terça-feira, 8 de junho de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XI

Fingi que não me sentia ofendida por ele me ver daquela maneira, como uma pessoa frágil e incapaz de enfrentar um mundo baseado em sentimentos e emoções, tivessem eles as formas que tivessem, eu era consciente de que apenas me deixava afectar pelo que eu permitisse. - Não é assim que funciona a minha rua? - Lido com os meus sentimentos, avanço e recuo nas minhas emoções. E mesmo quando estas me atingem ou me infligem dor, ficam para trás no momento em que atravesso a porta do meu horizonte. Cerradas alem do escudo que as protege da realidade. Nunca existiram danos físicos nas minhas visitas ao mundo criado pela minha mente. O meu refúgio etéreo existe da necessidade que tenho de lidar com um mundo que considero demasiado desumano, quase intolerável e cruel. No entanto demasiado doce, insuportavelmente belo e precioso para que regresse uma e outra vez, dividida entre os sonhos e o que existe de concreto.
Não sou frágil, ele estava enganado. Não sou frágil nos aspectos pelos quais ele me tomava ou julgava serem a matéria da qual eu era feita. Estava completamente enganado se me estava a julgar pelo aspecto. - Se bem que este também não abonava a meu favor naquele momento. Ensopada de lama dos pés à cabeça, cheia de arranhões, mais aquela inglória porção de nódoas negras a preencher o corpo magricelas e desequilibrado. – A minha fragilidade podia ser física mas não era psicológica. (Era?)

Ele também estava de súbito calado, observei-o explicitamente, quieto como uma estátua como se fizesse parte da rocha onde repousava o corpo grande e bem constituído. O cabelo castanho-escuro num completo desalinho que apontava para todas as direcções como se tivesse vida própria. Calculei que seria encaracolado e que quando secasse lhe desse pelos ombros largos que mantinha sempre rígidos e inflexíveis. Tinha os olhos fechados como se dormitasse descontraído aos meus pés, as feições viris eram agora uma representação serena do rosto que oscilava entre sorrisos e profunda seriedade. Mirei com inveja a pele morena pelo constante beijo do sol, tornando-a dourada e reluzente, exposta apenas pelas mínimas aberturas da roupa justa de couro escuro. Ele era deveras interessante. E eu sou deveras curiosa.

Ficou assim durante tanto tempo que o considerei adormecido. O peito apertado naquela espécie de couraça cor de nada quase não se movia com a respiração ritmada de quem já não está presente e se encontra longe, num sonho dentro de um sonho. Sorri com a filosofia forçada e aproximei-me das botas que ele tinha calçadas para as ver melhor. – Tenho uma espécie de pancada neurótica com botas desde a adolescência. Tendo opção de escolha, não as defino sendo esteticamente a minha eleição de pedestal, mas considero que nada se compara a um bom par de botas. – Não eram bonitas de todo. E ele tinha pés enormes, comparei olhando para os meus, que sempre achei grandes demais, nas minhas estimadas e modestas sandálias de verão. Vendo assim de perto pareciam bastante desconfortáveis, alem de que a sola tinha os dias contados. Devia andar com elas há mais tempo do que as desgraçadas resistiriam, só podia imaginar em que condições. Já que ele se remetera para um sono despropositado depois do “pequeno” acontecimento cavernoso e conversa que me deixara sem saber o que pensar sobre ele e das coisas de que falara, dediquei aquele tempo à minha recatada inspecção visual sem encargos de consciência. As calças não diferiam muito das botas. Eram robustas e grosseironas, apertadas pelas pernas compridas até à cintura. Achei de mérito que ele conseguisse mexer-se dentro delas, ate porque se tivesse de vestir uma coisa igual era certo que nem conseguia dobrar os joelhos antes de me estatelar inteirinha no chão. Virei-me de seguida para o que trazia vestido no tronco sem duvidar que aquele material rude fazia parte de toda a indumentária indecifrável. Por cima de uma camisa simples que achei num tom demasiado esbatido para ser considerado cor, trazia um colete fechado por fivelas na ilharga que subia quase até ao pescoço. Ele estava revestido por aquele material como se este se tratasse de uma segunda pele. Cada vez me parecia mais estranho. Afastei-me de novo para me sentar no mesmo sítio sem que ele tivesse dado por nada e limitei-me a cogitar em silêncio sem saber se o devia acordar ou aproveitar a oportunidade para assimilar tudo de uma vez.

Tinha os olhos postos naquele estranho, perdida em pensamentos sombrios sobre o que me tinha revelado e sobre o que eu achava de tudo aquilo quando voltou a acordar. Ao início não me dei conta de que estava desperto. Ele não se tinha mexido um milímetro durante todo o tempo em que tinha estado a dormir, soube que estava presente ao sentir um arrepio subir-me a espinha e reparar que estava então eu a ser observada. Os olhos fixos nos meus como dois poços escuros que me inundavam da sensação de estar completamente exposta, de que me sondava a alma e não havia nada que lhe pudesse omitir. Não gostava daquela sensação, da incapacidade de erguer os meus muros e força-lo a recuar.

Então, com a mesma facilidade com que tinha surgido envolto em mistério na minha rua, desapareceu. Pisquei os olhos várias vezes para garantir que não era eu, novamente a imaginar coisas mas negando ainda a possibilidade do que tinha acabado de acontecer não voltei a encontrá-lo aos meus pés.

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