Olharam ambos para mim uma fracção de segundo para depois voltarem a ignorar-me. Inspirei lentamente uma grande golfada de ar e pus-me de pé. Naquele momento não ia fazer qualquer diferença o que acabasse por dizer a nenhum deles. Era genuína e incompreensível aquela surpreendente inimizade. Aqueles dois estranhos partilhavam apenas um ódio latente que assentava em algo que eu estava longe de deslindar. Na verdade, eram-me indiferentes as razões que os levavam a comportar-se como dois galos emproados. Podiam perfeitamente desaparecer pelo caminho de onde tinham surgido e não regressar mais ali se era “aquilo” que reservava a minha chegada àquele mundo. – Isto era o que trespassava pela minha mente por entre instáveis ondas de lucidez. – Porem, olhava para os estranhos e assaltavam-me porções desequilibradas de medo e veneração. Pontadas imprudentes de uma confiança assoladora debatiam com a pequenina vontade de correr para bem longe dali. A minha vontade, bem como todos os meus pensamentos, retrocediam ao ponto em que me encontrava sozinha e perdida, algemada à necessidade que tinha deles.
Dois estranhos. Dois caminhos.
Não era crucial que tivesse de escolher naquele momento o que fazer perante o que já de inicio aquele mundo me apresentava. Tendo presentes as minhas limitações, tentei fazê-lo, observando-os ao longo de todo aquele discurso vociferado a duas vozes que mal se distinguiam uma da outra. A minha refugiava-se no espaço recatado no peito e sussurrava mansamente por entre as legiões revoltas de emoções: “ Agora não. Ainda não…”
Esperei. Em desespero fui ordenando a mim própria que não cedesse a nenhum deles a essência que me tornava o centro de toda aquela demonstração de raiva e rivalidade. Em torno desse centro existiam sem duvida outros motivos, bem mais rebuscados e sólidos que a minha miserável chegada. Eu não era, na minha insignificância, a razão pela qual gladiavam as suas diferenças ou o que os separava. Eu era o que, sem outra escolha, os estava a aproximar. O resultado era caótico.
- Vou-me embora. – Dirigi-lhes a meio tom, resguardando o calafrio que as palavras me causavam e virei-lhes as costas.
Silêncio.
- Deixa-a ir. – Escutei atrás de mim após ter avançado um passo. A voz calorosa do estranho de olhos claros num murmúrio expectante. – Acabamos já com isto e tu desapareces de uma vez por todas.
- Tira as tuas mãos de cima de mim. – Olhei para trás reconhecendo o tom frio da ameaça em surdina. Estavam ambos suspensos nos meus movimentos. Cada um agarrado ao colarinho do outro.
Reparando que eu não iria avançar mais libertaram-se e, com olhares furibundos de soslaio, aproximaram-se novamente de mim.
- Ela não tem um pingo da vossa selvajaria. Basta olhar para ela… é frágil.
Era a segunda vez que me dirigiam aquela apreciação. A segunda pessoa que, sem que me tivesse sido dada oportunidade de provar o contrario se sentia em plena consciência para me classificar como algo frágil. Engoli o meu orgulho sem tirar os olhos do chão. Apesar de não me fazer sentir ferver de raiva e injustiça como da primeira vez que tinha ouvido aquelas palavras, aquela voz adocicada e tão cheia de sensatez plantara no meu peito a dúvida. Seria assim tão óbvio que eu não poderia fazer parte daquele mundo? Que me estava vedada a possibilidade de transpor a barreira para o interior daquele mundo por… fragilidade? Que fragilidade em mim seria assim tão obvia que apenas eu podia contestar capacidades que continha dentro de mim? Eu tinha-as, mesmo que não acreditasse nelas.
- Eu não sou frágil. – Afirmei roubando à minha voz uma segurança que não sentia para os encarar aos dois. – E vocês não me conhecem.
- Mas quero conhecer. – Disse-me passando a mão pelo meu cabelo num gesto demorado, o rosto gracioso mais perto do que antes lhe havia observado era um raiar de luz na entrada daquela floresta cheia de sombras. Aquela sensação inebriante que experimentara desde que o vira surgir ali inundou-me de novo ao cruzar o azul cristalino dos seus olhos e me quedar na ausência da minha própria vontade. A única coisa que existia digna de conhecer naquele mundo estava na minha frente e a única vontade era a de cumprir com os seus desejos. – Ninguém disse que ser frágil era mau, disse?
- Chega.
O segundo que levou até eu perceber como ele tinha sido derrubado por uma valente cotovelada e o som do metal retinir aos meus pés na queda foi a única coisa que os meus sentidos atordoados absorveram antes de uma mão quente me puxar pela nuca e me aproximar o rosto de uns olhos escuros, velados num abismo repleto de enigmas. A minha testa encostada na dele com uma determinação mantida á força acelerava-me o sangue e a procura de ar. Não era medo o que me invadia o peito e me mantinha segura sem tentar afastá-lo. Quando a minha mão se encaixou no seu pescoço e eu própria o apertei ao meu encontro, não era a ausência de consciência que latejava em cada fibra do meu corpo num afluxo de sensações e pensamentos.
- És frágil? – Perguntou-me como se tudo estivesse retido na minha resposta e nada mais existisse enquanto isso não fosse a minha única certeza.
- Não.
E acreditei…
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