Fecho os olhos e volto a rodar a chave pelas mãos ignorando a dor que isso causa após o fazer uma infinidade de vezes. Estou aqui de novo, sentada no chão de cabeça pousada nos joelhos e costas na madeira gasta e fria. Admito que tento desculpar-me se disser que não o fiz uma, dez, mil vezes desde que fechei a porta…fi-lo bastante mais. Na verdade tenho vagueado em frente da porta da minha rua como um moribundo que afasta de si as sombras do que se recusa a aceitar, tentando ver o que se encontra para além delas com uma convicção baseada em meias verdades e meias mentiras.
Duvidei de mim mesma de cada vez que me obriguei a rodar a chave na fechadura. Anos de atrito e profundas amolgadelas pela pressa de entrar… e agora estou do lado de fora, a consumir-me de um género doentio de desculpas para não entrar, para ficar longe… para não me decidir pela enorme curiosidade e agitação e confiar no instinto e na prudência.
“Era tudo mentira. Não existe ninguém na tua rua…” - Repito novamente a mesma ladainha – “É impossível estar alguém na tua rua sem tu o permitires. Aliás, mesmo que o permitisses, era igualmente impossível. A tua rua é tua…existe porque a criaste. Existe porque tu existes e não se altera sem que o desejes”. – Esta era a parte fácil com que me confrontava… -“ Eu não criei aquele portão. Posso passar meses aqui sentada sem conseguir encontrar um motivo para a sua existência ou dar-lhe um significado. Que portão era aquele?!!” – E agora o verdadeiro motivo das minhas aflições - “Quem era ele? E o que estava a fazer num dos portões da minha rua?”
Desejava nunca mais ter de entrar na minha rua por não saber o que fazer com um estranho que por lá se passeava… e ansiava por entrar e confirmar se ele ainda lá estava, se ia vê-lo novamente assim que abrisse aquela porta.
Parei de rodar a chave, observei-a minuciosamente e voltei a colocá-la ao pescoço.
(…)
Volto naquilo que me pareceu uma eternidade e ao regressar adopto a mesma posição, com um esgar de frustração noto que nem dera tempo para que a madeira arrefecesse do calor do meu corpo tenso que teimosamente ali permanecia sem se decidir.
(…)
…Como era possível estar alguém na minha rua?!!! Como era possível que eu tivesse permitido que isto acontecesse?!!!... Sim, porque sem duvida que a culpa era absoluta e totalmente minha. Tinha aberto a minha rua para um estranho… alguém que desconhecia e de quem não recebera qualquer sinal de reconhecimento.
Acentuando o terror que isto me causava dediquei-me ao erro de passar outra eternidade a imaginar o quanto isso me deixava vulnerável. Basicamente, havia um estranho a perscrutar libertinamente cada portão da minha rua, a seu bel-prazer, sem restrições ou impedimentos… cada sentimento, emoção, ou simplificando, os ínfimos pormenores da minha essência estavam entregues a alguém que, sem que o pudesse impedir, passaria a conhecer cada recanto do meu eu e o poderia alterar ou consumir como o vento que fustiga as nuvens de uma tarde de Outono.
Isso aconteceria enquanto a minha passividade o permitisse, enquanto o terror de que já fosse demasiado tarde para o impedir me prendesse os movimentos e a ansiedade por me afastar daquele estranho me mantivessem do lado de fora.
(…)
Olhei para a porta da “minha” rua como se a estivesse a ver, não pela primeira vez, mas como se fosse obvio que nela já se notaria alguma diferença… a violação dos contornos do meu mundo. Nunca iria suportar.
Nada. Absolutamente nada.
Retirei a chave do peito, a mão instável enquanto passava a fina corrente pelo pescoço e a deslizava pela extensão do meu cabelo num movimento amplo que terminou a milímetros da entrada da fechadura. Mais por orgulho cego que por coragem ou valentia, enfiei a chave, respirei fundo, e rodei-a três vezes antes de a empurrar lentamente e esperar que tudo me caísse encima na derradeira confirmação de que tinha chegado tarde demais para evitar os danos.
De coração acelerado e respiração suspensa por uma miríade de sensações, dei dois passos e fechei a porta atrás de mim. A minha rua estava exactamente igual a si mesma… precisamente a mesma e inconfundível rua que criara e construíra ao longo dos anos da minha vida. - Passei a mão por um Alivio saltitante que corria na minha frente e brincava com os pequenos Receios que regressavam relutantes para o seu portão e se despediam sem pressas com acenos e beijinhos lançados na minha direcção. – Observei a cada passo toda a consistência da minha rua. Passei as mãos, vasculhei os espaços, os recantos, medi a altura e a distancia dos pilares da consciência, a cor das pedras sob os meus pés e o ondular bruxuleante da aurora ténue que me recebe com breves tilintares inquietos por tão grande ausência. Estava tudo tal como havia deixado.
Com um sorriso de verdadeiro jubilo rodopiei… rodopiei de braços abertos para a minha rua, rodopiei e abracei-a em toda a sua amplitude, rodopiei e libertei-me da capa, libertei-me das amarras e do peso do medo, rodopiei e espelhei na minha rua a felicidade… rodopiei e enchi a minha rua do doce amor com que a mantenho intacta, de cabelo solto e movimentos livres rodopiei, com gargalhadas e lágrimas da mais pura alegria rodopiei... rodopiei até as minhas pernas cederem e cair ofegante de sorriso nos lábios. De olhos fechados continuei a rodopiar sem me mexer, agora era a minha rua que rodopiava também… ambas, juntas, um só rodopio de reconhecimento saudoso.
Quando tudo isso me preencheu e me fez transbordar de reforçadas convicções e férreas certezas abri os olhos, ansiosa por afastar a mais fugaz das dúvidas. Estava tudo bem. - Tudo não tinha passado de uma grande Ilusão que se havia esgueirado sobre mim e me tinha feito acreditar que era possível alguém entrar na minha rua e habitar o meu mundo sem que não o pudesse controlar ou impedir. – Sentei-me lenta e vagarosa, agora cinicamente tentada em afirmar que uma parte de mim nunca havia temido que tal acontecesse, sabendo que era impossível que aquilo alguma vez tivesse sido, supostamente, real. Levantei-me e percebi que não conseguia deixar de sorrir, nem debatendo as minhas próprias contradições depois do susto que me mantivera fora da minha rua mais tempo do que alguma vez recordava ter estado.
Peguei na capa e coloquei-a sobre os ombros na intenção de, uma vez que tudo aquilo se revelara uma mentira extremamente elaborada, confirmar se por ventura o portão da Ilusão estaria sem cadeado. A minha mente começava a agraciar-me com o cantarolar de uma melodia e avancei a par de confiança.
- És diferente do que eu te imaginava… - Ouvi a sua voz grave e cautelosa surgir a pouca distancia e o trovejar do pânico rasgar o ar da minha rua direito ao meu peito. Detive-me onde estava e descontrolando por completo o meu frágil equilíbrio, encontrei-o sentado entre dois pilares, oculto pela sombra das minhas trepadeiras – Estava à tua espera.
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A partir daqui desconheço a minha rua… Não porque tivesse deixado de ser minha ou algo nela tivesse sido verdadeiramente modificado, mas porque passei a vê-la também pelos teus olhos.
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