases que nem sempre estão completas. Acho que são coisas que te marcam, ou que te são importantes e te obrigam a reagir.

- Mas… eu não te oiço. Só quando… - Tropecei nas palavras com a vergonha instalada na garganta como um pequeno torniquete. – Quando fazes aquilo com os olhos.

Silêncio.

- Não tens medo do que encontras nos meus olhos? – Murmurou tão baixinho que duvidei que estivesse a falar para mim. Como se ele próprio temesse a pergunta e não a resposta.

Observei-o estático na minha frente, os olhos fixos na minha aurora inebriada num fulgor ténue de silhuetas dançantes. O maxilar cerrado com firmeza num rosto que se moldara demasiado sério, ausente da mais pequena demonstração de emoção. Pensei como era fácil olhar para ele como um estranho e perder-me algures no labirinto de segredos que o cercavam e evocavam a minha curiosidade, sabia que ali morava o perigo de nunca encontrar uma saída através da bruma que o ocultava do mundo. Era sem duvida uma figura carregada de sombras e expressões frias, escudado por palavras que velavam um silêncio prolongado na sua própria solidão. Era um homem jovem, no auge da sua virilidade, todavia algo nele denunciava uma alma profundamente embebida no fardo de uma vida.
Existiam muitas razões para que tivesse medo dele. A que mais me causava receio era precisamente a sua chegada inesperada a um lugar que nunca partilhara com ninguém, ao único espaço verdadeiramente meu, e por onde ele se deslocava com suposto desinteresse. Outra era a estranha partilha dos meus pensamentos com alguém que, sendo um completo desconhecido, tinha acesso à nudez da minha intimidade. Não conhecia o motivo para que aquilo acontecesse, nem como era possível, muito menos como evita-lo. O facto de não ter hesitado em demarcar os seus próprios limites sem cortesias também se afigurava como um bom motivo para que não o subestimasse. Eu podia, em plena consciência, ter medo dele só pelo facto de fisicamente ser uma oponente a ter em fraca consideração. Ele era enorme, com pouco menos de dois metros, deitado preguiçosamente aos meus pés, as pernas compridas esticadas acima de um tufo verdejante de trevos sobre ervas daninhas, um tronco de ombros largos e braços robustos que eu conhecera fortes e vigorosos.
E depois os olhos escuros como dois fragmentos de ébano. Um abismo profundo de chamas e um poder inquestionável.

De tudo o que existia naquele mundo, e que eu desconhecia para que pudesse temer, os olhos dos “estranhos” que faziam parte dele, reservavam parte do mistério que envolvia a ordem e funcionamento em permanente equilíbrio da existência das duas ordens. Podia ter medo deles, era sensato que tivesse, do que escondiam e do que, com facilidade, colocavam nos meus pensamentos. Existia dentro de mim uma forma de me escudar disso, evitar providenciar acesso à minha mente e impedir aquela perigosa emissão de ideias antes que esse controlo me tornasse passível de ser influenciada. Era difícil alcançar uma plena consciência de que eu tinha capacidade para combate-lo, quando dois olhos claros como cristal num rosto de uma beleza prodigiosa me obrigavam a baixar a guarda e desejar que me tomasse até à infinidade do meu ser. Mas era possível.

A antítese gloriosa da escuridão era… diferente. Algo aconteceu no momento em que as chamas daqueles olhos negros invadiram e penetraram os meus. Podia lutar contra uma mente que cercava a minha e contornava os meus desejos como um punho que se cerra lentamente. Isto era distinto, era algo que simplesmente estilhaçava a minha consciência. Ouvia a sua voz límpida na minha cabeça como se sempre lá tivesse estado, reconhecia-lhe cada cadência grave, o cuidadoso vibrar das suas emoções no meu peito, percorrendo cada golfada de sangue nas minhas veias. Eu não tinha medo dos olhos dele, nem das vozes, ou dos significados de cada partilha involuntária. O que eu temia verdadeiramente era a ausência de todos eles, aquele segundo de trevas que me engoliu antes que alcançasse o que se encontrava daquele lado do abismo.

Talvez não estivesse preparada para tal. Talvez nunca viesse a estar.

- Não. Eu não tenho medo dos teus olhos. – Respondi por fim, sem denunciar qualquer dúvida quanto a essa incompreensível certeza. – Não me lembro do porquê de ter perdido os sentidos, mas sei que não tive medo quando me encantaste.

Ele não comentou e permaneceu em silêncio. Como se aguardasse em suspenso a conclusão da minha resposta.

- Não sei do que és capaz, nem como o fazes ou porquê. – Continuei a minha estranha digressão em voz alta, sentindo a facilidade com que transpunha em palavras a confusão que se ia acumulando na minha cabeça. – Vocês são diferentes, tu e o outro estranho. Com ele, eu consigo perceber como e quando modifica o que sinto, os meus desejos, sei que o faz para controlar o que penso acerca dele, e sobre ti. – Acrescentei, isolando esse pormenor para o contemplar mais tarde. – Utiliza os olhos para chegar até mim e depois… sinto medo do quanto cedo e do quanto ele retira. – Repeti estas últimas palavras até encontrar um significado onde se encaixassem, guardei-o junto aos outros e voltei a divagar. – Quando me encantaste, deixei de o sentir nos meus pensamentos.

- Tu sentes muitas coisas ao mesmo tempo. – Resmungou cruzando os braços por cima do peito e inclinou o rosto na minha direcção de sobrolho erguido. – Continua.

- Porquê? O que interessa o que penso sobre isto? – Libertei a minha muito contida frustração. – Vais ficar aí calado a ouvir-me e vou ficar sem respostas na mesma. Tanto faz o que penso sobre vocês. Continuam a ser dois estranhos.

Ele riu-se. Uma gargalhada sarcástica que ecoou pela rua e se perdeu através dos portões escancarados dos meus sentimentos agora perdidos e dispersos. Quando o silêncio regressou, ele estava de novo petrificado aos meus pés.

- Eu não sei o que aconteceu quando te encantei. – Falou de novo, arrepiando-me e fazendo-me saltar com o susto. – Não o faço muitas vezes.

Esperei impaciente pelo resto, como se o ar não me chegasse aos pulmões antes de ele libertar aquela sua espécie de esclarecimento desagradado.

- O que foi que me fizeste?

- Ele mostrou-te o que podes sentir, aquilo que podes desejar alcançar, o que podes ser… - Respondeu de olhar perdido nas partículas de poeira iluminada que descia dos arcos acima de nós, aos poucos adormecia a minha aurora poente, fadando a sua imagem translúcida que ia esmorecendo antes das suas ultimas palavras. – Eu mostrei-te o que tu és.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão XXII

“Existem várias formas de descrever o que progrediu a partir deste momento, no entanto, o segredo permanece para sempre no teu olhar.” (Jinx)


Fiquei gelada. Senti o meu corpo ceder e por um momento deixei que aquela sensação de ausência me inundasse, depois estava demasiado escuro para que percebesse que mãos, quantas, me amparavam a queda.

Acordei junto à entrada da minha rua, deitada perto dos arcos do pensamento, repletos da era viçosa que espaçosamente se espraiava por cada recanto das minhas construções. Sentei-me devagar, poupando os movimentos com indolência e suspeita de que não estava ali sozinha. A luz obscura da aurora debruçava sombras dançantes em meu redor. Ao longe, um sopro de agua fugia através de um portão sem cadeado e trazia ate mim a visão de um mundo que eu vislumbrara, um mundo sustentado pelos sonhos e sentimentos, gerado pela criação intrincada de duas ordens. Estava lá e era tão real quanto a rua que sempre conheci.

Na minha cabeça surgiam as imagens entrecortadas dos acontecimentos, olhares fogosos e aparições na orla das árvores cerradas junto à clareira que escondia a gruta da cascata. Aqueles dois homens estranhos, tão diferentes e misteriosos. Olhei á minha volta perscrutando nas sombras um sinal de movimento e levantei-me devagar. A força que os movimentos exigiam para me conseguir sustentar esgotavam-se em cada partícula do meu corpo como se estivesse prestes a estilhaçar. Já não trazia a minha couraça vestida, aquele presente desconcertante desapareceu, estava nua debaixo da capa negra que abandonara sobre as rochas. Demasiado esgotada para me insurgir sobre o que isso significava ou me remeter a pensamentos ultrajados acerca da minha dignidade escorreguei pelo pilar de volta ao chão.

- Talvez ele tenha razão. – Sussurrei baixinho para a rocha onde pousara a cabeça – Talvez eu seja muito frágil…

Ouvi-o muito antes de ele se aproximar, os passos largos, firmes na terra quebrada e nos ramos tenros que cobriam o chão. Madeira…couro…terra…sangue… Parou na minha frente, via-lhe as botas gastas, e a respiração entrecortada quebrava o silêncio da ausência do tempo. Sentou-se na minha frente, gracioso e tenaz como se estivesse em constante mudança de movimentos moldando-os para sua comodidade. Amparou-me com um braço e sentou-me equilibrada pelos pulsos nas suas mãos grandes e firmes. Quedei-me de joelhos encostados nos dele e as mãos inertes sobre as suas botas.

- Toma. – Estendeu um frasquinho de vidro colorido num tom carmim na minha direcção. Era pequeno, em forma de bolbo, e cabia-lhe no punho fechado. – Bebe isto, tudo.

Não perguntei o que era, limitei-me a recebe-lo na minha mão sem muita observação, reparei que era quente e que borbulhava como se tivesse vida própria e, confiando cegamente naquele estranho especifico, levei-o aos lábios. Não tinha cheiro, e ao primeiro trago também não tinha gosto. Água quente pensei, ganhando coragem para emborcar o resto sem receios. Não esperava que me oferecesse nada milagroso que afastasse de repente todo aquele cansaço e preenchesse a minha falta de energia, de facto, não senti absolutamente nada nos primeiros segundos após voltar a olhar para o frasco vazio com propositada descrença. Então, as duas mãos que me equilibravam mantiveram-me firme no chão, quando enxameada por centenas de picadas ardentes, me remeti a vigorosas tremuras que estimulavam de uma só vez cada ponto nervoso do meu corpo.

- Já passa, não te assustes.

Ele tinha uma forma simples de apresentar o que para mim seriam verdadeiras ondas de terror. Eu não estava assustada, estava a aceitar com verdadeiro mérito o facto de morrer jovem, entre mundos, e queimada viva. – Os meus exageros transitam bastante entre os segundos que me submetem a algo que desconheço verdadeiramente. – A sensação de fogo que se espalhava pelas veias aceleravam os batimentos descompassados do meu peito ofegante, tudo em mim clamava entre a dor e a adrenalina. De repente parou… a pulsação acelerada do sangue latejava e preenchia o corpo cansado com uma energia vibrante e vigorosa.

- É uma experiência desagradável quando bebes pela primeira vez, eu sei. – Pegou no frasquinho que caiu no meu colo e guardou-o no bolso das calças. – Estás melhor?

Dispensei-me de lhe responder, flecti as mãos e os braços enrijecidos depois da arrebatadora “experiência desagradável” e sorri. Não que tivesse surgido entre nós nada que me permitisse partilhar o que realmente sentia depois de vivenciar algo daquele género, mas era quase impossível não me permitir exteriorizar o assombro pelo resultado. Era admirável, e misterioso como tudo o que provinha daquele mundo.

- O que se passou? – Perguntei-lhe sem permitir que se afastasse e me roubasse a oportunidade de perceber o que tinha acontecido depois ter perdido os sentidos.

Contrariando o que eu estava à espera, e tendo sido sempre óbvio que ele não era inclinado a dar grandes explicações ou a alongar-se em diálogos inoportunos, inspirou uma grande quantidade de ar e encolheu os ombros quando o libertou. Fixou-me e levantou a mão até ao meu rosto, afastando uma madeixa de cabelo que caía escorrida e me cobria os olhos.

- A culpa foi minha. – Começou por se considerar culpado com uma expressão de verdadeiro constrangimento, voltou a respirar fundo e afastou-se de mim, inclinando-se para trás apoiado nos cotovelos. – Eu não devia ter feito aquilo.

- Aquilo o quê? – Tentei recordar tudo o que se tinha passado momentos antes de ter desmaiado. Recordava acima de tudo e com uma grande intensidade os olhos vermelhos e as palavras que tinham inundado os meus pensamentos… depois nada. – Falares comigo nos pensamentos?

Ele mudou de posição e voltou a sentar-se direito na minha frente como se o tivesse picado com um alfinete.

- Não. Não é “isso”. – Negou como se falar acerca deste pormenor o deixasse desconfortável. – Ele estava a encantar-te… e eu, fiz a mesma coisa.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXI

- Não estou a fazer nada. – Afirmou levantando as mãos na minha frente num gesto defensivo.

- Estás. Não me mintas. – Pedi sem qualquer tipo de incriminação. Para mim era acima de tudo extraordinário o que eles conseguiam fazer. A utilização que davam a essas habilidades era algo que não me atrevia a julgar sem saber os motivos que os levavam a ter certos comportamentos. – Há mais pessoas a fazer isso?

- Isso o quê? – Insistiu em me manter no papel de ignorante e sorriu dando largas ao auge do seu charme ilusório.

- Estás a fazer-me querer e sentir… coisas. A encher-me de desejos quando olhas assim para mim e não consigo pensar.

Resumindo poderia ser algo deste género. No entanto era bem mais do que as minhas palavras poderiam exprimir sem me fazer soar ridícula e despropositada, já que, conforme eu própria descrevera, era o que ele me estava a fazer sentir. Coisa que ele negara por duas vezes. Claro que me podia esforçar bastante mais para conseguir valer as minhas palavras se não estivesse a sustentar precisamente o que descrevia e ele não me estivesse a bombardear com aquele sorriso insuportável.

- Eu acho que tu estás a desprezar as tuas próprias ambições. – Acusou-me tornando o seu sorriso ligeiramente presunçoso, fingindo que acabava de comentar algo casual enquanto acomodava um machado maciço no coldre reforçado que trazia na cinta metálica da armadura. - Só estou a tentar com que te sintas bem. Não te estou a encher de desejos.

Senti-me corar até o meu rosto arder com a vergonha. Aquilo dito por outra pessoa que se fazia despercebida quanto ao que eu estava a sentir, provocado por ela ou não, era embaraçoso. Vi como o teor da conversa começava a irritar o estranho na minha frente e como este se levantou de imediato para me fustigar com o ar irado de quem não desejava estar ali para ouvir aquilo.

- Os vossos olhos são diferentes. – Interpelei-o na tentativa de impedir que se afastasse lançando a mão ao seu cotovelo. – Tu sabes fazer aquilo que ele está a fazer?

- Eu não aprecio nada do que ele possa ou esteja a fazer. – Libertou o braço da minha mão e continuou a andar até á mochila. Olhou para mim, depois olhou para o outro e meteu-a ás costas. – Nós somos diferentes, entendes? – Apontou para os dois com a mesma expressão enfadada de quem tinha de explicar sempre tudo de forma muito simples para que eu entendesse. - No meio desse desejo… - Revirou os olhos de modo teatral. - e burrice toda, espero que já tenhas percebido isso.

- Sê mais explícito. – Pedi acompanhando-lhe os passos furtivos em direcção á floresta como se as minhas passadas fossem desmesuradamente mais curtas que as dele. O estranho de olhos claros acompanhou-nos como uma sombra. – Eu não disse que vocês eram iguais. – Isso era tão desnecessário que dito seria uma profanação da minha tão desconsiderada inteligência – Vocês já se conheciam?

As duas cuspidelas, embora numa sincronia considerável para que não fosse considerada uma resposta, fez retinir o sino da minha impaciência. Sentia-me arremessada para o espaço que dividia aquela abominação, pelos vistos visceral, e a falta de informação sobre o que poderia ser tão conclusivo que se recusassem a facultar-ma estava a dar comigo em maluca.

- Vocês odeiam-se mas não se conhecem, é isso? – Continuei com a minha narrativa procurando uma reacção que não incluísse cuspidelas ou olhares inflamados. – São inimigos, porquê?

Ele parou de repente, segurou-me pelos ombros como se me fosse abanar de frustração e mergulhou os olhos manifestos pela intensidade de mil labaredas nos meus, vermelhos como duas brasas, obrigando-me a respirar como se não o fizesse havia muito tempo.


“ Neste mundo… Ou somos Nós, ou são Eles.”

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XX

Passou algum tempo até que se tornasse desconfortável manter-me naquela posição. Aquilo que me impelia para ele não era físico, apesar de ser notória a sua intenção em me manter próxima o suficiente para que o espaço entre nós se limitasse a um palmo, nenhum dos dois fazia questão de o diminuir ainda mais. A verdade era que, longe da minha compreensão, aqueles olhos falavam-me desde o primeiro momento em que o conhecera, e as palavras que pairavam entre os dois se infiltravam na minha mente fluindo dos seus olhos sem deixar margem para as minhas frequentes divagações. A clareza com que mas transmitia nunca fora toldada por outros pensamentos que não os meus. Eram aqueles olhos negros que atraíam a totalidade da minha atenção e o foco por onde os meus pensamentos e emoções se blindavam e regressavam intactos. Aceitei essa certeza sem contestar. Fiz o mesmo com a resposta que lhe dei.

Existia uma razão para a forma como agia, mesmo sem que existisse uma que justificasse o porquê de não me querer afastar dos seus olhos. Havia qualquer coisa que me escapava neles. Algo que já seria obvio se não me esforçasse tanto por lhes anexar uma série de outras observações que se tinham tornado incontornáveis para a minha insaciável curiosidade. Houvesse tempo para os contemplar, para perceber agora o que era mais importante. Porque eram tão negros que me abismavam na vertigem da sua profundidade? O que escondia aquela sombra repleta de mistério?

Senti a mão afrouxar na base do meu pescoço num prenúncio do seu afastamento. Ainda não!!! Retive-o estreitando ainda mais o aperto contra o meu rosto. Havia mais, eu sabia que estava ali mais do que eu tinha sido capaz de captar. Firmei as duas mãos no seu pescoço sem devaneios comportamentais e fixei-o até sentir os meus olhos flagrarem de inquietação. Nada. Tornou a tentar afastar-me apertando os pulsos hirtos que nos mantinham ligados e fechou os olhos. Apeteceu-me gritar. De súbito instalou-se dentro de mim um vazio que nunca lá estivera. Não era total, eu não me sentia exangue dos meus pensamentos e das minhas certezas, era a ausência dos pensamentos que ele partilhara comigo. O contacto dos meus pensamentos nos dele, de repente privados do calor da sua presença. Era como se na minha pele tivesse estado pousada a sua mão, quente e reconfortante, e a tivesse retirado para a deixar exposta á frieza do isolamento. Quando voltei a contemplar a tenebrosidade dos seus olhos compreendi.

- Os olhos… - Evidenciei a minha compreensão num murmúrio que esbarrava no sopro brando que era a sua respiração no meu rosto.

Ele sorriu e afastou-me. Aquele sorriso que me fazia transbordar de prazer, pleno e perfeito não era passível de ser comparável a nada que não fosse absolutamente singular. E era isso que eu via sempre que este surgia no seu rosto demasiado austero, normalmente intransponível. Não era nada irreal, era palpável, exultante e sincero. No entanto, único.

Quase que em busca por um termo de comparação encontrei o estranho de olhos claros transfigurado da sua aura de candura com uma expressão que raiava repulsa. Parado na sua postura escudada e avaliadora observava cada pequena reacção que lhe dirigi sem ocultar a altivez com que enfrentava a minha compreensão.

- Se a queres aliciar dessa forma, ao menos que ela saiba como o fazes. – Remeteu-lhe sem meias palavras e agachou-se na minha frente virando-lhe as costas como se as minhas botas voltassem a ser o motivo da sua principal preocupação.

O outro ignorou-o como se o que dizia não fizesse qualquer sentido e tornou a aproximar-se, desta vez recatando a sua arte sem me dirigir qualquer olhar directo, ficou em silêncio e fingiu observar a técnica com que ele me atava o cordel em torno da perna.

- Como é que vocês fazem isso? – Perguntei sabendo á partida que só me iria ser facultada informação por um deles. Agora não sabia ao certo se estaria correcta em duvidar de ambos ou segura acreditando apenas em um.

- Isso o quê? – Contestou o estranho com os olhos claros demasiado perto dos meus causando-me arrepios por saber como seria fácil que dessa forma me fornecesse informação sem eu ter oportunidade de a questionar.

Ele era realmente muito bonito. Demasiado atraente para que ignorasse o desejo que sentia sempre que se dirigia a mim e me fazia acreditar que a mutualidade desse sentimento era autêntica. Eu queria acreditar, destituir-me da capacidade de o contrapor com a minha falta de amor próprio e permitir que me envolvesse completamente, transgredindo a minha consciência. Era tão fácil abdicar da minha vontade quando o seu olhar me devolvia algo mais repleto de força e segurança, cheio de promessas e desejos alcançáveis.

- Isso que me estás a fazer agora.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIX

Olharam ambos para mim uma fracção de segundo para depois voltarem a ignorar-me. Inspirei lentamente uma grande golfada de ar e pus-me de pé. Naquele momento não ia fazer qualquer diferença o que acabasse por dizer a nenhum deles. Era genuína e incompreensível aquela surpreendente inimizade. Aqueles dois estranhos partilhavam apenas um ódio latente que assentava em algo que eu estava longe de deslindar. Na verdade, eram-me indiferentes as razões que os levavam a comportar-se como dois galos emproados. Podiam perfeitamente desaparecer pelo caminho de onde tinham surgido e não regressar mais ali se era “aquilo” que reservava a minha chegada àquele mundo. – Isto era o que trespassava pela minha mente por entre instáveis ondas de lucidez. – Porem, olhava para os estranhos e assaltavam-me porções desequilibradas de medo e veneração. Pontadas imprudentes de uma confiança assoladora debatiam com a pequenina vontade de correr para bem longe dali. A minha vontade, bem como todos os meus pensamentos, retrocediam ao ponto em que me encontrava sozinha e perdida, algemada à necessidade que tinha deles.

Dois estranhos. Dois caminhos.

Não era crucial que tivesse de escolher naquele momento o que fazer perante o que já de inicio aquele mundo me apresentava. Tendo presentes as minhas limitações, tentei fazê-lo, observando-os ao longo de todo aquele discurso vociferado a duas vozes que mal se distinguiam uma da outra. A minha refugiava-se no espaço recatado no peito e sussurrava mansamente por entre as legiões revoltas de emoções: “ Agora não. Ainda não…”

Esperei. Em desespero fui ordenando a mim própria que não cedesse a nenhum deles a essência que me tornava o centro de toda aquela demonstração de raiva e rivalidade. Em torno desse centro existiam sem duvida outros motivos, bem mais rebuscados e sólidos que a minha miserável chegada. Eu não era, na minha insignificância, a razão pela qual gladiavam as suas diferenças ou o que os separava. Eu era o que, sem outra escolha, os estava a aproximar. O resultado era caótico.

- Vou-me embora. – Dirigi-lhes a meio tom, resguardando o calafrio que as palavras me causavam e virei-lhes as costas.

Silêncio.

- Deixa-a ir. – Escutei atrás de mim após ter avançado um passo. A voz calorosa do estranho de olhos claros num murmúrio expectante. – Acabamos já com isto e tu desapareces de uma vez por todas.

- Tira as tuas mãos de cima de mim. – Olhei para trás reconhecendo o tom frio da ameaça em surdina. Estavam ambos suspensos nos meus movimentos. Cada um agarrado ao colarinho do outro.

Reparando que eu não iria avançar mais libertaram-se e, com olhares furibundos de soslaio, aproximaram-se novamente de mim.

- Ela não tem um pingo da vossa selvajaria. Basta olhar para ela… é frágil.

Era a segunda vez que me dirigiam aquela apreciação. A segunda pessoa que, sem que me tivesse sido dada oportunidade de provar o contrario se sentia em plena consciência para me classificar como algo frágil. Engoli o meu orgulho sem tirar os olhos do chão. Apesar de não me fazer sentir ferver de raiva e injustiça como da primeira vez que tinha ouvido aquelas palavras, aquela voz adocicada e tão cheia de sensatez plantara no meu peito a dúvida. Seria assim tão óbvio que eu não poderia fazer parte daquele mundo? Que me estava vedada a possibilidade de transpor a barreira para o interior daquele mundo por… fragilidade? Que fragilidade em mim seria assim tão obvia que apenas eu podia contestar capacidades que continha dentro de mim? Eu tinha-as, mesmo que não acreditasse nelas.

- Eu não sou frágil. – Afirmei roubando à minha voz uma segurança que não sentia para os encarar aos dois. – E vocês não me conhecem.

- Mas quero conhecer. – Disse-me passando a mão pelo meu cabelo num gesto demorado, o rosto gracioso mais perto do que antes lhe havia observado era um raiar de luz na entrada daquela floresta cheia de sombras. Aquela sensação inebriante que experimentara desde que o vira surgir ali inundou-me de novo ao cruzar o azul cristalino dos seus olhos e me quedar na ausência da minha própria vontade. A única coisa que existia digna de conhecer naquele mundo estava na minha frente e a única vontade era a de cumprir com os seus desejos. – Ninguém disse que ser frágil era mau, disse?

- Chega.

O segundo que levou até eu perceber como ele tinha sido derrubado por uma valente cotovelada e o som do metal retinir aos meus pés na queda foi a única coisa que os meus sentidos atordoados absorveram antes de uma mão quente me puxar pela nuca e me aproximar o rosto de uns olhos escuros, velados num abismo repleto de enigmas. A minha testa encostada na dele com uma determinação mantida á força acelerava-me o sangue e a procura de ar. Não era medo o que me invadia o peito e me mantinha segura sem tentar afastá-lo. Quando a minha mão se encaixou no seu pescoço e eu própria o apertei ao meu encontro, não era a ausência de consciência que latejava em cada fibra do meu corpo num afluxo de sensações e pensamentos.

- És frágil? – Perguntou-me como se tudo estivesse retido na minha resposta e nada mais existisse enquanto isso não fosse a minha única certeza.

- Não.

E acreditei…

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVIII

- Confesso que fiquei neste momento. – Aproximou-se com resguardo. Manteve entre nós uma distância premeditadamente segura e sentou-se majestoso junto á entrada da gruta. - Há uns dias que sinto a tua presença a rondar por aqui. Estás longe do lugar onde pertences.

Que sorriso tão insuportavelmente perfeito, observei-o deslumbrada. A luz que acompanhava as palavras e as faziam soar tão cheias de cuidados e generosidade era um calor demasiado palpável para que não desesperasse ao saber que era possível alcançá-lo. A sua voz era como mergulhar num limbo de tentações e cada palavra transpunha dentro de mim a irracional necessidade de esquecer tudo o resto.

- Não pertenço a lado nenhum. – Remeteu com explicita agressividade, os braços cruzados no peito e sobrolho erguido. - Tinha coisas a fazer aqui e entre elas não está perder tempo a falar contigo.

- Óptimo. – Anuiu sem complacências. – Também não faço questão de falar com gente como tu. Não vim atrás de ti para conversar.

Dito isto ficaram ambos em silencio. Mais valia que tivessem ficado sempre calados, na verdade eu não tinha entendido absolutamente nada da troca de fagulhas e supostas provocações. A única coisa que me mantinha presente entre os dois era o facto de ter sido por momentos ignorada e me ter sido permitido observa-los. Isto durou, para minha profunda infelicidade, pouquíssimo tempo. De súbito encontrei dois pares de olhos cravados em mim, tão opostos e embaraçosos que me senti amedrontar, incapaz de me mexer.

- A surpresa foi encontrar-te com ela. – Acenou na minha direcção tornando ao tom melífluo. Ergueu-se com a graça dos vários tilintares metálicos da sua reluzente armadura e aproximou-se até ficar a dois metros de distância. – Foi aí que me perdi.

O estranho de olhos escuros dirigiu um esgar de enfadamento aos céus e tornou a aproximar-se de mim sem se mostrar menos comprometido por ser óbvio que não éramos assim tão próximos. A contradição da sua postura a meu lado tinha o gosto agridoce de quem acabara de declarar que se iria arrepender por me trazer consigo até ali e a segurança que me transmitia saber que apesar disso, ele estava junto a mim. E agora existia um novo estranho. Uns olhos claros, que murmuravam na minha mente ladainhas mansas, que me faziam desesperar, que me afastavam do término das minhas conclusões.

- Ou sabias que ia chegar, ou vou ter de considerar que acabaste de a encontrar aqui. – Encararam-se de novo, expressões desconfiadas que despontavam agrilhoadas pela forma como eram feitas as perguntas e dadas as respostas. – Estou mais inclinado em achar que sabias perfeitamente que ela ia chegar e por isso é que estás nesta zona há mais tempo do que te é “saudável”.

- Ou então, trouxe-a comigo e parabéns. - Desfez-se na maior manifestação de gozo que eu já tinha presenciado. - Deste connosco quando parámos para um piquenique no teu quintal.

O calor do rosto harmonioso abandonou-o quando o fixou com atenção, não no regozijo da provocação inerente á outra opção que lhe estava a apresentar, mas na tentativa falhada de o desinteressar pelo que realmente tinha acontecido.

- Sendo assim… – Aproximou-se um pouco mais, ignorando-o, e agachou-se na minha frente. Estava tão próximo que se estendesse a minha mão podia tocá-lo. – Estamos com um pequeno problema.

- Estamos?

- O que encontras no meu quintal… é meu.

A resposta que se adivinhava chegou numa gargalhada espalhafatosa que rompeu o silêncio e varreu o espaço ao nosso redor. Era tão despropositada que a primeira reacção, á qual os meus movimentos não corresponderam, era de lhe atirar uma pedra que o calasse, no entanto fixei-o. Aquela gargalhada estava longe de alcançar os seus olhos negros, estes continuavam carregados de sombras e enigmas, e essa certeza dissipou de alguma forma a neblina subtil que enleava os meus pensamentos. Não totalmente. Era indiscutível a atracção que aquele novo estranho causava em mim. Era esgotante e impensável colocar a hipótese de não lhe ceder cada pensamento. De não me entregar ás variadíssimas emoções que se revolviam no meu peito cada vez que os meus olhos encontravam os dele.

- Se parares de a encantar dessa forma nojenta, experimenta dizer-lhe isso. – Provocou-o falando como se eu já não tivesse noção da conversa que se estava a desenvolver entre eles. – Diz-lhe isso. Que a rua dela está no teu “quintal”. – Voltou a rir com satisfação. – Aproveita e diz-lhe também que isso faz com ela seja tua.

- Onde queres chegar com isso? – Pôs-se de pé num ápice e aproximou-se dele ate chocarem com hostilidade um no outro. – Tu é que não devias estar aqui. Onde ela está ou deixa de estar não é da tua conta.

De seguida deixei de entender na íntegra o que vociferavam um para o outro. No início julguei que era eu que acabara por ter perdido a capacidade de deslindar o teor daquela conversa labiríntica, mas aos poucos percebi que eram as palavras em si que não faziam sentido nenhum. Estavam a falar numa língua rude que soava bastante a latidos e rosnadelas empregues com entoações grosseiras. As expressões encolerizadas e os vários apontamentos na minha direcção não ajudavam a que encontrasse uma maneira de os acalmar, quanto mais de os afastar um do outro.

- Será que posso falar?

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVII

Esperou de expressão rígida que eu lhe acenasse em concordância. Coisa que fiz, apertando-lhe o pulso até que ele tomasse por seguro confiar que o faria. Não ia aproximar ainda mais a cara daquela lâmina. Estava em pânico.

Lentamente recuou e permitiu que o ar nos separasse, a distancia entre os nossos corpos tornou-se suficiente para que após aqueles segundos de intensa percepção de que algo estava a correr mal, eu própria tomasse consciência da reacção brusca nos meus sentidos. Não eram as pequenas brechas no meu entendimento do que podia ser tão grave que o fizesse reagir com aquela detonação de adrenalina, nem a insuportável angustia que lhe brilhava nos olhos ao forçar-me a perceber a gravidade do que estava prestes a surgir sem ter como não me mortificar de medo. A minha própria reacção era por si, esmagadora. O frio gelado que transitava em nosso redor adormecera a capacidade física de me arrepiar conforme a minha pele aflorava pequenos tremores e sentia as correntes do ar fundirem-se com o fluxo acelerado do meu sangue. Estaquei segura nos antebraços firmes da sua figura igualmente estática, ambos ajoelhados de frente um para o outro. A respiração num sopro contido que se tornara tão audível quanto tudo o que me rodeava, esse tudo que abarcava a significante sequência de passos firmes na nossa direcção através das arvores mergulhadas em escuridão.

Abstive-me de transpor essa certeza em palavras. Muito antes de eu ter sido capaz de reagir perante o que agora conseguia afirmar por certo, ele tinha dois punhais nas mãos e a minha boca silenciada.

Procurei naqueles olhos fixos muito além de mim um lampejo de serenidade, uma centelha ténue que me fizesse recordar de onde estava, porquê e como era possível que de um momento para o outro me sentisse tão ameaçada dentro de um mundo que sempre tivera como porto seguro. O que estes me devolviam pairava sobre um reflexo infinito dos meus medos espelhados nos dele.
Soube, independente da minha aceitação, que estava a reagir perante aquele acontecimento de maneira alienada e em puro descontrolo. A íris dilatada dos meus olhos imobilizou-se com a tensão dos sons ampliados que me fustigavam e as certezas absolutas invadiam ininterruptas a minha mente. “Estava sozinho… pouco tempo. Vinte passos… menos.” Apertei os pulsos onde as minhas mãos se mantinham firmadas e esperei. O cheiro que havia minutos atrás me tinha invadido era neste momento tão intenso que me agredia e me obrigava a inspirar lentamente para que o conseguisse suportar. Subitamente surgiu um outro, fugidio por entre a brisa dispersa. “ Homem…frio, metal. Medo.”

Antes que o tempo o impedisse, com um sorriso ardente e gestos morosos, rompeu por entre os ramos baixos de um cedro ressequido na orla ensombrada das árvores uma figura possante de ferro e armas grotescas, cheio de tantos pormenores que a minha mente bloqueou e só me encontrei na visão maravilhosa do seu rosto esguio e delicado. A visão de um sonho transposto. Era, na simplicidade de um desejo, a perfeição. A pele alva que exalava o requinte almiscarado da juventude sobreposta á verdadeira matéria de uma anatomia irrepreensível, da personificação libidinosa de um homem. O azul cristalino dos seus olhos reivindicava de mim o esbanjar de uma expressão adulatória que não reprimi. Não queria reprimir absolutamente nada que ele me provocasse, não queria pensar que não fosse óbvio para ele que assim era. Que obstante um mundo inteiro de memórias e sentimentos, ruas seguras, portões e equilíbrio, eu os trocaria sem pensar, apenas pela possibilidade de poder sequer tocá-lo.

- Perdidos? – Falou. A voz mais bela que havia ouvido. Uma tradução imersa, daquilo que era sagrado e profundamente humano, num tom tão quente e seguro que surgiram espontaneamente mil razões para que assim fosse. Estava perdida. Estava exactamente tudo o que ele decidisse.

- Não. – Rosnou-lhe o estranho colocando-se de pé a meu lado. Mirei-o por um segundo sentindo como aquilo me afligia. Estava louco!!! Que estava ele a fazer?!!! – Tu estás?

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVI

Olhei-o de lado enquanto ainda me ocorriam diversas formas de lhe torcer o pescoço. Depois revirei os olhos e endireitei o colete à minha frente para tornar a tentar perceber como se vestia.

- Posso? – Ofereceu-se cuidando de não deixar transparecer o gozo que aquilo lhe dava. Como se fosse possível retirar-lhe do rosto aquele seu ar de: “se não for eu estás tramada”. – É mais fácil do que parece.

Entreguei-lhe o colete sentindo-me embaraçada por saber que assim era. - Naquele momento precisava dele. Do “estranho”, que de certa forma não era estranho, ou começava a deixar de ser desde que passei a vê-lo não como um invasor mas como um irrecusável passaporte para o “mundo novo”. – Foi muito rápido para que eu conseguisse captar o método com que ele, sem um lampejo de hesitação, o virou ao contrário e o passou pela minha cabeça. Pegou-me nos braços, passou as fivelas pelos meus ombros e apertou-o com gestos bruscos que me fizeram ofegar. Afastou-se de sobrolho erguido e voltou a aproximar-se, sem dar conta de que lhe observava as expressões com uma indiscrição oportuna agora que voltava a tomar cuidados quanto á forma como o colete se adaptava ao meu corpo magricelas. Existiam pormenores nele que me enchiam de uma curiosidade sequiosa.

- Queres que aperte mais? – Interrompeu os meus pensamentos, fitando a minha fraca habilidade em esconder um olhar fervoroso ao seu rosto, agora a três palmos do meu. – Melhor não.

- Melhor não, se a intenção é continuar a respirar.

Estupendo. Corei até á raiz do cabelo, precisamente quando ele achou apropriado dedicar-me uma observação rigorosa de cima a baixo. Pelo menos sabia que só estava interessado na roupa e não na minha fraca figura uma vez que se aproximava e se afastava consoante aquilo que ia vendo e lhes ia tocando ou puxando, ora na fivela, ora na manga, esticava e torcia o couro como se encontrasse a cada volta em meu redor algo que não estava no sítio certo. Pela parte que me tocava estava tudo bem. Tal como as calças, o colete, depois de ajustado ao meu torço permitia que me mexesse como se não trouxesse nada vestido. Era perturbador saber que aquilo não era possível, ou se era, eu não sabia como. Desconfiei que ele não me respondesse porquê.

- Já agora, que estás na inspecção. – Apontei para baixo. - Acho que está qualquer coisa mal nas botas.

Sorri ao vê-lo agachar-se na minha frente e meter-se de joelhos antes de subir o cano das botas até ao joelho e se mostrar desiludido por estas não fazerem jus ao resto da indumentária.

- Estão largas. – Concluiu e olhou imediatamente em redor. Pegou na mochila jogada ao chão trás de si e começou a retirar-lhe o atilho com o qual eu tivera um contratempo de nós e má vontade. – Senta-te. – Pediu-me indicando que ficasse sentada no chão á sua frente. Ao que eu obedeci sem dizer nada. Começava a não dispensar as oportunidades de me aproximar o suficiente para o observar entretido com algo que não me denunciasse.

Pegou no meu pé, pousou-o por cima das suas calças e começou a passar o atilho em volta da bota, cruzando-o com nós intrincados pela frente e por trás sem nunca se enganar no padrão. Estava entretido, portanto calado. Fiquei a olhar para as mãos grandes, no entanto hábeis que me subiam lentamente pela perna e iam ajustando o couro até este se começar a mostrar com algo parecido com uma bota. Eu tinha um milhão de perguntas a fervilhar na ponta da língua sem ser capaz de escolher por onde começar, e ele não se mostrava inclinado em esclarecer nenhuma delas. Olhou para mim, piscou-me o olho e pegou na outra perna para recomeçar a cruzar e passar atilho. Enervava-me sentir como aquelas pequenas coisas me faziam disparar o coração e me faziam perder o raciocínio. O embaraço era saber que ele percebia sempre que tentava esconde-lo.

Estava frio ali. O som do vento que atravessava a clareira assobiava na entrada obscurecida da gruta e trazia-nos os ecos distorcidos da queda de água brincando ao nosso redor. O meu cabelo movia-se em trejeitos revoltos que teimavam tapar-me a cara e insistiam em passar na frente dele. Ele afastava-os com calma e continuava a atar a bota, inclinado para mim sem dirigir palavra.

- És sempre assim tão calado? – Aproximei-me para lhe perguntar, sentindo pela primeira vez o cheiro místico que o vento lhe roubava e trazia até mim. Quase fugaz, demasiado subtil para que fosse perceptível, aquela mistura de terra acariciada por chuva, madeira jovem, couro e…

- Cala-te… se faz favor. – Murmurou parando de apertar o cano da bota sem olhar para mim. Ficou imóvel com as mãos metidas em dois cabos que, eu não era tão boa observadora quanto gostava, estavam ocultos no colete na zona dos rins.

- Não me mand…

A mão que me tapava a boca segurava um punhal que luziu como um raio de sol junto aos meus olhos. A outra apertou-me junto a um peito que reflectia as batidas descompassadas do meu.

- Shh… – Alertou-me aproximando a boca ao meu ouvido e encostou a cabeça à minha sem deslocar a lâmina entre nós – Eu falo. Tu ficas calada… e não olhes para ele.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XV

A blusa simples de linho esverdeado e umas meias grossas de lã eram as únicas coisas que não tinham sido feitas daquela pele escura e pesada. Tudo o resto provinha daquele material, e fazendo justiça, á minha medida. Soube que me serviam no momento em que lhes metera os olhos encima. Peguei naquilo que me parecia um colete-de-forças e medi-lhe o peso antes de o aproximar do nariz e o atirar outra vez para cima da rocha. Tinha um cheiro medonho a pele curtida havia pouco tempo e a outra coisa que não sabia identificar mas me pareceu igualmente nojenta. Eram vestimentas pesadas e rudes como as dele. E eram para mim.

Espreitei na direcção onde o vira desaparecer para verificar se estava completamente sozinha, confirmei três vezes de diferentes ângulos e voltei para junto da roupa. Agora só tinha uma opção e torci o nariz antes de começar a despir-me o mais depressa que conseguia. Enfiei a camisa pela cabeça antes que me arrependesse, ou que ele viesse ver porque me demorava tanto, peguei nas calças rijas e enfiei uma perna lá dentro sentindo-a colar-se na minha pele impedindo-me de conseguir vesti-las sem me darem luta. Torci-me e retorci-me, apoiei-me na rocha e andei aos pulos enquanto as puxava pelas pernas e estas iam subindo aos poucos até ser possível fechar os colchetes laterais que ficavam até meio da minha coxa. - Duvidava se ia conseguir andar com aquilo vestido. - Tentei baixar-me para apanhar as meias e pasmei com a facilidade com que o fiz. Meti-me de cócoras, levantei-me e subi o joelho até ao peito. A diferença entre as ter vestidas ou estar sem nada era o frio que me fazia bater o queixo e mexer-me como um gafanhoto enjaulado. - Como era possível?!! - “Não penses nisso agora”, repetia enquanto vestia as meias e me sentava para calçar as botas. Não eram o meu número. Virei-me para a entrada embirrando com aquela falha crucial que me ia obrigar a andar enfiada em dois mamarrachos com dez quilos cada um e que me estavam bastante largos. Isto tirando a particularidade de nem trazerem atacadores ou forma de ficarem presas ás minhas pernas sem parecer terem derretido para os lados. Olhei para as minhas sandálias de verão, enfiei-as dentro da mochila e peguei no colete. Dei-lhe meia dúzia de voltas sem perceber como ia vesti-lo sem me debater com as fivelas que se cruzavam em varias direcções. Ele que arranjasse solução para isto também, teimei farta de estar ali enfiada a perder tempo em vez de ir directamente lá para fora e perceber porque era tão importante andar couraçada como se estivesse prestes a ser atirada para uma arena.

Não estava interessada em tirar conclusões de descrições feitas por um estranho, tendo sido generoso ou não, ao me ter trazido o que vestir que se adequasse ao que eu estava prestes a enfrentar ali fora. Sorri ao pegar na mochila, meti o colete por cima do ombro e arrastei os pés até á saída.

A passagem para o exterior encandeou-me ao abandonar a semi-escuridão da gruta. Estava ansiosa com o que ia encontrar a partir dali e não sabia qual seria a minha reacção se acabasse por me decepcionar e preferir recuar. – Ainda existia essa hipótese? - Protegi os olhos com a mão que tinha livre e deixei cair a mochila antes de começar a perceber o que me rodeava. O chão estava completamente encoberto por erva alta e arbustos espinhosos que cresciam desgovernados até á entrada de uma floresta cerrada de carvalhos e cedros escuros. Arrepiei-me com a aragem gelada que trespassava os ramos mais baixos numa mensagem nada convidativa e dei um pulo ao assustar-me com algo que se tinha partido, ou estalado, ou caído…não muito longe. – Era um disparate sentir-me assustada no meio do campo e permitir-me sugestionar por coisas tão simples como sons naturais tais como uma simples pinha a cair da árvore. Não tivesse eu sido criada em contacto com o campo e passado tantas horas sozinha em plena serra… aquilo seria mesmo muito intimidante. - O sol que esbanjava luz pela entrada da gruta não surgia por entre aquelas árvores. Estava numa clareira a partir de onde se elevavam duas colinas rochosas até á base de uma cordilheira abrigada pela sombra de uma neblina imóvel. Aquilo era tudo tão magnificente e assombroso que só fechei a boca quando senti necessidade de engolir em seco.

- Medo?

Fiquei sem pinga de sangue com o susto que a voz dele me pregou e fechei os olhos com força antes de me virar para trás e lhe atirar com o colete encima.

- Nunca mais me faças isso!!! – Apontei-lhe o dedo ao queixo obrigando-o a recuar – Voltas a assustar-me…

- Matas-me. – Brincou devolvendo o colete e ignorando as minhas ameaças com uma careta.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIV

- Antes tu que eu. Seja lá o que for que queres dizer com isso.– Esperei sem me mexer. Olhei para a mochila estranha em pele lustrosa que ele mantinha segura na minha frente e limitei-me a esperar sem saber o que fazer depois da sua asserção. – O que é isso?

- É para ti. – Sacudiu-a na minha direcção insistindo para que a segurasse e ultrapassasse o arrufo sem perder muito tempo. – Eu vou lá para fora. Quando estiveres despachada, vai lá ter.

Podia neste momento argumentar e recusar a explicita oferta que ele me fazia. Sabia com uma certeza atroz que eu iria voltar e que me iria encontrar ali. A mochila não era, de todo, casual. Nem a proposta por detrás da oferta. De certa forma já era óbvia aquela sua insistência em se manter por perto, os nossos encontros não eram coincidências. As dúvidas cresciam perante a minha própria predisposição em procura-lo. Em camuflar aquela vontade excessiva de o encontrar novamente, só mais uma vez, com as minhas pequenas demonstrações de frustração. Conseguia ignorar toda a incapacidade em me manter alerta e consciente da verdadeira razão das minhas vindas a uma rua que já não era minha e de onde já não retirava paz, apenas com aqueles encontros. E agora que não existiam retrocessos, que já eram tão desmedidas a minha curiosidade e urgência sobre ele e sobre o que me oferecia com este gesto tão irreflectido, era impensável continuar a insistir nesta postura de dúvidas e despretensão.

Estendi a mão com um aceno de cabeça e fitei os olhos negros que me enchiam da sensação insuperável de um abismo de segredos e mistérios. Porque seriam aqueles olhos o motivo para os meus impulsos?

A mochila era pesada e obrigou-me a ter de segura-la com esforço com ambas as mãos antes de a deixar cair aos meus pés num momento embaraçoso para os dois. Ele inclinou-se para a equilibrar antes de esta cair encima de mim e eu empurrei-a na direcção dele na tentativa de não torcer os pulsos. Por fim a mochila caiu e as minhas mãos seguraram apenas as dele. Isto fez-me disparar o sangue nas veias com uma intensidade aterradora e ele apressou-se a retirá-las.

- Eu espero lá fora. – Disse baixinho como se falasse consigo mesmo e virou-me as costas antes de conseguir definir se aquilo que tinha visto seria mesmo mais um dos seus sorrisos.

Aguardei até o ver desaparecer através da entrada luminosa da gruta, talvez a uns trinta metros de distância, e encarei o que tinha aos meus pés. Ainda estava a recuperar a estabilidade das minhas pulsações quando me dediquei de forma característica a perceber antes de mais, como havia de abrir aquela mochila. Era simples, uma fivela. Era complicado, estava nervosa. Depois de remoer acerca do tempo que perdia em dificultar o que era, ou devia ser, evidente para o mais comum dos mortais, ajoelhei-me e abri a mochila entre as pernas. Mais tempo perdido, agora com a necessidade de desatar os nós complexos que me estavam a impedir de ver o que estava lá dentro. - Não tive dúvidas sobre quem os tinha feito. Estranhos e complicados. - Contive a vontade de gritar por uma faca e suspirei enquanto lentamente dava conta da tarefa.
Finalmente, e depois de sentir as pontas dos dedos dormentes da força com que tinha estado a puxar aquele atilho resistente, meti a mão dentro da mochila e comecei a retirar o que estava no seu interior.

Apercebi-me, enquanto puxava pela primeira coisa a que joguei a mão, de que era sem dúvida feita daquele material sólido e resistente das roupas que ele trazia vestidas. Porém não me detive e fui alinhando as várias peças sobre as rochas húmidas e esverdeadas que se dispunham á minha volta, começando aos poucos a observação do que realmente se tratava. Por ultimo, acomodadas para o grande desfecho, alcancei um horroroso par de botas.

Meti-me de pé, mãos nas ancas e olhar analítico, e estudei uma a uma, cada peça de roupa que ele trouxera propositadamente para mim dentro daquela mochila inglória.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIII

“Demasiado espontâneo para pensar…” (Miller)


Não podia ficar ali especada e esperar que as soluções viessem ao meu encontro. Tinha de avançar, sem pensar no que poderia estar do outro lado, e esperar que fosse possível encontrar uma forma de voltar a ter a minha rua, de controlar o meu mundo e ultrapassar este pesadelo. Tinha. Devia isso a mim mesma. Podia já ser tarde… mas não ia entregar nada disso sem ter a certeza de que havia feito tudo para o impedir.

Cruzei os braços na minha frente para tapar o rosto e avancei através da cascata. Desta vez não caí. E não era porque se tinha tornado fácil depois de o ter feito mais vezes do que as que desejava. De facto o peso da água tornou a vergar-me e os meus pés escorregaram no momento em que os enfiei na lama. A diferença eram as duas mãos que me suportaram em pé pelos ombros e me afastaram até a um dos extremos do caminho para junto da parede rochosa. Vi-o pelo canto do olho através do cabelo colado na minha cara. A mesma expressão obstinada enquanto me observou por segundos e se afastou o suficiente para que não se tornasse oportuno que lhe deitasse as mãos. Não era de facto ingénuo ao relembrar que eu não gostava que me tocassem. Sendo ele um estranho isso era insuportável.

- Voltaste. – Confirmei entre dentes antes de desatar a capa pesada dos ombros e a atirar para o chão onde caiu com um baque sobre a lama cor de laranja alcalina.

- Também voltaste. – Mirou-me dos pés à cabeça sem se mostrar constrangido e esperou que eu escorresse o cabelo antes de voltar a ter compostura para o encarar – Ontem tive de ir. Desculpa por não ter dito que ia voltar.

- Farta de saber que ias voltar estava eu. Não tens saído daqui nos últimos tempos.

- De facto. – Sorriu-me com aquele seu ar trocista o que impediu que eu tivesse vontade de descarregar sobre ele, que se oferecia tão voluntarioso pela terceira vez, as minhas frustrações. – Mas hoje foi diferente. Estou aqui porque precisava de confirmar que ias atravessar a cascata.

- Ai sim? – Zombei da sua convicção sem lhe ceder o sorriso que me forçava o canto da boca e me fez virar a cara antes que ele percebesse. – Então porque é que tinhas tanta certeza que eu vinha aqui?

- Porque me disseste.

Disse? Engoli em seco ao sentir a apreensão invadir-me juntamente com a dúvida que se seguia á sua resposta. Ele seria normal? Eu tinha a certeza absoluta que não tinha dito nada que confirmasse a minha vinda ali no dia seguinte. Pelo contrário, mal ele desapareceu na minha frente a vontade era de ter desaparecido também e nunca mais meter ali os pés. Ainda me lembrava do susto que aquilo me causara e da sensação de derrota ao chegar finalmente à saída sem ter conseguido compreender quanto do que ele me tinha dito seria a causa ou a solução para o meu problema. Tomei-me de vários argumentos antes de decidir se valeria mesmo a pena regressar e essa decisão tinha sido tomada muito tempo depois do nosso encontro.

- Não me lembro de te ter dito que ia voltar. – Insisti medindo a distância entre os dois enquanto me metia em bicos dos pés para tentar vislumbrar o final da gruta e o que podia estar alem dela sobre o seu ombro.

- Também não estava à espera que te lembrasses. – Apagou o sorriso do rosto e inclinou-se de maneira a que não conseguisse ver mais nada – Diz-me uma coisa. – Cruzou os braços e fitou-me nos olhos até eu me sentir tão pequenina que quase me encolhi, não de medo, mas de respeito. – Se eu não estivesse aqui agora, tu ias sair da gruta não ias? Ver o que está ali fora…

Ergui o sobrolho sentindo o sangue ferver por ele duvidar de que eu seria mesmo capaz de o fazer sozinha. Fechei os punhos ao lado do corpo e semicerrei os olhos antes de encontrar uma resposta que o remetesse para o quinto dos infernos.

- Foi o que eu pensei. – Frustrou a minha tentativa com mais um sorriso desarmante, coisa que me fez morder o lábio com força antes de começar a bater o pé.

Dito isto tirou uma mochila que trazia ás costas libertando-se com destreza das duas presilhas largas que se cruzavam junto ao peito e segurou-a na minha frente.

- Vou-me arrepender tanto disto.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XII

Corri para a porta… como se uma vez mais me fosse insuportável respirar fora do meu mundo. Como se na urgência dos meus passos cada partícula de sanidade se perdesse e a realidade procurasse devorar-me. Assalto de adrenalina ao vê-la… só mais um pouco, quase, chave na mão, o romper do ar nos meus pulmões… sós.

Tinha a absoluta certeza daquilo que tinha vindo procurar. Sem me deter com a imagem deturpada de um lugar que me era tão íntimo continuei a correr como nunca havia feito ao chegar ali. Nada daquilo me dizia algo. Já nada daquilo era meu, eu limitava-me a aceitar o inevitável. Desta vez corri da porta da minha rua para o portão iridescente da mesma forma como corria anteriormente da realidade para o meu refúgio. Agora que esse já lá não estava, exigia a mim mesma que procurasse o verdadeiro motivo, a razão pela qual já não sustinha o controlo do meu mundo. E haviam respostas ali… Além daquele portão. Algures num par de olhos escuros que velavam o conhecimento de tudo o que eu desejava compreender.

Evitei as várias secções do caminho que me haviam sido difíceis de ultrapassar com uma facilidade que se tornou demasiado óbvia. Não cheguei ali no mesmo estado que da primeira vez, pelo menos não carregava metade das trepadeiras no cabelo nem enchi os braços de vergões ou hematomas, mesmo assim, ao alcançar a mão de âmbar, não fui capaz de atribuir mérito ás minhas fracas capacidades para desbravar mato naquela condição e procurei o mais pequeno arranhão que desviasse a minha suspeita de que me tinha realmente esforçado para chegar ali sem mazelas. Estavam lá. – Infelizmente esta minha mania de atribuir significados transversais ás situações é algo do qual não me consigo separar – Apesar de ainda não terem começado a doer, coisa que começou instantaneamente mal tomei consciência, tinha os pés cheios de cortes e sangue empoeirado. - Agora sim, aquilo tinha ido longe demais. - Nunca isto tinha sido possível desde que me tomava por gente, pelo que não guardava memoria de que alguma vez me tinha magoado daquela forma na minha rua. Magoar-me ocasionalmente, era raro, mas possível. Sangrar e cortar-me dando consistência a uma dor que desconhecia no meu mundo, era outra completamente diferente. - Água, precisava de água, e de não olhar para os pés. Isso principalmente, antes de me dar as usuais quebras de tensão, ou algo do arco-da-velha e desmaiar antes de conseguir sair dali para fora. - Quanto á dor… era estranha e constante. Não sabia ao certo onde me doía nem conseguia perceber o quanto dessa dor se fundia com o facto de não estar a conseguir lidar com a situação. Passei o portão e arrastei-me com receio até á queda de água para me sentar junto a uma das poças e enfiar os pés lá dentro. O alívio que me invadiu foi quase tão intenso como a percepção de que tudo aquilo surgia incluído nas irreversíveis mudanças do meu mundo.

Depois havia “ele”. Aquele estranho sem nome e sem origem. Aquela versão masculina de alguém que existia entre a dualidade da partilha do seu mundo e a constante perseverança em se manter anónimo por detrás de um rosto que ora se iluminava com um sorriso amargamente divino… ou se fechava numa expressão de pura altivez. Não o conhecia, portanto, fugindo ao facto de o ter encontrado apenas por duas ocasiões, baseava a minha opinião sobre a primeira reacção que experimentara ao me deparar com aquele impacto de personalidades e as pequenas explosões que ele me provocava algures dentro do peito. Era frustrante. E era por isso que eu estava ali.

Tirei os pés da água e tentei enxuga-los o melhor que pude com a bainha suja da minha capa. Não era tão mau como parecia. Vendo melhor, era ridículo que me tivesse assustado tanto. Os meus pés tinham dois ou três cortes finos que pareciam ter sido feitos há bastante tempo e saravam perfeitamente. Tinha exagerado ao julgar que estavam completamente ensanguentados. Até a dor que me parecera tão real não tinha passado de um exagero anímico por ter visto sangue. Eu sempre tive essa dificuldade. A visão de sangue resumia tudo a uma névoa branca e à incapacidade de raciocinar. A dor escalava consoante a gravidade dessa minha reacção. Portanto era melhor que me controlasse e evitasse divagações de ultima hora precisamente agora que me decidira a agir em vez de me lamuriar por algo que não podia alterar.

Isto era tudo muito claro na minha cabeça quando me levantei e encarei a força da cascata na minha frente. Era muito clara a minha decisão – subestimando o que me esperava ou não – de dar dois passos alem das minhas barreiras e entrar em território desconhecido. Era inspiradora a vontade de cumprir com o que tomava por certo… então porque me batia assim o coração? Porque me tremiam as mãos quando afastei o cabelo do rosto e me aproximei até sentir a água escorrer pelo corpo sem conseguir avançar mais?