- Se estás assim tão longe, como regressas? Como sabes que é o momento de regressar?
Tudo aquilo começava a encaixar-se na minha cabeça como um puzzle. Juntava cada palavra que ele me dizia e deixava a pilha gigantesca das restantes peças de lado. Uma peça de cada vez…
- A realidade chama-nos. – Explicou-me remexendo nos bolsos à procura de alguma coisa. Retirou um pequeno objecto reluzente que apertou entre os dedos e voltou a colocá-lo no bolso. - Aqui não dependemos de necessidades físicas como a fome e a sede. Apesar de adormecermos o sono não nos descansa. Podemos deslocar-nos com alguma rapidez no início e afastar-nos dos pontos de encontro grandes distâncias. Mas depois perdes energia, sentes-te fraca e és obrigada a voltar.
- Quanto tempo levas a regressar ao teu ponto de encontro se estás tão longe? – Interroguei perdendo-me entre linhas e lutando para que conseguisse entender tudo o que ele dizia, estendido na minha frente, espreguiçado como um gato ao sol. – Quanto tempo levas a sentir-te fraco?
- Depende.
- De? – Insisti encostando-me na rocha oposta e estendi as pernas dormentes ao lado das dele. As minhas pernas estavam completamente arranhadas. Depois de a roupa se ter tornado um adorno miserável e esfarelado acabara por nem me aperceber de quantas mazelas me tinham deixado naquele estado. Não importava.
- Depende de quanto tempo já estiveste ali fora. – Indicou com um aceno de cabeça para a cascata ruidosa que se elevava à nossa voz obrigando a que tivéssemos de estar tão perto um do outro para nos fazermos ouvir – Existe uma espécie de evolução. A tua resistência aumenta com as distancias que percorres.
Calei-me entregue a um momento de ponderação. Tinha de pensar, juntar mais umas peças ao puzzle. O problema é que, quanto mais peças encaixava, outras tantas surgiam na pilha do que desconhecia. Portanto a minha rua, que era o meu “ponto de encontro”, tinha um portão que levava a um “espaço comum” onde se partilhavam todos os sentimentos e emoções de um “todo”. Constituído não sabia pelo quê, nem por quem, nem a sua dimensão (que se afigurava grande), e mais importante, como regressava ao meu horizonte se estivesse demasiado longe?
- Não me respondeste a uma pergunta. – Encolhi as pernas ate junto do peito e senti os vergões da minha pele arderem por os esticar envoltos nos meus braços. Suspirei incapaz de reclamar da dor e fitei aqueles olhos escuros na sombra à minha frente – Como regressas à realidade?
- Fazes muitas perguntas. – Reclamou com um pequeno sorriso que deturpou a tentativa de parecer sério e intransponível – Aliás, falas demais. – Endireitou-se esticando os membros como se tentasse abarcar o espaço que nos acolhia com languidez e olhou circunspecto para o pedaço da minha rua que estava além do portão. – Levas uma parte do teu “eu” contigo. Um objecto que te faça recordar a realidade.
- E depois?
- Depois… bem, depois essa é a única forma de voltar. – Falou com toda a naturalidade. Como se aquilo fosse a coisa mais fácil de concretizar e não existissem quaisquer questões que me fizessem duvidar de que era todavia simples de levar aquilo a cabo. – Mas não acho que sejas capaz de o fazer.
A sua dúvida, consistente ou não, deu-me uma pontada precisamente no local onde o orgulho morava no meu peito. Um estranho, que não me conhecia de lado nenhum e que subestimava as minhas capacidades, duvidando de que não seria capaz de regressar à minha realidade se decidisse afastar-me e ver com os meus próprios olhos aquilo de que ele falava. E da forma como falava, comecei a achar que, já que a minha rua se tornara parte do que fluía daquele mundo, não perderia nada em ser corajosa e dar meia dúzia de passos para fora daquela gruta.
- Porque achas que não sou capaz? – Perguntei agora de tom inflamado e postura tomada de pudor. Sentia as orelhas a arder e a minha respiração cortar o ar na minha frente em golfadas ofegantes.
- Porque és frágil demais. – Respondeu sem qualquer crueldade. Vi as suas maxilas flectirem ao olhar para mim e se perder na direcção da cascata. - O objecto da nossa realidade não é a única coisa que nos faz regressar ao ponto de encontro. Existem coisas ali fora que… - Parou sem terminar o que ia dizer deixando-me frustrada pela lacuna. - Não ias resistir muito tempo.
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