Corri para a porta… como se uma vez mais me fosse insuportável respirar fora do meu mundo. Como se na urgência dos meus passos cada partícula de sanidade se perdesse e a realidade procurasse devorar-me. Assalto de adrenalina ao vê-la… só mais um pouco, quase, chave na mão, o romper do ar nos meus pulmões… sós.
Tinha a absoluta certeza daquilo que tinha vindo procurar. Sem me deter com a imagem deturpada de um lugar que me era tão íntimo continuei a correr como nunca havia feito ao chegar ali. Nada daquilo me dizia algo. Já nada daquilo era meu, eu limitava-me a aceitar o inevitável. Desta vez corri da porta da minha rua para o portão iridescente da mesma forma como corria anteriormente da realidade para o meu refúgio. Agora que esse já lá não estava, exigia a mim mesma que procurasse o verdadeiro motivo, a razão pela qual já não sustinha o controlo do meu mundo. E haviam respostas ali… Além daquele portão. Algures num par de olhos escuros que velavam o conhecimento de tudo o que eu desejava compreender.
Evitei as várias secções do caminho que me haviam sido difíceis de ultrapassar com uma facilidade que se tornou demasiado óbvia. Não cheguei ali no mesmo estado que da primeira vez, pelo menos não carregava metade das trepadeiras no cabelo nem enchi os braços de vergões ou hematomas, mesmo assim, ao alcançar a mão de âmbar, não fui capaz de atribuir mérito ás minhas fracas capacidades para desbravar mato naquela condição e procurei o mais pequeno arranhão que desviasse a minha suspeita de que me tinha realmente esforçado para chegar ali sem mazelas. Estavam lá. – Infelizmente esta minha mania de atribuir significados transversais ás situações é algo do qual não me consigo separar – Apesar de ainda não terem começado a doer, coisa que começou instantaneamente mal tomei consciência, tinha os pés cheios de cortes e sangue empoeirado. - Agora sim, aquilo tinha ido longe demais. - Nunca isto tinha sido possível desde que me tomava por gente, pelo que não guardava memoria de que alguma vez me tinha magoado daquela forma na minha rua. Magoar-me ocasionalmente, era raro, mas possível. Sangrar e cortar-me dando consistência a uma dor que desconhecia no meu mundo, era outra completamente diferente. - Água, precisava de água, e de não olhar para os pés. Isso principalmente, antes de me dar as usuais quebras de tensão, ou algo do arco-da-velha e desmaiar antes de conseguir sair dali para fora. - Quanto á dor… era estranha e constante. Não sabia ao certo onde me doía nem conseguia perceber o quanto dessa dor se fundia com o facto de não estar a conseguir lidar com a situação. Passei o portão e arrastei-me com receio até á queda de água para me sentar junto a uma das poças e enfiar os pés lá dentro. O alívio que me invadiu foi quase tão intenso como a percepção de que tudo aquilo surgia incluído nas irreversíveis mudanças do meu mundo.
Depois havia “ele”. Aquele estranho sem nome e sem origem. Aquela versão masculina de alguém que existia entre a dualidade da partilha do seu mundo e a constante perseverança em se manter anónimo por detrás de um rosto que ora se iluminava com um sorriso amargamente divino… ou se fechava numa expressão de pura altivez. Não o conhecia, portanto, fugindo ao facto de o ter encontrado apenas por duas ocasiões, baseava a minha opinião sobre a primeira reacção que experimentara ao me deparar com aquele impacto de personalidades e as pequenas explosões que ele me provocava algures dentro do peito. Era frustrante. E era por isso que eu estava ali.
Tirei os pés da água e tentei enxuga-los o melhor que pude com a bainha suja da minha capa. Não era tão mau como parecia. Vendo melhor, era ridículo que me tivesse assustado tanto. Os meus pés tinham dois ou três cortes finos que pareciam ter sido feitos há bastante tempo e saravam perfeitamente. Tinha exagerado ao julgar que estavam completamente ensanguentados. Até a dor que me parecera tão real não tinha passado de um exagero anímico por ter visto sangue. Eu sempre tive essa dificuldade. A visão de sangue resumia tudo a uma névoa branca e à incapacidade de raciocinar. A dor escalava consoante a gravidade dessa minha reacção. Portanto era melhor que me controlasse e evitasse divagações de ultima hora precisamente agora que me decidira a agir em vez de me lamuriar por algo que não podia alterar.
Isto era tudo muito claro na minha cabeça quando me levantei e encarei a força da cascata na minha frente. Era muito clara a minha decisão – subestimando o que me esperava ou não – de dar dois passos alem das minhas barreiras e entrar em território desconhecido. Era inspiradora a vontade de cumprir com o que tomava por certo… então porque me batia assim o coração? Porque me tremiam as mãos quando afastei o cabelo do rosto e me aproximei até sentir a água escorrer pelo corpo sem conseguir avançar mais?
Nenhum comentário:
Postar um comentário