Acordei. A mesma sensação de mudança. A certeza de que algo estava profundamente errado ali. Como se nunca tivessem existido momentos de desespero, encontros com estranhos e portões misteriosos. – Uma das minhas maiores capacidades, nem sempre má, desenvolveu-se na forma como frequentemente me engano a mim mesma. – O portão estava lá. Igual desde a primeira vez que o contemplara e me sentira, ingénua, fascinada pelo seu aparecimento. Não completamente igual, estava aberto. Ouvia a cortina de água no seu interior, o cheiro da humidade abafada pelo interior da cascata chegava a mim trazida pela brisa acanhada que passava pelo portão e me envolvia com gavinhas mansas que me chamavam e me impeliam para o seu interior.
Entrei. Porque não? Fazia parte da minha rua, portanto pertencia a um qualquer sentimento que não reconhecia. – Talvez fosse essa a explicação para todas aquelas mudanças. – Provavelmente tudo se desenleara pela necessidade de explorar aquele sentimento, de o controlar antes que tomasse conta de todos os outros e minasse por completo e de forma irreversível o equilíbrio do meu “eu”.
Voltei a parar junto da queda de água, relembrando contrariada o que por ela surgira quando tinha tentado passar para o outro lado. Esperava que ele não estivesse lá de novo. Que não me aparecesse pela frente agora que já não respondia à razão e me sentia miserável pelo estado lastimoso com que me apresentava ali. – Estava dividida entre o estado da minha roupa e a miscelânea de flora que se acumulara no meu cabelo. Bom, pelo menos faria parte de mim apenas ate ao momento em que tivesse de transpor o meu horizonte de regresso à realidade. Era mau quanto bastasse. – Passei a mão pela água para tentar perceber qual a espessura que tinha de atravessar para chegar ao lado de lá e senti o ar seco e quente na ponta dos dedos quando esta me chegou ao cotovelo. Não era assim tanto quanto imaginava depois de ter sido atirada ao chão pela força da cascata aquando da primeira tentativa, podia facilmente avançar com um impulso, ou mais improvável, com um salto. – Detesto saltar. Ficou ponto assente esta minha objecção em ter de saltar sobre as coisas depois de duas tentativas escabrosas para a caixa de areia numa “quase” esquecida aula de educação física. – Uma vez que afastei a segunda hipótese repenso consciente que era perigoso saltar sem saber o que estava depois daquela cortina de água. Encho os pulmões de ar como se fosse dar um grande mergulho e fecho os olhos antes de atravessar para o desconhecido.
O ar quente que aspirei de seguida fez com que me engasgasse e, felizmente que não estava ali ninguém para ver, esbracejei como um gato que alguém atirou para dentro de uma banheira de água fria ate me quedar e desenrolar sem interrupções todas as asneiras que conhecia. – Inventei algumas. – Já não me podia queixar pelo estado do meu cabelo pré-histórico, com duas passagens com os dedos também não me podia queixar de ter ficado sem ele. Menos mal. Olhei à minha volta.
Mais selva. – Agora sim estava a ficar aterrorizada. - Gemi de frustração e atirei-me com profundo desconsolo para o chão infestado de ervas, folhas apodrecidas e pedras envolvidas pela lama laranjada que escorria muitos metros á minha frente para a densa saída daquela gruta, caverna… ou lá o que era aquilo!!! Estava entregue á horrorosa visão do que se afigurava ser um pesadelo. Eu, sozinha, empestada de todo o género de porcaria, no meio da selva!!! – Relembrei a minha rua na sua glória. Ordeira e asseada, cheia dos meus pequenos pormenores delicados… Que saudades da minha rua. – Voltei a gritar o rol de asneiras e palavrões num descontrolo completo e mãos cheias de pedras e lama para todos os lados.
- Já falas!!! – Bramiu esbaforido pela entrada da gruta na minha direcção ate ficar com os dois pés em frente aos meus olhos. Quando tirei a cara da lama, prestes a fulminá-lo, dou com um sorriso tão ofuscante que voltei a deixar-me cair. - Pena serem palavrões…
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