Passou algum tempo até que se tornasse desconfortável manter-me naquela posição. Aquilo que me impelia para ele não era físico, apesar de ser notória a sua intenção em me manter próxima o suficiente para que o espaço entre nós se limitasse a um palmo, nenhum dos dois fazia questão de o diminuir ainda mais. A verdade era que, longe da minha compreensão, aqueles olhos falavam-me desde o primeiro momento em que o conhecera, e as palavras que pairavam entre os dois se infiltravam na minha mente fluindo dos seus olhos sem deixar margem para as minhas frequentes divagações. A clareza com que mas transmitia nunca fora toldada por outros pensamentos que não os meus. Eram aqueles olhos negros que atraíam a totalidade da minha atenção e o foco por onde os meus pensamentos e emoções se blindavam e regressavam intactos. Aceitei essa certeza sem contestar. Fiz o mesmo com a resposta que lhe dei.
Existia uma razão para a forma como agia, mesmo sem que existisse uma que justificasse o porquê de não me querer afastar dos seus olhos. Havia qualquer coisa que me escapava neles. Algo que já seria obvio se não me esforçasse tanto por lhes anexar uma série de outras observações que se tinham tornado incontornáveis para a minha insaciável curiosidade. Houvesse tempo para os contemplar, para perceber agora o que era mais importante. Porque eram tão negros que me abismavam na vertigem da sua profundidade? O que escondia aquela sombra repleta de mistério?
Senti a mão afrouxar na base do meu pescoço num prenúncio do seu afastamento. Ainda não!!! Retive-o estreitando ainda mais o aperto contra o meu rosto. Havia mais, eu sabia que estava ali mais do que eu tinha sido capaz de captar. Firmei as duas mãos no seu pescoço sem devaneios comportamentais e fixei-o até sentir os meus olhos flagrarem de inquietação. Nada. Tornou a tentar afastar-me apertando os pulsos hirtos que nos mantinham ligados e fechou os olhos. Apeteceu-me gritar. De súbito instalou-se dentro de mim um vazio que nunca lá estivera. Não era total, eu não me sentia exangue dos meus pensamentos e das minhas certezas, era a ausência dos pensamentos que ele partilhara comigo. O contacto dos meus pensamentos nos dele, de repente privados do calor da sua presença. Era como se na minha pele tivesse estado pousada a sua mão, quente e reconfortante, e a tivesse retirado para a deixar exposta á frieza do isolamento. Quando voltei a contemplar a tenebrosidade dos seus olhos compreendi.
- Os olhos… - Evidenciei a minha compreensão num murmúrio que esbarrava no sopro brando que era a sua respiração no meu rosto.
Ele sorriu e afastou-me. Aquele sorriso que me fazia transbordar de prazer, pleno e perfeito não era passível de ser comparável a nada que não fosse absolutamente singular. E era isso que eu via sempre que este surgia no seu rosto demasiado austero, normalmente intransponível. Não era nada irreal, era palpável, exultante e sincero. No entanto, único.
Quase que em busca por um termo de comparação encontrei o estranho de olhos claros transfigurado da sua aura de candura com uma expressão que raiava repulsa. Parado na sua postura escudada e avaliadora observava cada pequena reacção que lhe dirigi sem ocultar a altivez com que enfrentava a minha compreensão.
- Se a queres aliciar dessa forma, ao menos que ela saiba como o fazes. – Remeteu-lhe sem meias palavras e agachou-se na minha frente virando-lhe as costas como se as minhas botas voltassem a ser o motivo da sua principal preocupação.
O outro ignorou-o como se o que dizia não fizesse qualquer sentido e tornou a aproximar-se, desta vez recatando a sua arte sem me dirigir qualquer olhar directo, ficou em silêncio e fingiu observar a técnica com que ele me atava o cordel em torno da perna.
- Como é que vocês fazem isso? – Perguntei sabendo á partida que só me iria ser facultada informação por um deles. Agora não sabia ao certo se estaria correcta em duvidar de ambos ou segura acreditando apenas em um.
- Isso o quê? – Contestou o estranho com os olhos claros demasiado perto dos meus causando-me arrepios por saber como seria fácil que dessa forma me fornecesse informação sem eu ter oportunidade de a questionar.
Ele era realmente muito bonito. Demasiado atraente para que ignorasse o desejo que sentia sempre que se dirigia a mim e me fazia acreditar que a mutualidade desse sentimento era autêntica. Eu queria acreditar, destituir-me da capacidade de o contrapor com a minha falta de amor próprio e permitir que me envolvesse completamente, transgredindo a minha consciência. Era tão fácil abdicar da minha vontade quando o seu olhar me devolvia algo mais repleto de força e segurança, cheio de promessas e desejos alcançáveis.
- Isso que me estás a fazer agora.
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