- Confesso que fiquei neste momento. – Aproximou-se com resguardo. Manteve entre nós uma distância premeditadamente segura e sentou-se majestoso junto á entrada da gruta. - Há uns dias que sinto a tua presença a rondar por aqui. Estás longe do lugar onde pertences.
Que sorriso tão insuportavelmente perfeito, observei-o deslumbrada. A luz que acompanhava as palavras e as faziam soar tão cheias de cuidados e generosidade era um calor demasiado palpável para que não desesperasse ao saber que era possível alcançá-lo. A sua voz era como mergulhar num limbo de tentações e cada palavra transpunha dentro de mim a irracional necessidade de esquecer tudo o resto.
- Não pertenço a lado nenhum. – Remeteu com explicita agressividade, os braços cruzados no peito e sobrolho erguido. - Tinha coisas a fazer aqui e entre elas não está perder tempo a falar contigo.
- Óptimo. – Anuiu sem complacências. – Também não faço questão de falar com gente como tu. Não vim atrás de ti para conversar.
Dito isto ficaram ambos em silencio. Mais valia que tivessem ficado sempre calados, na verdade eu não tinha entendido absolutamente nada da troca de fagulhas e supostas provocações. A única coisa que me mantinha presente entre os dois era o facto de ter sido por momentos ignorada e me ter sido permitido observa-los. Isto durou, para minha profunda infelicidade, pouquíssimo tempo. De súbito encontrei dois pares de olhos cravados em mim, tão opostos e embaraçosos que me senti amedrontar, incapaz de me mexer.
- A surpresa foi encontrar-te com ela. – Acenou na minha direcção tornando ao tom melífluo. Ergueu-se com a graça dos vários tilintares metálicos da sua reluzente armadura e aproximou-se até ficar a dois metros de distância. – Foi aí que me perdi.
O estranho de olhos escuros dirigiu um esgar de enfadamento aos céus e tornou a aproximar-se de mim sem se mostrar menos comprometido por ser óbvio que não éramos assim tão próximos. A contradição da sua postura a meu lado tinha o gosto agridoce de quem acabara de declarar que se iria arrepender por me trazer consigo até ali e a segurança que me transmitia saber que apesar disso, ele estava junto a mim. E agora existia um novo estranho. Uns olhos claros, que murmuravam na minha mente ladainhas mansas, que me faziam desesperar, que me afastavam do término das minhas conclusões.
- Ou sabias que ia chegar, ou vou ter de considerar que acabaste de a encontrar aqui. – Encararam-se de novo, expressões desconfiadas que despontavam agrilhoadas pela forma como eram feitas as perguntas e dadas as respostas. – Estou mais inclinado em achar que sabias perfeitamente que ela ia chegar e por isso é que estás nesta zona há mais tempo do que te é “saudável”.
- Ou então, trouxe-a comigo e parabéns. - Desfez-se na maior manifestação de gozo que eu já tinha presenciado. - Deste connosco quando parámos para um piquenique no teu quintal.
O calor do rosto harmonioso abandonou-o quando o fixou com atenção, não no regozijo da provocação inerente á outra opção que lhe estava a apresentar, mas na tentativa falhada de o desinteressar pelo que realmente tinha acontecido.
- Sendo assim… – Aproximou-se um pouco mais, ignorando-o, e agachou-se na minha frente. Estava tão próximo que se estendesse a minha mão podia tocá-lo. – Estamos com um pequeno problema.
- Estamos?
- O que encontras no meu quintal… é meu.
A resposta que se adivinhava chegou numa gargalhada espalhafatosa que rompeu o silêncio e varreu o espaço ao nosso redor. Era tão despropositada que a primeira reacção, á qual os meus movimentos não corresponderam, era de lhe atirar uma pedra que o calasse, no entanto fixei-o. Aquela gargalhada estava longe de alcançar os seus olhos negros, estes continuavam carregados de sombras e enigmas, e essa certeza dissipou de alguma forma a neblina subtil que enleava os meus pensamentos. Não totalmente. Era indiscutível a atracção que aquele novo estranho causava em mim. Era esgotante e impensável colocar a hipótese de não lhe ceder cada pensamento. De não me entregar ás variadíssimas emoções que se revolviam no meu peito cada vez que os meus olhos encontravam os dele.
- Se parares de a encantar dessa forma nojenta, experimenta dizer-lhe isso. – Provocou-o falando como se eu já não tivesse noção da conversa que se estava a desenvolver entre eles. – Diz-lhe isso. Que a rua dela está no teu “quintal”. – Voltou a rir com satisfação. – Aproveita e diz-lhe também que isso faz com ela seja tua.
- Onde queres chegar com isso? – Pôs-se de pé num ápice e aproximou-se dele ate chocarem com hostilidade um no outro. – Tu é que não devias estar aqui. Onde ela está ou deixa de estar não é da tua conta.
De seguida deixei de entender na íntegra o que vociferavam um para o outro. No início julguei que era eu que acabara por ter perdido a capacidade de deslindar o teor daquela conversa labiríntica, mas aos poucos percebi que eram as palavras em si que não faziam sentido nenhum. Estavam a falar numa língua rude que soava bastante a latidos e rosnadelas empregues com entoações grosseiras. As expressões encolerizadas e os vários apontamentos na minha direcção não ajudavam a que encontrasse uma maneira de os acalmar, quanto mais de os afastar um do outro.
- Será que posso falar?
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