terça-feira, 8 de junho de 2010

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XXI

- Não estou a fazer nada. – Afirmou levantando as mãos na minha frente num gesto defensivo.

- Estás. Não me mintas. – Pedi sem qualquer tipo de incriminação. Para mim era acima de tudo extraordinário o que eles conseguiam fazer. A utilização que davam a essas habilidades era algo que não me atrevia a julgar sem saber os motivos que os levavam a ter certos comportamentos. – Há mais pessoas a fazer isso?

- Isso o quê? – Insistiu em me manter no papel de ignorante e sorriu dando largas ao auge do seu charme ilusório.

- Estás a fazer-me querer e sentir… coisas. A encher-me de desejos quando olhas assim para mim e não consigo pensar.

Resumindo poderia ser algo deste género. No entanto era bem mais do que as minhas palavras poderiam exprimir sem me fazer soar ridícula e despropositada, já que, conforme eu própria descrevera, era o que ele me estava a fazer sentir. Coisa que ele negara por duas vezes. Claro que me podia esforçar bastante mais para conseguir valer as minhas palavras se não estivesse a sustentar precisamente o que descrevia e ele não me estivesse a bombardear com aquele sorriso insuportável.

- Eu acho que tu estás a desprezar as tuas próprias ambições. – Acusou-me tornando o seu sorriso ligeiramente presunçoso, fingindo que acabava de comentar algo casual enquanto acomodava um machado maciço no coldre reforçado que trazia na cinta metálica da armadura. - Só estou a tentar com que te sintas bem. Não te estou a encher de desejos.

Senti-me corar até o meu rosto arder com a vergonha. Aquilo dito por outra pessoa que se fazia despercebida quanto ao que eu estava a sentir, provocado por ela ou não, era embaraçoso. Vi como o teor da conversa começava a irritar o estranho na minha frente e como este se levantou de imediato para me fustigar com o ar irado de quem não desejava estar ali para ouvir aquilo.

- Os vossos olhos são diferentes. – Interpelei-o na tentativa de impedir que se afastasse lançando a mão ao seu cotovelo. – Tu sabes fazer aquilo que ele está a fazer?

- Eu não aprecio nada do que ele possa ou esteja a fazer. – Libertou o braço da minha mão e continuou a andar até á mochila. Olhou para mim, depois olhou para o outro e meteu-a ás costas. – Nós somos diferentes, entendes? – Apontou para os dois com a mesma expressão enfadada de quem tinha de explicar sempre tudo de forma muito simples para que eu entendesse. - No meio desse desejo… - Revirou os olhos de modo teatral. - e burrice toda, espero que já tenhas percebido isso.

- Sê mais explícito. – Pedi acompanhando-lhe os passos furtivos em direcção á floresta como se as minhas passadas fossem desmesuradamente mais curtas que as dele. O estranho de olhos claros acompanhou-nos como uma sombra. – Eu não disse que vocês eram iguais. – Isso era tão desnecessário que dito seria uma profanação da minha tão desconsiderada inteligência – Vocês já se conheciam?

As duas cuspidelas, embora numa sincronia considerável para que não fosse considerada uma resposta, fez retinir o sino da minha impaciência. Sentia-me arremessada para o espaço que dividia aquela abominação, pelos vistos visceral, e a falta de informação sobre o que poderia ser tão conclusivo que se recusassem a facultar-ma estava a dar comigo em maluca.

- Vocês odeiam-se mas não se conhecem, é isso? – Continuei com a minha narrativa procurando uma reacção que não incluísse cuspidelas ou olhares inflamados. – São inimigos, porquê?

Ele parou de repente, segurou-me pelos ombros como se me fosse abanar de frustração e mergulhou os olhos manifestos pela intensidade de mil labaredas nos meus, vermelhos como duas brasas, obrigando-me a respirar como se não o fizesse havia muito tempo.


“ Neste mundo… Ou somos Nós, ou são Eles.”

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XX

Passou algum tempo até que se tornasse desconfortável manter-me naquela posição. Aquilo que me impelia para ele não era físico, apesar de ser notória a sua intenção em me manter próxima o suficiente para que o espaço entre nós se limitasse a um palmo, nenhum dos dois fazia questão de o diminuir ainda mais. A verdade era que, longe da minha compreensão, aqueles olhos falavam-me desde o primeiro momento em que o conhecera, e as palavras que pairavam entre os dois se infiltravam na minha mente fluindo dos seus olhos sem deixar margem para as minhas frequentes divagações. A clareza com que mas transmitia nunca fora toldada por outros pensamentos que não os meus. Eram aqueles olhos negros que atraíam a totalidade da minha atenção e o foco por onde os meus pensamentos e emoções se blindavam e regressavam intactos. Aceitei essa certeza sem contestar. Fiz o mesmo com a resposta que lhe dei.

Existia uma razão para a forma como agia, mesmo sem que existisse uma que justificasse o porquê de não me querer afastar dos seus olhos. Havia qualquer coisa que me escapava neles. Algo que já seria obvio se não me esforçasse tanto por lhes anexar uma série de outras observações que se tinham tornado incontornáveis para a minha insaciável curiosidade. Houvesse tempo para os contemplar, para perceber agora o que era mais importante. Porque eram tão negros que me abismavam na vertigem da sua profundidade? O que escondia aquela sombra repleta de mistério?

Senti a mão afrouxar na base do meu pescoço num prenúncio do seu afastamento. Ainda não!!! Retive-o estreitando ainda mais o aperto contra o meu rosto. Havia mais, eu sabia que estava ali mais do que eu tinha sido capaz de captar. Firmei as duas mãos no seu pescoço sem devaneios comportamentais e fixei-o até sentir os meus olhos flagrarem de inquietação. Nada. Tornou a tentar afastar-me apertando os pulsos hirtos que nos mantinham ligados e fechou os olhos. Apeteceu-me gritar. De súbito instalou-se dentro de mim um vazio que nunca lá estivera. Não era total, eu não me sentia exangue dos meus pensamentos e das minhas certezas, era a ausência dos pensamentos que ele partilhara comigo. O contacto dos meus pensamentos nos dele, de repente privados do calor da sua presença. Era como se na minha pele tivesse estado pousada a sua mão, quente e reconfortante, e a tivesse retirado para a deixar exposta á frieza do isolamento. Quando voltei a contemplar a tenebrosidade dos seus olhos compreendi.

- Os olhos… - Evidenciei a minha compreensão num murmúrio que esbarrava no sopro brando que era a sua respiração no meu rosto.

Ele sorriu e afastou-me. Aquele sorriso que me fazia transbordar de prazer, pleno e perfeito não era passível de ser comparável a nada que não fosse absolutamente singular. E era isso que eu via sempre que este surgia no seu rosto demasiado austero, normalmente intransponível. Não era nada irreal, era palpável, exultante e sincero. No entanto, único.

Quase que em busca por um termo de comparação encontrei o estranho de olhos claros transfigurado da sua aura de candura com uma expressão que raiava repulsa. Parado na sua postura escudada e avaliadora observava cada pequena reacção que lhe dirigi sem ocultar a altivez com que enfrentava a minha compreensão.

- Se a queres aliciar dessa forma, ao menos que ela saiba como o fazes. – Remeteu-lhe sem meias palavras e agachou-se na minha frente virando-lhe as costas como se as minhas botas voltassem a ser o motivo da sua principal preocupação.

O outro ignorou-o como se o que dizia não fizesse qualquer sentido e tornou a aproximar-se, desta vez recatando a sua arte sem me dirigir qualquer olhar directo, ficou em silêncio e fingiu observar a técnica com que ele me atava o cordel em torno da perna.

- Como é que vocês fazem isso? – Perguntei sabendo á partida que só me iria ser facultada informação por um deles. Agora não sabia ao certo se estaria correcta em duvidar de ambos ou segura acreditando apenas em um.

- Isso o quê? – Contestou o estranho com os olhos claros demasiado perto dos meus causando-me arrepios por saber como seria fácil que dessa forma me fornecesse informação sem eu ter oportunidade de a questionar.

Ele era realmente muito bonito. Demasiado atraente para que ignorasse o desejo que sentia sempre que se dirigia a mim e me fazia acreditar que a mutualidade desse sentimento era autêntica. Eu queria acreditar, destituir-me da capacidade de o contrapor com a minha falta de amor próprio e permitir que me envolvesse completamente, transgredindo a minha consciência. Era tão fácil abdicar da minha vontade quando o seu olhar me devolvia algo mais repleto de força e segurança, cheio de promessas e desejos alcançáveis.

- Isso que me estás a fazer agora.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIX

Olharam ambos para mim uma fracção de segundo para depois voltarem a ignorar-me. Inspirei lentamente uma grande golfada de ar e pus-me de pé. Naquele momento não ia fazer qualquer diferença o que acabasse por dizer a nenhum deles. Era genuína e incompreensível aquela surpreendente inimizade. Aqueles dois estranhos partilhavam apenas um ódio latente que assentava em algo que eu estava longe de deslindar. Na verdade, eram-me indiferentes as razões que os levavam a comportar-se como dois galos emproados. Podiam perfeitamente desaparecer pelo caminho de onde tinham surgido e não regressar mais ali se era “aquilo” que reservava a minha chegada àquele mundo. – Isto era o que trespassava pela minha mente por entre instáveis ondas de lucidez. – Porem, olhava para os estranhos e assaltavam-me porções desequilibradas de medo e veneração. Pontadas imprudentes de uma confiança assoladora debatiam com a pequenina vontade de correr para bem longe dali. A minha vontade, bem como todos os meus pensamentos, retrocediam ao ponto em que me encontrava sozinha e perdida, algemada à necessidade que tinha deles.

Dois estranhos. Dois caminhos.

Não era crucial que tivesse de escolher naquele momento o que fazer perante o que já de inicio aquele mundo me apresentava. Tendo presentes as minhas limitações, tentei fazê-lo, observando-os ao longo de todo aquele discurso vociferado a duas vozes que mal se distinguiam uma da outra. A minha refugiava-se no espaço recatado no peito e sussurrava mansamente por entre as legiões revoltas de emoções: “ Agora não. Ainda não…”

Esperei. Em desespero fui ordenando a mim própria que não cedesse a nenhum deles a essência que me tornava o centro de toda aquela demonstração de raiva e rivalidade. Em torno desse centro existiam sem duvida outros motivos, bem mais rebuscados e sólidos que a minha miserável chegada. Eu não era, na minha insignificância, a razão pela qual gladiavam as suas diferenças ou o que os separava. Eu era o que, sem outra escolha, os estava a aproximar. O resultado era caótico.

- Vou-me embora. – Dirigi-lhes a meio tom, resguardando o calafrio que as palavras me causavam e virei-lhes as costas.

Silêncio.

- Deixa-a ir. – Escutei atrás de mim após ter avançado um passo. A voz calorosa do estranho de olhos claros num murmúrio expectante. – Acabamos já com isto e tu desapareces de uma vez por todas.

- Tira as tuas mãos de cima de mim. – Olhei para trás reconhecendo o tom frio da ameaça em surdina. Estavam ambos suspensos nos meus movimentos. Cada um agarrado ao colarinho do outro.

Reparando que eu não iria avançar mais libertaram-se e, com olhares furibundos de soslaio, aproximaram-se novamente de mim.

- Ela não tem um pingo da vossa selvajaria. Basta olhar para ela… é frágil.

Era a segunda vez que me dirigiam aquela apreciação. A segunda pessoa que, sem que me tivesse sido dada oportunidade de provar o contrario se sentia em plena consciência para me classificar como algo frágil. Engoli o meu orgulho sem tirar os olhos do chão. Apesar de não me fazer sentir ferver de raiva e injustiça como da primeira vez que tinha ouvido aquelas palavras, aquela voz adocicada e tão cheia de sensatez plantara no meu peito a dúvida. Seria assim tão óbvio que eu não poderia fazer parte daquele mundo? Que me estava vedada a possibilidade de transpor a barreira para o interior daquele mundo por… fragilidade? Que fragilidade em mim seria assim tão obvia que apenas eu podia contestar capacidades que continha dentro de mim? Eu tinha-as, mesmo que não acreditasse nelas.

- Eu não sou frágil. – Afirmei roubando à minha voz uma segurança que não sentia para os encarar aos dois. – E vocês não me conhecem.

- Mas quero conhecer. – Disse-me passando a mão pelo meu cabelo num gesto demorado, o rosto gracioso mais perto do que antes lhe havia observado era um raiar de luz na entrada daquela floresta cheia de sombras. Aquela sensação inebriante que experimentara desde que o vira surgir ali inundou-me de novo ao cruzar o azul cristalino dos seus olhos e me quedar na ausência da minha própria vontade. A única coisa que existia digna de conhecer naquele mundo estava na minha frente e a única vontade era a de cumprir com os seus desejos. – Ninguém disse que ser frágil era mau, disse?

- Chega.

O segundo que levou até eu perceber como ele tinha sido derrubado por uma valente cotovelada e o som do metal retinir aos meus pés na queda foi a única coisa que os meus sentidos atordoados absorveram antes de uma mão quente me puxar pela nuca e me aproximar o rosto de uns olhos escuros, velados num abismo repleto de enigmas. A minha testa encostada na dele com uma determinação mantida á força acelerava-me o sangue e a procura de ar. Não era medo o que me invadia o peito e me mantinha segura sem tentar afastá-lo. Quando a minha mão se encaixou no seu pescoço e eu própria o apertei ao meu encontro, não era a ausência de consciência que latejava em cada fibra do meu corpo num afluxo de sensações e pensamentos.

- És frágil? – Perguntou-me como se tudo estivesse retido na minha resposta e nada mais existisse enquanto isso não fosse a minha única certeza.

- Não.

E acreditei…

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVIII

- Confesso que fiquei neste momento. – Aproximou-se com resguardo. Manteve entre nós uma distância premeditadamente segura e sentou-se majestoso junto á entrada da gruta. - Há uns dias que sinto a tua presença a rondar por aqui. Estás longe do lugar onde pertences.

Que sorriso tão insuportavelmente perfeito, observei-o deslumbrada. A luz que acompanhava as palavras e as faziam soar tão cheias de cuidados e generosidade era um calor demasiado palpável para que não desesperasse ao saber que era possível alcançá-lo. A sua voz era como mergulhar num limbo de tentações e cada palavra transpunha dentro de mim a irracional necessidade de esquecer tudo o resto.

- Não pertenço a lado nenhum. – Remeteu com explicita agressividade, os braços cruzados no peito e sobrolho erguido. - Tinha coisas a fazer aqui e entre elas não está perder tempo a falar contigo.

- Óptimo. – Anuiu sem complacências. – Também não faço questão de falar com gente como tu. Não vim atrás de ti para conversar.

Dito isto ficaram ambos em silencio. Mais valia que tivessem ficado sempre calados, na verdade eu não tinha entendido absolutamente nada da troca de fagulhas e supostas provocações. A única coisa que me mantinha presente entre os dois era o facto de ter sido por momentos ignorada e me ter sido permitido observa-los. Isto durou, para minha profunda infelicidade, pouquíssimo tempo. De súbito encontrei dois pares de olhos cravados em mim, tão opostos e embaraçosos que me senti amedrontar, incapaz de me mexer.

- A surpresa foi encontrar-te com ela. – Acenou na minha direcção tornando ao tom melífluo. Ergueu-se com a graça dos vários tilintares metálicos da sua reluzente armadura e aproximou-se até ficar a dois metros de distância. – Foi aí que me perdi.

O estranho de olhos escuros dirigiu um esgar de enfadamento aos céus e tornou a aproximar-se de mim sem se mostrar menos comprometido por ser óbvio que não éramos assim tão próximos. A contradição da sua postura a meu lado tinha o gosto agridoce de quem acabara de declarar que se iria arrepender por me trazer consigo até ali e a segurança que me transmitia saber que apesar disso, ele estava junto a mim. E agora existia um novo estranho. Uns olhos claros, que murmuravam na minha mente ladainhas mansas, que me faziam desesperar, que me afastavam do término das minhas conclusões.

- Ou sabias que ia chegar, ou vou ter de considerar que acabaste de a encontrar aqui. – Encararam-se de novo, expressões desconfiadas que despontavam agrilhoadas pela forma como eram feitas as perguntas e dadas as respostas. – Estou mais inclinado em achar que sabias perfeitamente que ela ia chegar e por isso é que estás nesta zona há mais tempo do que te é “saudável”.

- Ou então, trouxe-a comigo e parabéns. - Desfez-se na maior manifestação de gozo que eu já tinha presenciado. - Deste connosco quando parámos para um piquenique no teu quintal.

O calor do rosto harmonioso abandonou-o quando o fixou com atenção, não no regozijo da provocação inerente á outra opção que lhe estava a apresentar, mas na tentativa falhada de o desinteressar pelo que realmente tinha acontecido.

- Sendo assim… – Aproximou-se um pouco mais, ignorando-o, e agachou-se na minha frente. Estava tão próximo que se estendesse a minha mão podia tocá-lo. – Estamos com um pequeno problema.

- Estamos?

- O que encontras no meu quintal… é meu.

A resposta que se adivinhava chegou numa gargalhada espalhafatosa que rompeu o silêncio e varreu o espaço ao nosso redor. Era tão despropositada que a primeira reacção, á qual os meus movimentos não corresponderam, era de lhe atirar uma pedra que o calasse, no entanto fixei-o. Aquela gargalhada estava longe de alcançar os seus olhos negros, estes continuavam carregados de sombras e enigmas, e essa certeza dissipou de alguma forma a neblina subtil que enleava os meus pensamentos. Não totalmente. Era indiscutível a atracção que aquele novo estranho causava em mim. Era esgotante e impensável colocar a hipótese de não lhe ceder cada pensamento. De não me entregar ás variadíssimas emoções que se revolviam no meu peito cada vez que os meus olhos encontravam os dele.

- Se parares de a encantar dessa forma nojenta, experimenta dizer-lhe isso. – Provocou-o falando como se eu já não tivesse noção da conversa que se estava a desenvolver entre eles. – Diz-lhe isso. Que a rua dela está no teu “quintal”. – Voltou a rir com satisfação. – Aproveita e diz-lhe também que isso faz com ela seja tua.

- Onde queres chegar com isso? – Pôs-se de pé num ápice e aproximou-se dele ate chocarem com hostilidade um no outro. – Tu é que não devias estar aqui. Onde ela está ou deixa de estar não é da tua conta.

De seguida deixei de entender na íntegra o que vociferavam um para o outro. No início julguei que era eu que acabara por ter perdido a capacidade de deslindar o teor daquela conversa labiríntica, mas aos poucos percebi que eram as palavras em si que não faziam sentido nenhum. Estavam a falar numa língua rude que soava bastante a latidos e rosnadelas empregues com entoações grosseiras. As expressões encolerizadas e os vários apontamentos na minha direcção não ajudavam a que encontrasse uma maneira de os acalmar, quanto mais de os afastar um do outro.

- Será que posso falar?

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVII

Esperou de expressão rígida que eu lhe acenasse em concordância. Coisa que fiz, apertando-lhe o pulso até que ele tomasse por seguro confiar que o faria. Não ia aproximar ainda mais a cara daquela lâmina. Estava em pânico.

Lentamente recuou e permitiu que o ar nos separasse, a distancia entre os nossos corpos tornou-se suficiente para que após aqueles segundos de intensa percepção de que algo estava a correr mal, eu própria tomasse consciência da reacção brusca nos meus sentidos. Não eram as pequenas brechas no meu entendimento do que podia ser tão grave que o fizesse reagir com aquela detonação de adrenalina, nem a insuportável angustia que lhe brilhava nos olhos ao forçar-me a perceber a gravidade do que estava prestes a surgir sem ter como não me mortificar de medo. A minha própria reacção era por si, esmagadora. O frio gelado que transitava em nosso redor adormecera a capacidade física de me arrepiar conforme a minha pele aflorava pequenos tremores e sentia as correntes do ar fundirem-se com o fluxo acelerado do meu sangue. Estaquei segura nos antebraços firmes da sua figura igualmente estática, ambos ajoelhados de frente um para o outro. A respiração num sopro contido que se tornara tão audível quanto tudo o que me rodeava, esse tudo que abarcava a significante sequência de passos firmes na nossa direcção através das arvores mergulhadas em escuridão.

Abstive-me de transpor essa certeza em palavras. Muito antes de eu ter sido capaz de reagir perante o que agora conseguia afirmar por certo, ele tinha dois punhais nas mãos e a minha boca silenciada.

Procurei naqueles olhos fixos muito além de mim um lampejo de serenidade, uma centelha ténue que me fizesse recordar de onde estava, porquê e como era possível que de um momento para o outro me sentisse tão ameaçada dentro de um mundo que sempre tivera como porto seguro. O que estes me devolviam pairava sobre um reflexo infinito dos meus medos espelhados nos dele.
Soube, independente da minha aceitação, que estava a reagir perante aquele acontecimento de maneira alienada e em puro descontrolo. A íris dilatada dos meus olhos imobilizou-se com a tensão dos sons ampliados que me fustigavam e as certezas absolutas invadiam ininterruptas a minha mente. “Estava sozinho… pouco tempo. Vinte passos… menos.” Apertei os pulsos onde as minhas mãos se mantinham firmadas e esperei. O cheiro que havia minutos atrás me tinha invadido era neste momento tão intenso que me agredia e me obrigava a inspirar lentamente para que o conseguisse suportar. Subitamente surgiu um outro, fugidio por entre a brisa dispersa. “ Homem…frio, metal. Medo.”

Antes que o tempo o impedisse, com um sorriso ardente e gestos morosos, rompeu por entre os ramos baixos de um cedro ressequido na orla ensombrada das árvores uma figura possante de ferro e armas grotescas, cheio de tantos pormenores que a minha mente bloqueou e só me encontrei na visão maravilhosa do seu rosto esguio e delicado. A visão de um sonho transposto. Era, na simplicidade de um desejo, a perfeição. A pele alva que exalava o requinte almiscarado da juventude sobreposta á verdadeira matéria de uma anatomia irrepreensível, da personificação libidinosa de um homem. O azul cristalino dos seus olhos reivindicava de mim o esbanjar de uma expressão adulatória que não reprimi. Não queria reprimir absolutamente nada que ele me provocasse, não queria pensar que não fosse óbvio para ele que assim era. Que obstante um mundo inteiro de memórias e sentimentos, ruas seguras, portões e equilíbrio, eu os trocaria sem pensar, apenas pela possibilidade de poder sequer tocá-lo.

- Perdidos? – Falou. A voz mais bela que havia ouvido. Uma tradução imersa, daquilo que era sagrado e profundamente humano, num tom tão quente e seguro que surgiram espontaneamente mil razões para que assim fosse. Estava perdida. Estava exactamente tudo o que ele decidisse.

- Não. – Rosnou-lhe o estranho colocando-se de pé a meu lado. Mirei-o por um segundo sentindo como aquilo me afligia. Estava louco!!! Que estava ele a fazer?!!! – Tu estás?

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XVI

Olhei-o de lado enquanto ainda me ocorriam diversas formas de lhe torcer o pescoço. Depois revirei os olhos e endireitei o colete à minha frente para tornar a tentar perceber como se vestia.

- Posso? – Ofereceu-se cuidando de não deixar transparecer o gozo que aquilo lhe dava. Como se fosse possível retirar-lhe do rosto aquele seu ar de: “se não for eu estás tramada”. – É mais fácil do que parece.

Entreguei-lhe o colete sentindo-me embaraçada por saber que assim era. - Naquele momento precisava dele. Do “estranho”, que de certa forma não era estranho, ou começava a deixar de ser desde que passei a vê-lo não como um invasor mas como um irrecusável passaporte para o “mundo novo”. – Foi muito rápido para que eu conseguisse captar o método com que ele, sem um lampejo de hesitação, o virou ao contrário e o passou pela minha cabeça. Pegou-me nos braços, passou as fivelas pelos meus ombros e apertou-o com gestos bruscos que me fizeram ofegar. Afastou-se de sobrolho erguido e voltou a aproximar-se, sem dar conta de que lhe observava as expressões com uma indiscrição oportuna agora que voltava a tomar cuidados quanto á forma como o colete se adaptava ao meu corpo magricelas. Existiam pormenores nele que me enchiam de uma curiosidade sequiosa.

- Queres que aperte mais? – Interrompeu os meus pensamentos, fitando a minha fraca habilidade em esconder um olhar fervoroso ao seu rosto, agora a três palmos do meu. – Melhor não.

- Melhor não, se a intenção é continuar a respirar.

Estupendo. Corei até á raiz do cabelo, precisamente quando ele achou apropriado dedicar-me uma observação rigorosa de cima a baixo. Pelo menos sabia que só estava interessado na roupa e não na minha fraca figura uma vez que se aproximava e se afastava consoante aquilo que ia vendo e lhes ia tocando ou puxando, ora na fivela, ora na manga, esticava e torcia o couro como se encontrasse a cada volta em meu redor algo que não estava no sítio certo. Pela parte que me tocava estava tudo bem. Tal como as calças, o colete, depois de ajustado ao meu torço permitia que me mexesse como se não trouxesse nada vestido. Era perturbador saber que aquilo não era possível, ou se era, eu não sabia como. Desconfiei que ele não me respondesse porquê.

- Já agora, que estás na inspecção. – Apontei para baixo. - Acho que está qualquer coisa mal nas botas.

Sorri ao vê-lo agachar-se na minha frente e meter-se de joelhos antes de subir o cano das botas até ao joelho e se mostrar desiludido por estas não fazerem jus ao resto da indumentária.

- Estão largas. – Concluiu e olhou imediatamente em redor. Pegou na mochila jogada ao chão trás de si e começou a retirar-lhe o atilho com o qual eu tivera um contratempo de nós e má vontade. – Senta-te. – Pediu-me indicando que ficasse sentada no chão á sua frente. Ao que eu obedeci sem dizer nada. Começava a não dispensar as oportunidades de me aproximar o suficiente para o observar entretido com algo que não me denunciasse.

Pegou no meu pé, pousou-o por cima das suas calças e começou a passar o atilho em volta da bota, cruzando-o com nós intrincados pela frente e por trás sem nunca se enganar no padrão. Estava entretido, portanto calado. Fiquei a olhar para as mãos grandes, no entanto hábeis que me subiam lentamente pela perna e iam ajustando o couro até este se começar a mostrar com algo parecido com uma bota. Eu tinha um milhão de perguntas a fervilhar na ponta da língua sem ser capaz de escolher por onde começar, e ele não se mostrava inclinado em esclarecer nenhuma delas. Olhou para mim, piscou-me o olho e pegou na outra perna para recomeçar a cruzar e passar atilho. Enervava-me sentir como aquelas pequenas coisas me faziam disparar o coração e me faziam perder o raciocínio. O embaraço era saber que ele percebia sempre que tentava esconde-lo.

Estava frio ali. O som do vento que atravessava a clareira assobiava na entrada obscurecida da gruta e trazia-nos os ecos distorcidos da queda de água brincando ao nosso redor. O meu cabelo movia-se em trejeitos revoltos que teimavam tapar-me a cara e insistiam em passar na frente dele. Ele afastava-os com calma e continuava a atar a bota, inclinado para mim sem dirigir palavra.

- És sempre assim tão calado? – Aproximei-me para lhe perguntar, sentindo pela primeira vez o cheiro místico que o vento lhe roubava e trazia até mim. Quase fugaz, demasiado subtil para que fosse perceptível, aquela mistura de terra acariciada por chuva, madeira jovem, couro e…

- Cala-te… se faz favor. – Murmurou parando de apertar o cano da bota sem olhar para mim. Ficou imóvel com as mãos metidas em dois cabos que, eu não era tão boa observadora quanto gostava, estavam ocultos no colete na zona dos rins.

- Não me mand…

A mão que me tapava a boca segurava um punhal que luziu como um raio de sol junto aos meus olhos. A outra apertou-me junto a um peito que reflectia as batidas descompassadas do meu.

- Shh… – Alertou-me aproximando a boca ao meu ouvido e encostou a cabeça à minha sem deslocar a lâmina entre nós – Eu falo. Tu ficas calada… e não olhes para ele.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XV

A blusa simples de linho esverdeado e umas meias grossas de lã eram as únicas coisas que não tinham sido feitas daquela pele escura e pesada. Tudo o resto provinha daquele material, e fazendo justiça, á minha medida. Soube que me serviam no momento em que lhes metera os olhos encima. Peguei naquilo que me parecia um colete-de-forças e medi-lhe o peso antes de o aproximar do nariz e o atirar outra vez para cima da rocha. Tinha um cheiro medonho a pele curtida havia pouco tempo e a outra coisa que não sabia identificar mas me pareceu igualmente nojenta. Eram vestimentas pesadas e rudes como as dele. E eram para mim.

Espreitei na direcção onde o vira desaparecer para verificar se estava completamente sozinha, confirmei três vezes de diferentes ângulos e voltei para junto da roupa. Agora só tinha uma opção e torci o nariz antes de começar a despir-me o mais depressa que conseguia. Enfiei a camisa pela cabeça antes que me arrependesse, ou que ele viesse ver porque me demorava tanto, peguei nas calças rijas e enfiei uma perna lá dentro sentindo-a colar-se na minha pele impedindo-me de conseguir vesti-las sem me darem luta. Torci-me e retorci-me, apoiei-me na rocha e andei aos pulos enquanto as puxava pelas pernas e estas iam subindo aos poucos até ser possível fechar os colchetes laterais que ficavam até meio da minha coxa. - Duvidava se ia conseguir andar com aquilo vestido. - Tentei baixar-me para apanhar as meias e pasmei com a facilidade com que o fiz. Meti-me de cócoras, levantei-me e subi o joelho até ao peito. A diferença entre as ter vestidas ou estar sem nada era o frio que me fazia bater o queixo e mexer-me como um gafanhoto enjaulado. - Como era possível?!! - “Não penses nisso agora”, repetia enquanto vestia as meias e me sentava para calçar as botas. Não eram o meu número. Virei-me para a entrada embirrando com aquela falha crucial que me ia obrigar a andar enfiada em dois mamarrachos com dez quilos cada um e que me estavam bastante largos. Isto tirando a particularidade de nem trazerem atacadores ou forma de ficarem presas ás minhas pernas sem parecer terem derretido para os lados. Olhei para as minhas sandálias de verão, enfiei-as dentro da mochila e peguei no colete. Dei-lhe meia dúzia de voltas sem perceber como ia vesti-lo sem me debater com as fivelas que se cruzavam em varias direcções. Ele que arranjasse solução para isto também, teimei farta de estar ali enfiada a perder tempo em vez de ir directamente lá para fora e perceber porque era tão importante andar couraçada como se estivesse prestes a ser atirada para uma arena.

Não estava interessada em tirar conclusões de descrições feitas por um estranho, tendo sido generoso ou não, ao me ter trazido o que vestir que se adequasse ao que eu estava prestes a enfrentar ali fora. Sorri ao pegar na mochila, meti o colete por cima do ombro e arrastei os pés até á saída.

A passagem para o exterior encandeou-me ao abandonar a semi-escuridão da gruta. Estava ansiosa com o que ia encontrar a partir dali e não sabia qual seria a minha reacção se acabasse por me decepcionar e preferir recuar. – Ainda existia essa hipótese? - Protegi os olhos com a mão que tinha livre e deixei cair a mochila antes de começar a perceber o que me rodeava. O chão estava completamente encoberto por erva alta e arbustos espinhosos que cresciam desgovernados até á entrada de uma floresta cerrada de carvalhos e cedros escuros. Arrepiei-me com a aragem gelada que trespassava os ramos mais baixos numa mensagem nada convidativa e dei um pulo ao assustar-me com algo que se tinha partido, ou estalado, ou caído…não muito longe. – Era um disparate sentir-me assustada no meio do campo e permitir-me sugestionar por coisas tão simples como sons naturais tais como uma simples pinha a cair da árvore. Não tivesse eu sido criada em contacto com o campo e passado tantas horas sozinha em plena serra… aquilo seria mesmo muito intimidante. - O sol que esbanjava luz pela entrada da gruta não surgia por entre aquelas árvores. Estava numa clareira a partir de onde se elevavam duas colinas rochosas até á base de uma cordilheira abrigada pela sombra de uma neblina imóvel. Aquilo era tudo tão magnificente e assombroso que só fechei a boca quando senti necessidade de engolir em seco.

- Medo?

Fiquei sem pinga de sangue com o susto que a voz dele me pregou e fechei os olhos com força antes de me virar para trás e lhe atirar com o colete encima.

- Nunca mais me faças isso!!! – Apontei-lhe o dedo ao queixo obrigando-o a recuar – Voltas a assustar-me…

- Matas-me. – Brincou devolvendo o colete e ignorando as minhas ameaças com uma careta.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIV

- Antes tu que eu. Seja lá o que for que queres dizer com isso.– Esperei sem me mexer. Olhei para a mochila estranha em pele lustrosa que ele mantinha segura na minha frente e limitei-me a esperar sem saber o que fazer depois da sua asserção. – O que é isso?

- É para ti. – Sacudiu-a na minha direcção insistindo para que a segurasse e ultrapassasse o arrufo sem perder muito tempo. – Eu vou lá para fora. Quando estiveres despachada, vai lá ter.

Podia neste momento argumentar e recusar a explicita oferta que ele me fazia. Sabia com uma certeza atroz que eu iria voltar e que me iria encontrar ali. A mochila não era, de todo, casual. Nem a proposta por detrás da oferta. De certa forma já era óbvia aquela sua insistência em se manter por perto, os nossos encontros não eram coincidências. As dúvidas cresciam perante a minha própria predisposição em procura-lo. Em camuflar aquela vontade excessiva de o encontrar novamente, só mais uma vez, com as minhas pequenas demonstrações de frustração. Conseguia ignorar toda a incapacidade em me manter alerta e consciente da verdadeira razão das minhas vindas a uma rua que já não era minha e de onde já não retirava paz, apenas com aqueles encontros. E agora que não existiam retrocessos, que já eram tão desmedidas a minha curiosidade e urgência sobre ele e sobre o que me oferecia com este gesto tão irreflectido, era impensável continuar a insistir nesta postura de dúvidas e despretensão.

Estendi a mão com um aceno de cabeça e fitei os olhos negros que me enchiam da sensação insuperável de um abismo de segredos e mistérios. Porque seriam aqueles olhos o motivo para os meus impulsos?

A mochila era pesada e obrigou-me a ter de segura-la com esforço com ambas as mãos antes de a deixar cair aos meus pés num momento embaraçoso para os dois. Ele inclinou-se para a equilibrar antes de esta cair encima de mim e eu empurrei-a na direcção dele na tentativa de não torcer os pulsos. Por fim a mochila caiu e as minhas mãos seguraram apenas as dele. Isto fez-me disparar o sangue nas veias com uma intensidade aterradora e ele apressou-se a retirá-las.

- Eu espero lá fora. – Disse baixinho como se falasse consigo mesmo e virou-me as costas antes de conseguir definir se aquilo que tinha visto seria mesmo mais um dos seus sorrisos.

Aguardei até o ver desaparecer através da entrada luminosa da gruta, talvez a uns trinta metros de distância, e encarei o que tinha aos meus pés. Ainda estava a recuperar a estabilidade das minhas pulsações quando me dediquei de forma característica a perceber antes de mais, como havia de abrir aquela mochila. Era simples, uma fivela. Era complicado, estava nervosa. Depois de remoer acerca do tempo que perdia em dificultar o que era, ou devia ser, evidente para o mais comum dos mortais, ajoelhei-me e abri a mochila entre as pernas. Mais tempo perdido, agora com a necessidade de desatar os nós complexos que me estavam a impedir de ver o que estava lá dentro. - Não tive dúvidas sobre quem os tinha feito. Estranhos e complicados. - Contive a vontade de gritar por uma faca e suspirei enquanto lentamente dava conta da tarefa.
Finalmente, e depois de sentir as pontas dos dedos dormentes da força com que tinha estado a puxar aquele atilho resistente, meti a mão dentro da mochila e comecei a retirar o que estava no seu interior.

Apercebi-me, enquanto puxava pela primeira coisa a que joguei a mão, de que era sem dúvida feita daquele material sólido e resistente das roupas que ele trazia vestidas. Porém não me detive e fui alinhando as várias peças sobre as rochas húmidas e esverdeadas que se dispunham á minha volta, começando aos poucos a observação do que realmente se tratava. Por ultimo, acomodadas para o grande desfecho, alcancei um horroroso par de botas.

Meti-me de pé, mãos nas ancas e olhar analítico, e estudei uma a uma, cada peça de roupa que ele trouxera propositadamente para mim dentro daquela mochila inglória.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XIII

“Demasiado espontâneo para pensar…” (Miller)


Não podia ficar ali especada e esperar que as soluções viessem ao meu encontro. Tinha de avançar, sem pensar no que poderia estar do outro lado, e esperar que fosse possível encontrar uma forma de voltar a ter a minha rua, de controlar o meu mundo e ultrapassar este pesadelo. Tinha. Devia isso a mim mesma. Podia já ser tarde… mas não ia entregar nada disso sem ter a certeza de que havia feito tudo para o impedir.

Cruzei os braços na minha frente para tapar o rosto e avancei através da cascata. Desta vez não caí. E não era porque se tinha tornado fácil depois de o ter feito mais vezes do que as que desejava. De facto o peso da água tornou a vergar-me e os meus pés escorregaram no momento em que os enfiei na lama. A diferença eram as duas mãos que me suportaram em pé pelos ombros e me afastaram até a um dos extremos do caminho para junto da parede rochosa. Vi-o pelo canto do olho através do cabelo colado na minha cara. A mesma expressão obstinada enquanto me observou por segundos e se afastou o suficiente para que não se tornasse oportuno que lhe deitasse as mãos. Não era de facto ingénuo ao relembrar que eu não gostava que me tocassem. Sendo ele um estranho isso era insuportável.

- Voltaste. – Confirmei entre dentes antes de desatar a capa pesada dos ombros e a atirar para o chão onde caiu com um baque sobre a lama cor de laranja alcalina.

- Também voltaste. – Mirou-me dos pés à cabeça sem se mostrar constrangido e esperou que eu escorresse o cabelo antes de voltar a ter compostura para o encarar – Ontem tive de ir. Desculpa por não ter dito que ia voltar.

- Farta de saber que ias voltar estava eu. Não tens saído daqui nos últimos tempos.

- De facto. – Sorriu-me com aquele seu ar trocista o que impediu que eu tivesse vontade de descarregar sobre ele, que se oferecia tão voluntarioso pela terceira vez, as minhas frustrações. – Mas hoje foi diferente. Estou aqui porque precisava de confirmar que ias atravessar a cascata.

- Ai sim? – Zombei da sua convicção sem lhe ceder o sorriso que me forçava o canto da boca e me fez virar a cara antes que ele percebesse. – Então porque é que tinhas tanta certeza que eu vinha aqui?

- Porque me disseste.

Disse? Engoli em seco ao sentir a apreensão invadir-me juntamente com a dúvida que se seguia á sua resposta. Ele seria normal? Eu tinha a certeza absoluta que não tinha dito nada que confirmasse a minha vinda ali no dia seguinte. Pelo contrário, mal ele desapareceu na minha frente a vontade era de ter desaparecido também e nunca mais meter ali os pés. Ainda me lembrava do susto que aquilo me causara e da sensação de derrota ao chegar finalmente à saída sem ter conseguido compreender quanto do que ele me tinha dito seria a causa ou a solução para o meu problema. Tomei-me de vários argumentos antes de decidir se valeria mesmo a pena regressar e essa decisão tinha sido tomada muito tempo depois do nosso encontro.

- Não me lembro de te ter dito que ia voltar. – Insisti medindo a distância entre os dois enquanto me metia em bicos dos pés para tentar vislumbrar o final da gruta e o que podia estar alem dela sobre o seu ombro.

- Também não estava à espera que te lembrasses. – Apagou o sorriso do rosto e inclinou-se de maneira a que não conseguisse ver mais nada – Diz-me uma coisa. – Cruzou os braços e fitou-me nos olhos até eu me sentir tão pequenina que quase me encolhi, não de medo, mas de respeito. – Se eu não estivesse aqui agora, tu ias sair da gruta não ias? Ver o que está ali fora…

Ergui o sobrolho sentindo o sangue ferver por ele duvidar de que eu seria mesmo capaz de o fazer sozinha. Fechei os punhos ao lado do corpo e semicerrei os olhos antes de encontrar uma resposta que o remetesse para o quinto dos infernos.

- Foi o que eu pensei. – Frustrou a minha tentativa com mais um sorriso desarmante, coisa que me fez morder o lábio com força antes de começar a bater o pé.

Dito isto tirou uma mochila que trazia ás costas libertando-se com destreza das duas presilhas largas que se cruzavam junto ao peito e segurou-a na minha frente.

- Vou-me arrepender tanto disto.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XII

Corri para a porta… como se uma vez mais me fosse insuportável respirar fora do meu mundo. Como se na urgência dos meus passos cada partícula de sanidade se perdesse e a realidade procurasse devorar-me. Assalto de adrenalina ao vê-la… só mais um pouco, quase, chave na mão, o romper do ar nos meus pulmões… sós.

Tinha a absoluta certeza daquilo que tinha vindo procurar. Sem me deter com a imagem deturpada de um lugar que me era tão íntimo continuei a correr como nunca havia feito ao chegar ali. Nada daquilo me dizia algo. Já nada daquilo era meu, eu limitava-me a aceitar o inevitável. Desta vez corri da porta da minha rua para o portão iridescente da mesma forma como corria anteriormente da realidade para o meu refúgio. Agora que esse já lá não estava, exigia a mim mesma que procurasse o verdadeiro motivo, a razão pela qual já não sustinha o controlo do meu mundo. E haviam respostas ali… Além daquele portão. Algures num par de olhos escuros que velavam o conhecimento de tudo o que eu desejava compreender.

Evitei as várias secções do caminho que me haviam sido difíceis de ultrapassar com uma facilidade que se tornou demasiado óbvia. Não cheguei ali no mesmo estado que da primeira vez, pelo menos não carregava metade das trepadeiras no cabelo nem enchi os braços de vergões ou hematomas, mesmo assim, ao alcançar a mão de âmbar, não fui capaz de atribuir mérito ás minhas fracas capacidades para desbravar mato naquela condição e procurei o mais pequeno arranhão que desviasse a minha suspeita de que me tinha realmente esforçado para chegar ali sem mazelas. Estavam lá. – Infelizmente esta minha mania de atribuir significados transversais ás situações é algo do qual não me consigo separar – Apesar de ainda não terem começado a doer, coisa que começou instantaneamente mal tomei consciência, tinha os pés cheios de cortes e sangue empoeirado. - Agora sim, aquilo tinha ido longe demais. - Nunca isto tinha sido possível desde que me tomava por gente, pelo que não guardava memoria de que alguma vez me tinha magoado daquela forma na minha rua. Magoar-me ocasionalmente, era raro, mas possível. Sangrar e cortar-me dando consistência a uma dor que desconhecia no meu mundo, era outra completamente diferente. - Água, precisava de água, e de não olhar para os pés. Isso principalmente, antes de me dar as usuais quebras de tensão, ou algo do arco-da-velha e desmaiar antes de conseguir sair dali para fora. - Quanto á dor… era estranha e constante. Não sabia ao certo onde me doía nem conseguia perceber o quanto dessa dor se fundia com o facto de não estar a conseguir lidar com a situação. Passei o portão e arrastei-me com receio até á queda de água para me sentar junto a uma das poças e enfiar os pés lá dentro. O alívio que me invadiu foi quase tão intenso como a percepção de que tudo aquilo surgia incluído nas irreversíveis mudanças do meu mundo.

Depois havia “ele”. Aquele estranho sem nome e sem origem. Aquela versão masculina de alguém que existia entre a dualidade da partilha do seu mundo e a constante perseverança em se manter anónimo por detrás de um rosto que ora se iluminava com um sorriso amargamente divino… ou se fechava numa expressão de pura altivez. Não o conhecia, portanto, fugindo ao facto de o ter encontrado apenas por duas ocasiões, baseava a minha opinião sobre a primeira reacção que experimentara ao me deparar com aquele impacto de personalidades e as pequenas explosões que ele me provocava algures dentro do peito. Era frustrante. E era por isso que eu estava ali.

Tirei os pés da água e tentei enxuga-los o melhor que pude com a bainha suja da minha capa. Não era tão mau como parecia. Vendo melhor, era ridículo que me tivesse assustado tanto. Os meus pés tinham dois ou três cortes finos que pareciam ter sido feitos há bastante tempo e saravam perfeitamente. Tinha exagerado ao julgar que estavam completamente ensanguentados. Até a dor que me parecera tão real não tinha passado de um exagero anímico por ter visto sangue. Eu sempre tive essa dificuldade. A visão de sangue resumia tudo a uma névoa branca e à incapacidade de raciocinar. A dor escalava consoante a gravidade dessa minha reacção. Portanto era melhor que me controlasse e evitasse divagações de ultima hora precisamente agora que me decidira a agir em vez de me lamuriar por algo que não podia alterar.

Isto era tudo muito claro na minha cabeça quando me levantei e encarei a força da cascata na minha frente. Era muito clara a minha decisão – subestimando o que me esperava ou não – de dar dois passos alem das minhas barreiras e entrar em território desconhecido. Era inspiradora a vontade de cumprir com o que tomava por certo… então porque me batia assim o coração? Porque me tremiam as mãos quando afastei o cabelo do rosto e me aproximei até sentir a água escorrer pelo corpo sem conseguir avançar mais?

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - XI

Fingi que não me sentia ofendida por ele me ver daquela maneira, como uma pessoa frágil e incapaz de enfrentar um mundo baseado em sentimentos e emoções, tivessem eles as formas que tivessem, eu era consciente de que apenas me deixava afectar pelo que eu permitisse. - Não é assim que funciona a minha rua? - Lido com os meus sentimentos, avanço e recuo nas minhas emoções. E mesmo quando estas me atingem ou me infligem dor, ficam para trás no momento em que atravesso a porta do meu horizonte. Cerradas alem do escudo que as protege da realidade. Nunca existiram danos físicos nas minhas visitas ao mundo criado pela minha mente. O meu refúgio etéreo existe da necessidade que tenho de lidar com um mundo que considero demasiado desumano, quase intolerável e cruel. No entanto demasiado doce, insuportavelmente belo e precioso para que regresse uma e outra vez, dividida entre os sonhos e o que existe de concreto.
Não sou frágil, ele estava enganado. Não sou frágil nos aspectos pelos quais ele me tomava ou julgava serem a matéria da qual eu era feita. Estava completamente enganado se me estava a julgar pelo aspecto. - Se bem que este também não abonava a meu favor naquele momento. Ensopada de lama dos pés à cabeça, cheia de arranhões, mais aquela inglória porção de nódoas negras a preencher o corpo magricelas e desequilibrado. – A minha fragilidade podia ser física mas não era psicológica. (Era?)

Ele também estava de súbito calado, observei-o explicitamente, quieto como uma estátua como se fizesse parte da rocha onde repousava o corpo grande e bem constituído. O cabelo castanho-escuro num completo desalinho que apontava para todas as direcções como se tivesse vida própria. Calculei que seria encaracolado e que quando secasse lhe desse pelos ombros largos que mantinha sempre rígidos e inflexíveis. Tinha os olhos fechados como se dormitasse descontraído aos meus pés, as feições viris eram agora uma representação serena do rosto que oscilava entre sorrisos e profunda seriedade. Mirei com inveja a pele morena pelo constante beijo do sol, tornando-a dourada e reluzente, exposta apenas pelas mínimas aberturas da roupa justa de couro escuro. Ele era deveras interessante. E eu sou deveras curiosa.

Ficou assim durante tanto tempo que o considerei adormecido. O peito apertado naquela espécie de couraça cor de nada quase não se movia com a respiração ritmada de quem já não está presente e se encontra longe, num sonho dentro de um sonho. Sorri com a filosofia forçada e aproximei-me das botas que ele tinha calçadas para as ver melhor. – Tenho uma espécie de pancada neurótica com botas desde a adolescência. Tendo opção de escolha, não as defino sendo esteticamente a minha eleição de pedestal, mas considero que nada se compara a um bom par de botas. – Não eram bonitas de todo. E ele tinha pés enormes, comparei olhando para os meus, que sempre achei grandes demais, nas minhas estimadas e modestas sandálias de verão. Vendo assim de perto pareciam bastante desconfortáveis, alem de que a sola tinha os dias contados. Devia andar com elas há mais tempo do que as desgraçadas resistiriam, só podia imaginar em que condições. Já que ele se remetera para um sono despropositado depois do “pequeno” acontecimento cavernoso e conversa que me deixara sem saber o que pensar sobre ele e das coisas de que falara, dediquei aquele tempo à minha recatada inspecção visual sem encargos de consciência. As calças não diferiam muito das botas. Eram robustas e grosseironas, apertadas pelas pernas compridas até à cintura. Achei de mérito que ele conseguisse mexer-se dentro delas, ate porque se tivesse de vestir uma coisa igual era certo que nem conseguia dobrar os joelhos antes de me estatelar inteirinha no chão. Virei-me de seguida para o que trazia vestido no tronco sem duvidar que aquele material rude fazia parte de toda a indumentária indecifrável. Por cima de uma camisa simples que achei num tom demasiado esbatido para ser considerado cor, trazia um colete fechado por fivelas na ilharga que subia quase até ao pescoço. Ele estava revestido por aquele material como se este se tratasse de uma segunda pele. Cada vez me parecia mais estranho. Afastei-me de novo para me sentar no mesmo sítio sem que ele tivesse dado por nada e limitei-me a cogitar em silêncio sem saber se o devia acordar ou aproveitar a oportunidade para assimilar tudo de uma vez.

Tinha os olhos postos naquele estranho, perdida em pensamentos sombrios sobre o que me tinha revelado e sobre o que eu achava de tudo aquilo quando voltou a acordar. Ao início não me dei conta de que estava desperto. Ele não se tinha mexido um milímetro durante todo o tempo em que tinha estado a dormir, soube que estava presente ao sentir um arrepio subir-me a espinha e reparar que estava então eu a ser observada. Os olhos fixos nos meus como dois poços escuros que me inundavam da sensação de estar completamente exposta, de que me sondava a alma e não havia nada que lhe pudesse omitir. Não gostava daquela sensação, da incapacidade de erguer os meus muros e força-lo a recuar.

Então, com a mesma facilidade com que tinha surgido envolto em mistério na minha rua, desapareceu. Pisquei os olhos várias vezes para garantir que não era eu, novamente a imaginar coisas mas negando ainda a possibilidade do que tinha acabado de acontecer não voltei a encontrá-lo aos meus pés.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - X

- Se estás assim tão longe, como regressas? Como sabes que é o momento de regressar?

Tudo aquilo começava a encaixar-se na minha cabeça como um puzzle. Juntava cada palavra que ele me dizia e deixava a pilha gigantesca das restantes peças de lado. Uma peça de cada vez…

- A realidade chama-nos. – Explicou-me remexendo nos bolsos à procura de alguma coisa. Retirou um pequeno objecto reluzente que apertou entre os dedos e voltou a colocá-lo no bolso. - Aqui não dependemos de necessidades físicas como a fome e a sede. Apesar de adormecermos o sono não nos descansa. Podemos deslocar-nos com alguma rapidez no início e afastar-nos dos pontos de encontro grandes distâncias. Mas depois perdes energia, sentes-te fraca e és obrigada a voltar.

- Quanto tempo levas a regressar ao teu ponto de encontro se estás tão longe? – Interroguei perdendo-me entre linhas e lutando para que conseguisse entender tudo o que ele dizia, estendido na minha frente, espreguiçado como um gato ao sol. – Quanto tempo levas a sentir-te fraco?

- Depende.

- De? – Insisti encostando-me na rocha oposta e estendi as pernas dormentes ao lado das dele. As minhas pernas estavam completamente arranhadas. Depois de a roupa se ter tornado um adorno miserável e esfarelado acabara por nem me aperceber de quantas mazelas me tinham deixado naquele estado. Não importava.

- Depende de quanto tempo já estiveste ali fora. – Indicou com um aceno de cabeça para a cascata ruidosa que se elevava à nossa voz obrigando a que tivéssemos de estar tão perto um do outro para nos fazermos ouvir – Existe uma espécie de evolução. A tua resistência aumenta com as distancias que percorres.

Calei-me entregue a um momento de ponderação. Tinha de pensar, juntar mais umas peças ao puzzle. O problema é que, quanto mais peças encaixava, outras tantas surgiam na pilha do que desconhecia. Portanto a minha rua, que era o meu “ponto de encontro”, tinha um portão que levava a um “espaço comum” onde se partilhavam todos os sentimentos e emoções de um “todo”. Constituído não sabia pelo quê, nem por quem, nem a sua dimensão (que se afigurava grande), e mais importante, como regressava ao meu horizonte se estivesse demasiado longe?

- Não me respondeste a uma pergunta. – Encolhi as pernas ate junto do peito e senti os vergões da minha pele arderem por os esticar envoltos nos meus braços. Suspirei incapaz de reclamar da dor e fitei aqueles olhos escuros na sombra à minha frente – Como regressas à realidade?

- Fazes muitas perguntas. – Reclamou com um pequeno sorriso que deturpou a tentativa de parecer sério e intransponível – Aliás, falas demais. – Endireitou-se esticando os membros como se tentasse abarcar o espaço que nos acolhia com languidez e olhou circunspecto para o pedaço da minha rua que estava além do portão. – Levas uma parte do teu “eu” contigo. Um objecto que te faça recordar a realidade.

- E depois?

- Depois… bem, depois essa é a única forma de voltar. – Falou com toda a naturalidade. Como se aquilo fosse a coisa mais fácil de concretizar e não existissem quaisquer questões que me fizessem duvidar de que era todavia simples de levar aquilo a cabo. – Mas não acho que sejas capaz de o fazer.

A sua dúvida, consistente ou não, deu-me uma pontada precisamente no local onde o orgulho morava no meu peito. Um estranho, que não me conhecia de lado nenhum e que subestimava as minhas capacidades, duvidando de que não seria capaz de regressar à minha realidade se decidisse afastar-me e ver com os meus próprios olhos aquilo de que ele falava. E da forma como falava, comecei a achar que, já que a minha rua se tornara parte do que fluía daquele mundo, não perderia nada em ser corajosa e dar meia dúzia de passos para fora daquela gruta.

- Porque achas que não sou capaz? – Perguntei agora de tom inflamado e postura tomada de pudor. Sentia as orelhas a arder e a minha respiração cortar o ar na minha frente em golfadas ofegantes.

- Porque és frágil demais. – Respondeu sem qualquer crueldade. Vi as suas maxilas flectirem ao olhar para mim e se perder na direcção da cascata. - O objecto da nossa realidade não é a única coisa que nos faz regressar ao ponto de encontro. Existem coisas ali fora que… - Parou sem terminar o que ia dizer deixando-me frustrada pela lacuna. - Não ias resistir muito tempo.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - IX

Ignorou a minha aflição com aborrecimento e transpôs o portão para ficar então em silêncio. Demorou muito tempo até que voltasse a falar. Lentamente cruzou os braços sobre o peito, atravessou os olhos escuros e insondáveis pelos meus e voltou a observar o que se apresentava na sua frente. O que antes tinha sido uma rua.

- Não sei porque isto aconteceu. A criação é tua. – Verbalizou libertando-se com agilidade de uma ponta da trepadeira que começava a subir-lhe o braço – Devias conseguir controlar o que se passa aqui. Este é o teu ponto de encontro.

- Ponto de encontro? – Perguntei aproximando-me com cautela. Do que estava ele a falar? Era pior do que eu julgava. Podia ser muito pior do que eu ingénua, tinha imaginado ser possível. – Acho que tu não entendeste bem o que isto é. Isto é uma rua. - Comecei a falar lentamente como se ele fosse de pensamento lento e lhe tivesse escapado o que para mim era tão óbvio. - Um sitio que criei…

- Onde espelhas os teus sentimentos e as tuas emoções. – Completou a minha frase com ares de excelência que serviram para me remeter a um estado de nervosismo por o ter julgado com facilidade, depois regressou ao interior do portão como se isso tornasse mais fácil a nossa débil tentativa de comunicação – Eu sei perfeitamente o que isso é.

- Já tinhas entrado aqui antes? - Silvei baixinho por entre os dentes - Como sabes o que isto é? – Regressei a uma forma contida de inquérito passando as mãos pelas marcas vermelhas dos meus braços relembrando-me para que não voltasse a ser precipitada. Naquele momento ele tinha poucas respostas, mas tinha algumas… e era tanto. – O que queres dizer com ponto de encontro?

Ele encostou-se á parede rochosa do interior da gruta e voltou a sorrir. Aquele sorriso não era igual aos anteriores e quando se transformou numa gargalhada que vibrou sonora até mim enterrei as unhas nas mãos cerradas numa tentativa colossal para não me atirar de novo ao seu pescoço. – Conta até dez… melhor, até vinte. – Esperei. Quando o motivo para tanta gargalhada deixou de causar efeito ele sentou-se no chão junto á entrada do portão. As pernas compridas descontraídas na sua frente e o já característico cruzar de braços incitavam a que me aproximasse em segurança e voltasse a tentar.

- Tu não fazes ideia do que isto é realmente. – Comentou ignorando o meu regresso ao interior do portão com indiferença. Permiti-me sentar-me a certa distancia e esperar que ele fosse tão generoso com as respostas quanto fora com as gargalhadas. – A tua rua, com os teus portões, mais as criaturas estapafúrdias que criaste para representar sentimentos que tentas conter a muros e cadeados, tudo isso, faz parte de um todo.

Mordi a língua antes de deixar fugir o soluço de horror que aquela explicação começava a alimentar. Criaturas estapafúrdias… engoli em seco. Um todo?

- Tenta ver assim… - Começou a falar como se eu fosse mesmo muito lenta de raciocínio. Não consegui esconder a careta inflamada por saber que estava apenas a repetir o comportamento que tivera momentos antes. – Imagina que todas as pessoas têm uma rua como a tua, o seu ponto de encontro fora da realidade, e que todas elas convergem para um espaço comum. Um todo, onde se cruzam os sentimentos e emoções de todos eles.

- Estás a dizer que este portão vai dar ao teu ponto de encontro? – Tentei articular depois de ter acabado de ouvir aquilo e começar a ver uma névoa branca toldar-me a visão.

Se tentasse perceber de facto o que aquilo traduzia em mim e admitisse a sua explicação sem pelo menos tentar combate-la com as minhas inevitáveis ladainhas seria demasiado fácil desistir, preferia encontrar o remédio para a minha própria dor numa improvável e impossível solução.

- Não. Estou a dizer que este portão vai ter a esse todo. – Repetiu acompanhando as palavras monossilábicas com gestos igualmente vagarosos. - Que a partir do momento em que passas por ele, estás em território comum.

- Então onde fica o teu ponto de encontro? Como regressas à tua realidade? – Inclinei-me na sua direcção como se esperasse encontrar mais na sua expressão do que na sua voz, demasiado curiosa pelo que ele não me quisesse revelar.

- O meu ponto de encontro fica muito longe daqui. – Tentou anular a minha emissiva falando em tom severo. O brilho selvagem que reluziu nos seus olhos era uma mensagem clara para que não me aproximasse daquele ponto. – A única forma segura de regressares é nunca te esqueceres de onde fica.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - VIII

“Tarde demais o conheci, por fim; cedo demais, sem conhecê-lo, amei-o profundamente.” (William Shakespeare)



- Não me toques!!! – Afastei-o antes de me alcançar, na tentativa de me erguer da forma mais digna possível. Não perdi muito tempo com o comovente esforço em limpar a lama que escorria do meu rosto. Olhei para a roupa ensopada daquela lama escorregadia e sacudi as mãos em recobro de compostura. Fixei-o por fim. – Quem és tu afinal? – Perguntei num tom esganiçado que saiu ampliado pela acústica daquele espaço – Que sitio é este? Como é que vieste aqui parar? – Bombardeei-o cada vez mais alto, apagando de súbito o sorriso acessível como quem sopra uma vela. Em troca ergueu o sobrolho e cerrou o maxilar. – Como entraste na minha rua? – Berrei jogando as mãos aos seus ombros rígidos num ataque de histeria.

- Acalma-te. – Exigiu sem levantar a voz, segurando firmemente os meus braços com duas mãos grandes e quentes mantendo-me estática na sua frente. Os olhos num impasse estudioso dos meus, tão intenso que me encontrei desprovida de qualquer reacção. – A questão é, como vieste tu parar aqui. – Não era uma pergunta, era a constatação de algo improvável. - Coisinha frágil e irritante.

De repente perdi a noção do quanto dependia de calma e raciocínio. Perdi a noção de muitas coisas quando as suas palavras começaram a surtir um efeito sinistro na minha cabeça. Libertei-me das suas mãos e limitei-me a acertar-lhe, sem me preocupar muito onde, em cheio com a mão na cara.

O som que o meu gesto gerou foi a ultima coisa que ouvi antes de me ver arrastada pelo colarinho e a queda de água me atingir com toda a força na cabeça, roubando o ar e invadindo os meus sentidos. Engasguei-me várias vezes na vã tentativa de me libertar dos braços que me submetiam firmemente. A água embatia no meu corpo com força, era doloroso e aflitivo ter de admitir que (apesar de nunca o vir a fazer explicitamente), eu era realmente bastante frágil. Terminou tão depressa que levei tempo a conseguir voltar a respirar. Assim que abri os olhos ele soltou-me e deixou-me cair no chão aos seus pés. Estava completamente encharcado, estávamos os dois, depois de termos atravessado a cascata para o interior da gruta que levava ao portão de regresso à minha rua. Depois de sacudir vigorosamente a cabeça para escoar a água do cabelo avançou outra vez na minha direcção com os olhos semicerrados numa fúria e expressão tomada de impaciência.

- Vais voltar para a tua rua, agora. – Levantou-me de novo por um braço e empurrou-me na direcção do portão. – Vai e não voltes mais aqui.

Podia ordenar que fosse ele a abandonar o meu espaço, afirmei em pensamento quando parei a pouca distância do portão entreaberto e tentei não ceder com esforço à fraqueza das minhas pernas que tremiam como duas varetas. Este mostrava um pedaço de chão adulterado da minha rua como se zombasse da situação. Podia exigir que se limitasse a perceber, gostasse ou não, que quem devia voltar para trás era ele. Eu entrara num dos portões de algo que era, e isto era inquestionável, meu, portanto tinha pleno direito de estar ali. Não importava que não soubesse onde me trouxera, ou o que significava tudo aquilo, mas definitivamente num espaço que me pertencia. Voltei a olhar para trás e encontrei-o suspenso na expectativa de me ver desaparecer. Não vendo forma de isso se concretizar passou as mãos pelo rosto e cruzou os dedos atrás da nuca. Vi nos seus movimentos fugazes e olhar frustrado como lidava com a minha presença e evitava explodir noutra demonstração de ansiedade.

- Não faz diferença que volte para a minha rua. – Remeti de forma altiva na sua direcção. Cabeça erguida e longe de me deixar domar de medo por aquele perigoso estranho que acabara de tentar afogar-me. Porém longe de me aproximar dele. Ainda me doíam os braços no sítio onde ele me tinha segurado e me mostrara quão insignificante seriam os meus ataques de histeria. – És tu quem está aqui a mais. Quem me garante que não voltas a entrar ali?

- Vê se entendes uma coisa. – Aproximou-se deixando que percebesse o quanto evitava tocar-me. Passou por mim e abriu o portão com ares de serviçal num convite a que abandonasse aquele sítio de forma educada. – Eu não quero saber da tua rua. Nem sabia que era uma rua, nem que te pertencia. Aliás, entrei aqui por acaso.

- Então porque voltaste?

- Porque… - Parou medindo as palavras antes que estas lhe saíssem pela boca com esforço. Controlou-se, abriu a boca para falar e voltou a fechá-la.

- Olha. – Apontei para o outro lado do portão, ignorando a postura descompensada que ele figurava, para o caos que se espalhara depois da sua visita indesejada, e pelos vistos ocasional. – Vês o que está a acontecer? O que tu fizeste!!!

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - VII

Acordei. A mesma sensação de mudança. A certeza de que algo estava profundamente errado ali. Como se nunca tivessem existido momentos de desespero, encontros com estranhos e portões misteriosos. – Uma das minhas maiores capacidades, nem sempre má, desenvolveu-se na forma como frequentemente me engano a mim mesma. – O portão estava lá. Igual desde a primeira vez que o contemplara e me sentira, ingénua, fascinada pelo seu aparecimento. Não completamente igual, estava aberto. Ouvia a cortina de água no seu interior, o cheiro da humidade abafada pelo interior da cascata chegava a mim trazida pela brisa acanhada que passava pelo portão e me envolvia com gavinhas mansas que me chamavam e me impeliam para o seu interior.

Entrei. Porque não? Fazia parte da minha rua, portanto pertencia a um qualquer sentimento que não reconhecia. – Talvez fosse essa a explicação para todas aquelas mudanças. – Provavelmente tudo se desenleara pela necessidade de explorar aquele sentimento, de o controlar antes que tomasse conta de todos os outros e minasse por completo e de forma irreversível o equilíbrio do meu “eu”.

Voltei a parar junto da queda de água, relembrando contrariada o que por ela surgira quando tinha tentado passar para o outro lado. Esperava que ele não estivesse lá de novo. Que não me aparecesse pela frente agora que já não respondia à razão e me sentia miserável pelo estado lastimoso com que me apresentava ali. – Estava dividida entre o estado da minha roupa e a miscelânea de flora que se acumulara no meu cabelo. Bom, pelo menos faria parte de mim apenas ate ao momento em que tivesse de transpor o meu horizonte de regresso à realidade. Era mau quanto bastasse. – Passei a mão pela água para tentar perceber qual a espessura que tinha de atravessar para chegar ao lado de lá e senti o ar seco e quente na ponta dos dedos quando esta me chegou ao cotovelo. Não era assim tanto quanto imaginava depois de ter sido atirada ao chão pela força da cascata aquando da primeira tentativa, podia facilmente avançar com um impulso, ou mais improvável, com um salto. – Detesto saltar. Ficou ponto assente esta minha objecção em ter de saltar sobre as coisas depois de duas tentativas escabrosas para a caixa de areia numa “quase” esquecida aula de educação física. – Uma vez que afastei a segunda hipótese repenso consciente que era perigoso saltar sem saber o que estava depois daquela cortina de água. Encho os pulmões de ar como se fosse dar um grande mergulho e fecho os olhos antes de atravessar para o desconhecido.


O ar quente que aspirei de seguida fez com que me engasgasse e, felizmente que não estava ali ninguém para ver, esbracejei como um gato que alguém atirou para dentro de uma banheira de água fria ate me quedar e desenrolar sem interrupções todas as asneiras que conhecia. – Inventei algumas. – Já não me podia queixar pelo estado do meu cabelo pré-histórico, com duas passagens com os dedos também não me podia queixar de ter ficado sem ele. Menos mal. Olhei à minha volta.

Mais selva. – Agora sim estava a ficar aterrorizada. - Gemi de frustração e atirei-me com profundo desconsolo para o chão infestado de ervas, folhas apodrecidas e pedras envolvidas pela lama laranjada que escorria muitos metros á minha frente para a densa saída daquela gruta, caverna… ou lá o que era aquilo!!! Estava entregue á horrorosa visão do que se afigurava ser um pesadelo. Eu, sozinha, empestada de todo o género de porcaria, no meio da selva!!! – Relembrei a minha rua na sua glória. Ordeira e asseada, cheia dos meus pequenos pormenores delicados… Que saudades da minha rua. – Voltei a gritar o rol de asneiras e palavrões num descontrolo completo e mãos cheias de pedras e lama para todos os lados.

- Já falas!!! – Bramiu esbaforido pela entrada da gruta na minha direcção ate ficar com os dois pés em frente aos meus olhos. Quando tirei a cara da lama, prestes a fulminá-lo, dou com um sorriso tão ofuscante que voltei a deixar-me cair. - Pena serem palavrões…

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - VI

“Como se descrevem as cores do nosso mundo sem a luz do teu sorriso?”


Levei o meu tempo. Todo o tempo do mundo…
Encostei o ouvido à porta, palmas abertas sobre a madeira ressequida e respiração contida entre os lábios. Duvidava dos meus pensamentos. Duvidava das minhas certezas e dos meus desejos… Duvidava do equilíbrio da minha rua quando parti, mal o portão se fechou atrás de ti, apressada, seguida pelos ecos das tuas palavras. A porta devolveu-me somente o bater descompassado do coração, o coração de uma estranha.

Não me debati com a incerteza de que queria entrar na minha rua, o chamamento era doloroso, faminto, emanava por cada poro do meu corpo, necessidade cega e descontrolada de me sentir amada, estava carente de mim.
Subi o capuz da capa negra, cobrindo por completo a figura transitória e quebradiça em que me tornei antes de, com a destreza de tantos anos, rodar a chave na velha fechadura e entrar.

(…)

Luz… muita luz. Demasiada. Insuportável. Fechei os olhos e cobri o rosto com as mãos. - Esperei até conseguir ver. Se fosse possível tornar a ver depois de me atacar daquela maneira. – Demorava até aquela ofuscante demonstração de luz e cor se acalmar sobre a minha cabeça e me permitir avançar debilmente alguns passos. A aurora da minha rua explodia num pulsar de luz e cor como se quisesse encurralar-me no centro de si mesma. – Fascinava tanto quanto conseguia assustar-me por não entender a causa para tanto gáudio nem como tudo aquilo era possível. - Aos poucos recuou, foi tornando tudo menos intenso conforme os meus olhos conseguiam acompanhar a cadência daquela demonstração radiosa até estabilizar na sua alva transparência.

Voltei a esperar, já me habituara a esta parte a ser deveras mais paciente do que me considero fora daqui. Quando finalmente me brindou com a sua calma desejei que tivesse durado mais tempo. A minha rua estava, francamente, transformada num jardim… - Eu gosto de jardins. Gosto de jardins harmoniosos que nos enchem de um sentimento de paz e reflexão. Selva já não é, a propósito do estado da minha rua, um ambiente no qual me sinta “confortável” – Ao que me parecia, ultrapassando o choque que tudo aquilo me causava, as minhas trepadeiras tinham crescido bastante. O suficiente para que, dos arcos majestosos que preenchiam os primeiros metros da rua, não sobrasse qualquer réstia que me levasse a acreditar que um dia haviam lá estado. Estava tudo verde. Estava tudo preenchido de folhas e grossos cordões de era viçosa que quebrava e asfixiava tudo o que tivesse conseguido alcançar. O chão, antes magnífico e acolhedor com as suas pedras escuras e lustrosas era menos que um caminho de cabras o qual eu dificilmente conseguiria transpor sem ter de me dedicar a arrancar flores, silvas, ervas e arbustos para avançar pouco mais que meia dúzia de passos. E havia mais além daquelas, muito mais por toda a extensão da minha rua… a minha rua austera e magnificente, que agora era um pedaço de selva paleolítica.

Gritei, berrei e joguei as mãos a tudo o que me rodeava naquele espaço ínfimo de onde não conseguia sair. Tentei e desisti. Pelo menos os meus sentimentos estavam, e muito bem, encurralados naquela irritante e odiosa demonstração de…enfim, de algo selvagem. Tal como o aparecimento daquele portão, e daquele estranho… - Três pontapés e meia dúzia de ervas daninhas fora do caminho. – eu não conseguia evitar aqueles acontecimentos. Não conseguia explicar o porquê de existirem na minha rua nem o porque de não os conseguir fazer desaparecer.

(…)

Escusando descrever a periclitante “caminhada” da qual consegui sobreviver, quase sem fôlego, capa de banda e pernas arranhadas até aos confins do que antes tinham sido calças… cheguei ao portão de âmbar. Aquele portão misterioso pelo qual começava a nutrir verdadeira implicância. Semicerrei os olhos de punhos fechados ao longo do corpo antes de me atirar a ele. Claro que ao cair de joelhos na sua frente não tinha conseguido mais que unhas partidas e umas quantas nódoas negras das quais não me orgulhava depois de tanta dedicação em tentar arrancar-lhe, nem que fosse, um dedo!!!
Estava fechado… portanto não tinha sido dali que a era começara a crescer e a arruinar todos os mínimos recantos da construção e ordem da minha rua. Ao menos isso.

Cansada, estava tão cansada de não conseguir manter a única coisa que considerava de valor inestimável na minha existência intacta. Se perdesse a minha rua, tal como a havia criado, como a conhecia… acabava por perder o controlo dos meus sentimentos, da minha racionalidade. Ia enlouquecer, por fim ia acabar por me perder de mim mesma.

(…)

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - V

“Não percebi em que momento se tornou tão difícil procurar a minha rua… ou simplesmente abandoná-la. Debato-me numa forma insegura de resistir a ambas as escolhas. Existiam causas, demasiadas, para que, escolhendo qualquer uma delas, me viesse a encontrar de volta a este limbo, a este vazio… a balança teria sempre de pender para um dos lados. A consequência segue a curta distancia os passos das nossas acções… No entanto, estive longe de temer o quanto me viria arrepender. Agora percebo o inevitável de tudo… agora é tarde demais. Agora…”


Limito-me a observa-lo. Contrariada e profundamente indignada…observei-o. Uma figura calma, quase letárgica, que me devolve o olhar de sorriso perturbado a bailar-lhe nos lábios. Era estranho. Em todos os sentidos a que posso aplicar a palavra. Estranho porque não o conhecia, estranho porque não o queria aqui, estranho porque era perigoso e ameaçava tudo o que em mim há de mais frágil, portanto crucial, estranho porque julgo que não se apercebia de onde se encontrava, porque para ele era fácil ficar sentado no chão da minha rua e esperar que eu reagisse à sua imposição, porque sabendo que no momento em que eu abrisse a boca seria obrigada a dirigir-me a ele… porque aquele sorriso fazia florir as minhas trepadeiras e a minha aurora explodir numa sinfonia da cores, porque existiam portões a ranger ao longe apenas por o mirar, por ceder no meu intimo em querer estudar as suas feições mais de perto e ficar intrigada com os breves movimentos das suas mãos ao afastar delicadamente as frágeis pontas de era que debicavam acanhadas vários pontos do seu corpo tão confortavelmente instalado e lhe revolviam as pontas do cabelo escuro e desgrenhado…estranho porque sim!!!

Incomodava-me saber que o silêncio era intencional, estava a forçar-me a admitir a sua presença, a admitir que era real… que estava ali na minha frente, na minha rua, que existia independente da minha vontade. Gemi em verdadeira aflição quando após fechar os olhos na derradeira tentativa de o evaporar, o voltei a encontrar na minha frente, agora de pé e medindo um palmo acima da débil avaliação a que o submetera.

- Porque existem tantos portões na tua rua? – Questionou-me com uma expressão de pura curiosidade. Cruzou os braços e voltou a sorrir quando, num espaço tão curto entre ambos, recuei os passos restantes até me encontrar encurralada entre ele e as colunas opostas – Tens cadeados nalguns, só consegui ver para dentro de três. – Ficou muito sério de repente. - Não entrei em nenhum. – Corrigiu, vendo-me escorregar pela coluna até ao chão. Fiquei por fim, em choque. – Estás bem?

Não, claro que não estava bem!!!... Estava um estranho na minha rua!!!... Que estava, inferno, a falar comigo e tinha andado a bisbilhotar portões na minha ausência!!!
Abracei os meus joelhos com força. Afundei o rosto entre os braços e tentei respirar. Tinha de conseguir respirar. - Senti o Medo aconchegar-se pesado sobre os meus ombros e puxar-me o cabelo até me fazer chorar de dor. O Pânico a meus pés gracejava dedicado em me fazer tremer e todos os Receios tinham sido convidados para o acontecimento, para o qual vinham inspirados com requintes de uma Malvadez criativa. – Tinha de o tirar dali. Não sabia o porquê de não o conseguir fazer de imediato, ou porque sentia relutância em me atirar com sete pedras nas mãos sobre ele e o arrastar até ao maldito portão de onde tinha aparecido. Não sabia muitas coisas.

- Estás a chorar? – Ouvi a sua voz dirigir-se a mim como um grande balde de água fria. Apertei as pernas com mais força. – Quem são eles?...essas “coisas” que estão à tua volta? - Por momentos todos recuaram para de seguida regressarem aos seus lugares enraivecidos pela interrupção e audácia. – Queres que eu os afaste?

Levantei-me de um salto e atirei com o Medo ao chão, assustou o Pânico e este deu largas a um grito estridente que fez todos os Receios saltitar à nossa volta como pipocas descontroladas para todas as direcções. Cada fibra do meu corpo foi esticada ao limite por me saber frágil demais para o impedir do que fosse, mas não ia permitir que ninguém, ninguém, tocasse nos meus sentimentos. Nem mesmo aqueles.

Avanço sem uma palavra até junto dele e empurro-o na direcção que o levava para fora dali, na direcção do portão de âmbar. - Sem uma palavra. Não ia, jamais, abdicar do meu silêncio por alguém, que não conhecia, junto dos meus sentimentos. Na minha rua não existem palavras, nem minhas, nem de ninguém!!! – Ignorei o seu olhar estupefacto, bem como o falhar da minha miserável tentativa de o conseguir retirar dali, e tornei a empurrar para o ver continuar no mesmo sítio.

Desesperei quando voltou a cruzar os braços. - As “coisas” que eram os meus sentimentos estavam eufóricas, os Receios pareciam uma colmeia de abelhas encolerizadas que atacavam todas ao mesmo tempo, o que irritou bastante o Pânico por deixar de ser o centro das atenções e fez o Medo bater o pé. – Coloco-me na sua frente, a tremer como uma vara e olho intencionalmente pela primeira vez para os seus olhos escuros que me devolvem uma imagem esgotada de mim mesma.

- És estranha. – Limitou-se a dizer antes de outro sorriso.

Evitei a gargalhada irónica que me subiu pela garganta e cerrei os dentes com nervosismo, agarrei-o pelos ombros e abanei-o num ultimato de auto controlo. Eu era a estranha da minha rua!!? Porque o fazia sorrir julgar-me estranha na minha própria rua!!?

Acabei por o libertar… Maldição!!! Que podia fazer?... As palavras começavam a fazer um sentido atroz: És estranha. – Faltava o resto. – És a estranha da tua rua…

- Anda… - Puxou-me pelo braço ao começar a caminhar. Libertei-me da sua mão e observei-o dirigir-se pelo caminho para o qual me tinha esforçado tanto em empurra-lo sem nenhum género de contrariedade. Ele não olhou para trás, nem sequer para confirmar se eu o seguia.

Acompanho-lhe os passos á distância, escondendo entre as mãos cerradas duas pequeninas esperanças. - Que estivesse a ir para o portão de âmbar, e que desaparecesse para sempre da minha rua. – Podia pelo menos acreditar que não ia ficar a vaguear por ali se não lhe tirasse os olhos de cima. Talvez se cansasse… talvez a minha rua fosse somente interessante para mim. - Crença na qual eu construía fortes colunas de sustentação. – A realidade que espera por mim fora da minha rua surge ininterruptamente no meu pensamento causando-me agonias pela lentidão dos passos que o retiravam aos poucos dali. Não podia partir enquanto não tivesse a certeza de que este estranho se iria embora, de que não o ia encontrar de novo quando regressasse, e de que nunca mais me faria perder o equilíbrio com os seus sorrisos perturbadores e perguntas constantes, as quais me recusava responder.

A lentos passos, o espaço até ao portão de âmbar tornou-se mais curto, conseguia vê-lo à distância. A luz vaporosa e quente que emanava como uma brasa soprada delicadamente… já não me parecia tão maravilhoso. Era agora, mais que qualquer outra coisa, o meu portão de salvamento.

Quase me desfiz em lágrimas quando estacou na sua entrada e olhou finalmente para mim. Os olhos estranhos preenchidos por um brilho febril que ora me assustava bastante, ora me enchia de culpa. Estava quase!!!... só mais um passo, e podia colocar cem cadeados naquele portão e esquecer que alguma vez tinha estado um estranho na minha rua.

- Pensei que me ias pedir para ir embora. – Disse quase num sussurro que se perdeu mal passou por mim – Não que me ias empurrar como uma demente até perceber que era isso que querias. Eu vou... – Ofereceu-me um sorriso que ofuscou gloriosamente toda a beleza do portão de âmbar, passou por ele no momento seguinte e este fechou-se...

Antes de conseguir mexer-me, o vento devolveu-me o que escapara com a sua imagem:

- Até já.

Rua da JinX - Entre Mágoa e Ilusão - IV

Fecho os olhos e volto a rodar a chave pelas mãos ignorando a dor que isso causa após o fazer uma infinidade de vezes. Estou aqui de novo, sentada no chão de cabeça pousada nos joelhos e costas na madeira gasta e fria. Admito que tento desculpar-me se disser que não o fiz uma, dez, mil vezes desde que fechei a porta…fi-lo bastante mais. Na verdade tenho vagueado em frente da porta da minha rua como um moribundo que afasta de si as sombras do que se recusa a aceitar, tentando ver o que se encontra para além delas com uma convicção baseada em meias verdades e meias mentiras.
Duvidei de mim mesma de cada vez que me obriguei a rodar a chave na fechadura. Anos de atrito e profundas amolgadelas pela pressa de entrar… e agora estou do lado de fora, a consumir-me de um género doentio de desculpas para não entrar, para ficar longe… para não me decidir pela enorme curiosidade e agitação e confiar no instinto e na prudência.

“Era tudo mentira. Não existe ninguém na tua rua…” - Repito novamente a mesma ladainha – “É impossível estar alguém na tua rua sem tu o permitires. Aliás, mesmo que o permitisses, era igualmente impossível. A tua rua é tua…existe porque a criaste. Existe porque tu existes e não se altera sem que o desejes”. – Esta era a parte fácil com que me confrontava… -“ Eu não criei aquele portão. Posso passar meses aqui sentada sem conseguir encontrar um motivo para a sua existência ou dar-lhe um significado. Que portão era aquele?!!” – E agora o verdadeiro motivo das minhas aflições - “Quem era ele? E o que estava a fazer num dos portões da minha rua?”

Desejava nunca mais ter de entrar na minha rua por não saber o que fazer com um estranho que por lá se passeava… e ansiava por entrar e confirmar se ele ainda lá estava, se ia vê-lo novamente assim que abrisse aquela porta.

Parei de rodar a chave, observei-a minuciosamente e voltei a colocá-la ao pescoço.

(…)

Volto naquilo que me pareceu uma eternidade e ao regressar adopto a mesma posição, com um esgar de frustração noto que nem dera tempo para que a madeira arrefecesse do calor do meu corpo tenso que teimosamente ali permanecia sem se decidir.

(…)

…Como era possível estar alguém na minha rua?!!! Como era possível que eu tivesse permitido que isto acontecesse?!!!... Sim, porque sem duvida que a culpa era absoluta e totalmente minha. Tinha aberto a minha rua para um estranho… alguém que desconhecia e de quem não recebera qualquer sinal de reconhecimento.

Acentuando o terror que isto me causava dediquei-me ao erro de passar outra eternidade a imaginar o quanto isso me deixava vulnerável. Basicamente, havia um estranho a perscrutar libertinamente cada portão da minha rua, a seu bel-prazer, sem restrições ou impedimentos… cada sentimento, emoção, ou simplificando, os ínfimos pormenores da minha essência estavam entregues a alguém que, sem que o pudesse impedir, passaria a conhecer cada recanto do meu eu e o poderia alterar ou consumir como o vento que fustiga as nuvens de uma tarde de Outono.

Isso aconteceria enquanto a minha passividade o permitisse, enquanto o terror de que já fosse demasiado tarde para o impedir me prendesse os movimentos e a ansiedade por me afastar daquele estranho me mantivessem do lado de fora.

(…)

Olhei para a porta da “minha” rua como se a estivesse a ver, não pela primeira vez, mas como se fosse obvio que nela já se notaria alguma diferença… a violação dos contornos do meu mundo. Nunca iria suportar.

Nada. Absolutamente nada.

Retirei a chave do peito, a mão instável enquanto passava a fina corrente pelo pescoço e a deslizava pela extensão do meu cabelo num movimento amplo que terminou a milímetros da entrada da fechadura. Mais por orgulho cego que por coragem ou valentia, enfiei a chave, respirei fundo, e rodei-a três vezes antes de a empurrar lentamente e esperar que tudo me caísse encima na derradeira confirmação de que tinha chegado tarde demais para evitar os danos.

De coração acelerado e respiração suspensa por uma miríade de sensações, dei dois passos e fechei a porta atrás de mim. A minha rua estava exactamente igual a si mesma… precisamente a mesma e inconfundível rua que criara e construíra ao longo dos anos da minha vida. - Passei a mão por um Alivio saltitante que corria na minha frente e brincava com os pequenos Receios que regressavam relutantes para o seu portão e se despediam sem pressas com acenos e beijinhos lançados na minha direcção. – Observei a cada passo toda a consistência da minha rua. Passei as mãos, vasculhei os espaços, os recantos, medi a altura e a distancia dos pilares da consciência, a cor das pedras sob os meus pés e o ondular bruxuleante da aurora ténue que me recebe com breves tilintares inquietos por tão grande ausência. Estava tudo tal como havia deixado.

Com um sorriso de verdadeiro jubilo rodopiei… rodopiei de braços abertos para a minha rua, rodopiei e abracei-a em toda a sua amplitude, rodopiei e libertei-me da capa, libertei-me das amarras e do peso do medo, rodopiei e espelhei na minha rua a felicidade… rodopiei e enchi a minha rua do doce amor com que a mantenho intacta, de cabelo solto e movimentos livres rodopiei, com gargalhadas e lágrimas da mais pura alegria rodopiei... rodopiei até as minhas pernas cederem e cair ofegante de sorriso nos lábios. De olhos fechados continuei a rodopiar sem me mexer, agora era a minha rua que rodopiava também… ambas, juntas, um só rodopio de reconhecimento saudoso.


Quando tudo isso me preencheu e me fez transbordar de reforçadas convicções e férreas certezas abri os olhos, ansiosa por afastar a mais fugaz das dúvidas. Estava tudo bem. - Tudo não tinha passado de uma grande Ilusão que se havia esgueirado sobre mim e me tinha feito acreditar que era possível alguém entrar na minha rua e habitar o meu mundo sem que não o pudesse controlar ou impedir. – Sentei-me lenta e vagarosa, agora cinicamente tentada em afirmar que uma parte de mim nunca havia temido que tal acontecesse, sabendo que era impossível que aquilo alguma vez tivesse sido, supostamente, real. Levantei-me e percebi que não conseguia deixar de sorrir, nem debatendo as minhas próprias contradições depois do susto que me mantivera fora da minha rua mais tempo do que alguma vez recordava ter estado.
Peguei na capa e coloquei-a sobre os ombros na intenção de, uma vez que tudo aquilo se revelara uma mentira extremamente elaborada, confirmar se por ventura o portão da Ilusão estaria sem cadeado. A minha mente começava a agraciar-me com o cantarolar de uma melodia e avancei a par de confiança.

- És diferente do que eu te imaginava… - Ouvi a sua voz grave e cautelosa surgir a pouca distancia e o trovejar do pânico rasgar o ar da minha rua direito ao meu peito. Detive-me onde estava e descontrolando por completo o meu frágil equilíbrio, encontrei-o sentado entre dois pilares, oculto pela sombra das minhas trepadeiras – Estava à tua espera.


__________________________________________

A partir daqui desconheço a minha rua… Não porque tivesse deixado de ser minha ou algo nela tivesse sido verdadeiramente modificado, mas porque passei a vê-la também pelos teus olhos.