Olhei-o de lado enquanto ainda me ocorriam diversas formas de lhe torcer o pescoço. Depois revirei os olhos e endireitei o colete à minha frente para tornar a tentar perceber como se vestia.
- Posso? – Ofereceu-se cuidando de não deixar transparecer o gozo que aquilo lhe dava. Como se fosse possível retirar-lhe do rosto aquele seu ar de: “se não for eu estás tramada”. – É mais fácil do que parece.
Entreguei-lhe o colete sentindo-me embaraçada por saber que assim era. - Naquele momento precisava dele. Do “estranho”, que de certa forma não era estranho, ou começava a deixar de ser desde que passei a vê-lo não como um invasor mas como um irrecusável passaporte para o “mundo novo”. – Foi muito rápido para que eu conseguisse captar o método com que ele, sem um lampejo de hesitação, o virou ao contrário e o passou pela minha cabeça. Pegou-me nos braços, passou as fivelas pelos meus ombros e apertou-o com gestos bruscos que me fizeram ofegar. Afastou-se de sobrolho erguido e voltou a aproximar-se, sem dar conta de que lhe observava as expressões com uma indiscrição oportuna agora que voltava a tomar cuidados quanto á forma como o colete se adaptava ao meu corpo magricelas. Existiam pormenores nele que me enchiam de uma curiosidade sequiosa.
- Queres que aperte mais? – Interrompeu os meus pensamentos, fitando a minha fraca habilidade em esconder um olhar fervoroso ao seu rosto, agora a três palmos do meu. – Melhor não.
- Melhor não, se a intenção é continuar a respirar.
Estupendo. Corei até á raiz do cabelo, precisamente quando ele achou apropriado dedicar-me uma observação rigorosa de cima a baixo. Pelo menos sabia que só estava interessado na roupa e não na minha fraca figura uma vez que se aproximava e se afastava consoante aquilo que ia vendo e lhes ia tocando ou puxando, ora na fivela, ora na manga, esticava e torcia o couro como se encontrasse a cada volta em meu redor algo que não estava no sítio certo. Pela parte que me tocava estava tudo bem. Tal como as calças, o colete, depois de ajustado ao meu torço permitia que me mexesse como se não trouxesse nada vestido. Era perturbador saber que aquilo não era possível, ou se era, eu não sabia como. Desconfiei que ele não me respondesse porquê.
- Já agora, que estás na inspecção. – Apontei para baixo. - Acho que está qualquer coisa mal nas botas.
Sorri ao vê-lo agachar-se na minha frente e meter-se de joelhos antes de subir o cano das botas até ao joelho e se mostrar desiludido por estas não fazerem jus ao resto da indumentária.
- Estão largas. – Concluiu e olhou imediatamente em redor. Pegou na mochila jogada ao chão trás de si e começou a retirar-lhe o atilho com o qual eu tivera um contratempo de nós e má vontade. – Senta-te. – Pediu-me indicando que ficasse sentada no chão á sua frente. Ao que eu obedeci sem dizer nada. Começava a não dispensar as oportunidades de me aproximar o suficiente para o observar entretido com algo que não me denunciasse.
Pegou no meu pé, pousou-o por cima das suas calças e começou a passar o atilho em volta da bota, cruzando-o com nós intrincados pela frente e por trás sem nunca se enganar no padrão. Estava entretido, portanto calado. Fiquei a olhar para as mãos grandes, no entanto hábeis que me subiam lentamente pela perna e iam ajustando o couro até este se começar a mostrar com algo parecido com uma bota. Eu tinha um milhão de perguntas a fervilhar na ponta da língua sem ser capaz de escolher por onde começar, e ele não se mostrava inclinado em esclarecer nenhuma delas. Olhou para mim, piscou-me o olho e pegou na outra perna para recomeçar a cruzar e passar atilho. Enervava-me sentir como aquelas pequenas coisas me faziam disparar o coração e me faziam perder o raciocínio. O embaraço era saber que ele percebia sempre que tentava esconde-lo.
Estava frio ali. O som do vento que atravessava a clareira assobiava na entrada obscurecida da gruta e trazia-nos os ecos distorcidos da queda de água brincando ao nosso redor. O meu cabelo movia-se em trejeitos revoltos que teimavam tapar-me a cara e insistiam em passar na frente dele. Ele afastava-os com calma e continuava a atar a bota, inclinado para mim sem dirigir palavra.
- És sempre assim tão calado? – Aproximei-me para lhe perguntar, sentindo pela primeira vez o cheiro místico que o vento lhe roubava e trazia até mim. Quase fugaz, demasiado subtil para que fosse perceptível, aquela mistura de terra acariciada por chuva, madeira jovem, couro e…
- Cala-te… se faz favor. – Murmurou parando de apertar o cano da bota sem olhar para mim. Ficou imóvel com as mãos metidas em dois cabos que, eu não era tão boa observadora quanto gostava, estavam ocultos no colete na zona dos rins.
- Não me mand…
A mão que me tapava a boca segurava um punhal que luziu como um raio de sol junto aos meus olhos. A outra apertou-me junto a um peito que reflectia as batidas descompassadas do meu.
- Shh… – Alertou-me aproximando a boca ao meu ouvido e encostou a cabeça à minha sem deslocar a lâmina entre nós – Eu falo. Tu ficas calada… e não olhes para ele.
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