“Não percebi em que momento se tornou tão difícil procurar a minha rua… ou simplesmente abandoná-la. Debato-me numa forma insegura de resistir a ambas as escolhas. Existiam causas, demasiadas, para que, escolhendo qualquer uma delas, me viesse a encontrar de volta a este limbo, a este vazio… a balança teria sempre de pender para um dos lados. A consequência segue a curta distancia os passos das nossas acções… No entanto, estive longe de temer o quanto me viria arrepender. Agora percebo o inevitável de tudo… agora é tarde demais. Agora…”
Limito-me a observa-lo. Contrariada e profundamente indignada…observei-o. Uma figura calma, quase letárgica, que me devolve o olhar de sorriso perturbado a bailar-lhe nos lábios. Era estranho. Em todos os sentidos a que posso aplicar a palavra. Estranho porque não o conhecia, estranho porque não o queria aqui, estranho porque era perigoso e ameaçava tudo o que em mim há de mais frágil, portanto crucial, estranho porque julgo que não se apercebia de onde se encontrava, porque para ele era fácil ficar sentado no chão da minha rua e esperar que eu reagisse à sua imposição, porque sabendo que no momento em que eu abrisse a boca seria obrigada a dirigir-me a ele… porque aquele sorriso fazia florir as minhas trepadeiras e a minha aurora explodir numa sinfonia da cores, porque existiam portões a ranger ao longe apenas por o mirar, por ceder no meu intimo em querer estudar as suas feições mais de perto e ficar intrigada com os breves movimentos das suas mãos ao afastar delicadamente as frágeis pontas de era que debicavam acanhadas vários pontos do seu corpo tão confortavelmente instalado e lhe revolviam as pontas do cabelo escuro e desgrenhado…estranho porque sim!!!
Incomodava-me saber que o silêncio era intencional, estava a forçar-me a admitir a sua presença, a admitir que era real… que estava ali na minha frente, na minha rua, que existia independente da minha vontade. Gemi em verdadeira aflição quando após fechar os olhos na derradeira tentativa de o evaporar, o voltei a encontrar na minha frente, agora de pé e medindo um palmo acima da débil avaliação a que o submetera.
- Porque existem tantos portões na tua rua? – Questionou-me com uma expressão de pura curiosidade. Cruzou os braços e voltou a sorrir quando, num espaço tão curto entre ambos, recuei os passos restantes até me encontrar encurralada entre ele e as colunas opostas – Tens cadeados nalguns, só consegui ver para dentro de três. – Ficou muito sério de repente. - Não entrei em nenhum. – Corrigiu, vendo-me escorregar pela coluna até ao chão. Fiquei por fim, em choque. – Estás bem?
Não, claro que não estava bem!!!... Estava um estranho na minha rua!!!... Que estava, inferno, a falar comigo e tinha andado a bisbilhotar portões na minha ausência!!!
Abracei os meus joelhos com força. Afundei o rosto entre os braços e tentei respirar. Tinha de conseguir respirar. - Senti o Medo aconchegar-se pesado sobre os meus ombros e puxar-me o cabelo até me fazer chorar de dor. O Pânico a meus pés gracejava dedicado em me fazer tremer e todos os Receios tinham sido convidados para o acontecimento, para o qual vinham inspirados com requintes de uma Malvadez criativa. – Tinha de o tirar dali. Não sabia o porquê de não o conseguir fazer de imediato, ou porque sentia relutância em me atirar com sete pedras nas mãos sobre ele e o arrastar até ao maldito portão de onde tinha aparecido. Não sabia muitas coisas.
- Estás a chorar? – Ouvi a sua voz dirigir-se a mim como um grande balde de água fria. Apertei as pernas com mais força. – Quem são eles?...essas “coisas” que estão à tua volta? - Por momentos todos recuaram para de seguida regressarem aos seus lugares enraivecidos pela interrupção e audácia. – Queres que eu os afaste?
Levantei-me de um salto e atirei com o Medo ao chão, assustou o Pânico e este deu largas a um grito estridente que fez todos os Receios saltitar à nossa volta como pipocas descontroladas para todas as direcções. Cada fibra do meu corpo foi esticada ao limite por me saber frágil demais para o impedir do que fosse, mas não ia permitir que ninguém, ninguém, tocasse nos meus sentimentos. Nem mesmo aqueles.
Avanço sem uma palavra até junto dele e empurro-o na direcção que o levava para fora dali, na direcção do portão de âmbar. - Sem uma palavra. Não ia, jamais, abdicar do meu silêncio por alguém, que não conhecia, junto dos meus sentimentos. Na minha rua não existem palavras, nem minhas, nem de ninguém!!! – Ignorei o seu olhar estupefacto, bem como o falhar da minha miserável tentativa de o conseguir retirar dali, e tornei a empurrar para o ver continuar no mesmo sítio.
Desesperei quando voltou a cruzar os braços. - As “coisas” que eram os meus sentimentos estavam eufóricas, os Receios pareciam uma colmeia de abelhas encolerizadas que atacavam todas ao mesmo tempo, o que irritou bastante o Pânico por deixar de ser o centro das atenções e fez o Medo bater o pé. – Coloco-me na sua frente, a tremer como uma vara e olho intencionalmente pela primeira vez para os seus olhos escuros que me devolvem uma imagem esgotada de mim mesma.
- És estranha. – Limitou-se a dizer antes de outro sorriso.
Evitei a gargalhada irónica que me subiu pela garganta e cerrei os dentes com nervosismo, agarrei-o pelos ombros e abanei-o num ultimato de auto controlo. Eu era a estranha da minha rua!!? Porque o fazia sorrir julgar-me estranha na minha própria rua!!?
Acabei por o libertar… Maldição!!! Que podia fazer?... As palavras começavam a fazer um sentido atroz: És estranha. – Faltava o resto. – És a estranha da tua rua…
- Anda… - Puxou-me pelo braço ao começar a caminhar. Libertei-me da sua mão e observei-o dirigir-se pelo caminho para o qual me tinha esforçado tanto em empurra-lo sem nenhum género de contrariedade. Ele não olhou para trás, nem sequer para confirmar se eu o seguia.
Acompanho-lhe os passos á distância, escondendo entre as mãos cerradas duas pequeninas esperanças. - Que estivesse a ir para o portão de âmbar, e que desaparecesse para sempre da minha rua. – Podia pelo menos acreditar que não ia ficar a vaguear por ali se não lhe tirasse os olhos de cima. Talvez se cansasse… talvez a minha rua fosse somente interessante para mim. - Crença na qual eu construía fortes colunas de sustentação. – A realidade que espera por mim fora da minha rua surge ininterruptamente no meu pensamento causando-me agonias pela lentidão dos passos que o retiravam aos poucos dali. Não podia partir enquanto não tivesse a certeza de que este estranho se iria embora, de que não o ia encontrar de novo quando regressasse, e de que nunca mais me faria perder o equilíbrio com os seus sorrisos perturbadores e perguntas constantes, as quais me recusava responder.
A lentos passos, o espaço até ao portão de âmbar tornou-se mais curto, conseguia vê-lo à distância. A luz vaporosa e quente que emanava como uma brasa soprada delicadamente… já não me parecia tão maravilhoso. Era agora, mais que qualquer outra coisa, o meu portão de salvamento.
Quase me desfiz em lágrimas quando estacou na sua entrada e olhou finalmente para mim. Os olhos estranhos preenchidos por um brilho febril que ora me assustava bastante, ora me enchia de culpa. Estava quase!!!... só mais um passo, e podia colocar cem cadeados naquele portão e esquecer que alguma vez tinha estado um estranho na minha rua.
- Pensei que me ias pedir para ir embora. – Disse quase num sussurro que se perdeu mal passou por mim – Não que me ias empurrar como uma demente até perceber que era isso que querias. Eu vou... – Ofereceu-me um sorriso que ofuscou gloriosamente toda a beleza do portão de âmbar, passou por ele no momento seguinte e este fechou-se...
Antes de conseguir mexer-me, o vento devolveu-me o que escapara com a sua imagem:
- Até já.